18 de fevereiro de 2017 – Sábado, 6ª semana

Leitura: Hb 11,1-7

Nas primeiras quatro semanas do Tempo Comum (ano ímpar) já ouvimos a leitura da Carta aos Hebreus (cf. introdução na segunda-feira da 1ª semana). O autor anônimo de Hb quer fortalecer a fé e a coragem dos seus ouvintes desanimados. Depois do seu sermão sobre o sumo sacerdócio de Cristo (que abriu o acesso aberto aos fiéis), o autor apresenta um elogio dos antepassados no cap. 11, supondo que o leitor conheça os relatos bíblicos correspondentes.

Inicia com uma definição da fé, como a entende o autor. Esta fé é denominador comum assemelha e reúne a todos (antepassados e leitores). Depois apresenta como prova e testemunho da fé a história da salvação, o caminho de Deus com os seres humanos como foi escrito no Antigo Testamento (AT), começando pela criação (v. 3) e passando por Abel, Henoc, Noé, Abraão e Sara, Jacó, José, Moisés até a conquista de Jericó na terra prometida (vv. 4-31). Esta maneira de passar em revista os personagens do AT é comum na tradição judaica (cf. Eclo 44-50; Jt 8,25-27; 1Mc 2,51-64; Sb 10), aliás um culto aos ancestrais ou elogios dos antepassados são comuns em quase todas as religiões. Hoje ouvimos o início deste elogio, até Noé.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1477) comenta: A lista dos exemplos de fé começa com os “antigos”, que os primeiros capítulos do Gênesis relembram. Cada personagem, por sua vida e destino, mostrou que a humanidade de seu tempo estava assumindo caminho ilusório e sem futuro. De alguma forma, todos andaram na contramão.  

A fé é um modo de já possuir o que ainda se espera, a convicção acerca de realidades que não se veem (v. 1).

Aos seus leitores, desanimados pelas perseguições (cf. 10,32-34), o autor explica que a fé é totalmente orientada para o futuro e liga-se somente ao invisível. Este v. 1 tornou-se uma espécie de definição teológica da fé, posse antecipada e conhecimento seguro das realidades celestes (cf. 6,5; Rm 5,2; Ef 1,13s). Mas esta definição da fé não é tão clara, contém dois substantivos que admitem interpretações objetiva ou subjetiva.

– “Hypóstasis”, aqui traduzido por “modo de já possuir”, é a garantia oferecida ou a confiança experimentada.

– “élegchos”, aqui traduzido por “convicção”, é a prova da promessa ou a esperança suscitada.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2361) prefere a interpretação objetiva desses dois termos:

O primeiro, pode significar “substância” (Crisóstomo, Agostinho, Tomás de Aquino: a fé confere existência em nós aos bens espirituais esperados), ou então “garantia, título de posse” (Gregório de Nissa, Calvino, alguns modernos); abundantemente atestado nos papiros, este segundo sentido parece ser aqui o mais provável. Todavia muitos preferem a ele o sentido subjetivo de “firme confiança” (Erasmo, Lutero, Zwínglio e numerosos modernos). Quanto ao segundo termo (“meio de conhecer”), também se propõe para ele um sentido subjetivo: “convicção íntima”, embora o sentido normal seja “argumento, prova, meio de saber”. Os padres gregos insistem na evidência que a fé nos dá, visão do invisível (cf. 11,27).

A Bíblia do Peregrino (p. 2885s) prefere a interpretação subjetiva:

Por todo o contexto, parece preferível a interpretação subjetiva, pois se trata de atitudes fundamentais, provocadas e sustentadas por algo objetivo, isto é, a promessa de Deus. Dessa forma, a fé da qual o autor fala, exceto no primeiro artigo, se parece mais com a esperança.

O processo é lógico: precede uma promessa de Deus, o homem confia nela (fé) e espera. Uma tradução um tanto livre pode ser: a posse do que se espera, a percepção do que não se vê. Não se vê, porque é futuro; e segundo os judeus, o futuro fica às costas (cf. 2Cor 4,18). O “invisível”, não manifesto, é aqui o que não existe ou o caos que não tem forma evidente (cf. v. 3).

O autor de Hb é feliz ao pôr em relevo o caráter paradoxal da fé, que possui sem apreender, que conhece sem ver (cf. Jo 20,29). Definindo a fé de forma impessoal, o autor a coloca em correlação com a esperança: anela o porvir e o invisível. Como o apóstolo Paulo, em Rm 8,24-25; 1Cor 13,12 e 2Cor 4,18, o autor de Hb opõe o que é atual, realizado, ao que ainda não o é. Em outros trechos do NT, encontramos pontos de vista diferentes que completam este sentido. Paulo apresenta a fé como relação pessoal entre os crentes e seu Senhor. Tiago afirma a insuficiência de uma fé puramente conceitual e insiste na vinculação necessária da fé com as obras (Tg 2,14.26).

Foi a fé que valeu aos antepassados um bom testemunho (v. 2).

O leitor moderno também tem de enriquecer a série de Hb 11 com a recordação ou repasse dos relatos bíblicos. Todos recebem um “testemunho” de aprovação. Um culto aos ancestrais ou elogios dos “antepassados” são comuns em quase todas as religiões e culturas. Os exemplos subsequentes mostrarão todo o poder de vida que a fé contém em si.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1477s) comenta: Fé não é simples repetição de uma doutrina, mas construção do presente, na certeza do que se espera. Fé indica a disposição de ir além daquilo que se vê e se toca. O que virá a seguir são exemplos de pessoas que agiram pela fé, lutaram pela justiça, não se acomodaram ao presente, certas de que a realidade podia ser mudada, e até passaram pela perda de honras e privilégios, prisões e martírio. Essas manifestações apontam para Jesus, que “iniciou e realizou a fé” (12,2). Cada personagem, por sua vida e destino, mostrou que a humanidade de seu tempo estava assumindo caminhos ilusórios e sem futuro. De alguma forma, todos andaram na contramão.

Foi pela fé que compreendemos que o universo foi organizado por uma palavra de Deus. Assim, as coisas visíveis provêm daquilo que não se vê (v. 3).

Dezessete vezes seguidas, a expressão “Foi pela fé…” marca o início de cada frase (até o final do cap.). A lista desses exemplos da fé começa pela criação (v. 3) e passa depois para “antepassados”, citando Abel (v. 4) e Enoc (vv. 5s). Em v. 7, Noé passa a ser o primeiro de quem age com esta fé que conhece o que não se vê.

A fé na criação é um caso sublime da inteligência do invisível; antes da sua criação visível, as realidades invisíveis existiam em Deus, de quem tudo procede.

A Bíblia do Peregrino (p. 2886) comenta: Ao começar pela criação, não pode apresentar nenhum personagem protagonista: o sujeito somos nós. Junto a afirmação de Paulo, a respeito do conhecimento do criador pelas criaturas (Rm 1,20; cf. Sb 13,1-5), o autor fala de um conhecimento pela fé, não tanto do criador, mas do fato da criação pela palavra (Sl 33,6). Refere-se a Gn 1, recebido e aceito com fé.

Foi pela fé que Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor que o de Caim; e por causa dela, ele foi declarado justo, pois Deus aprovou a sua oferta. Graças a ela, mesmo depois de morto, Abel ainda fala!  (v. 4).

Em Gn 4,3-5 não se menciona o motivo pelo qual Deus preferiu o sacrifício de Abel ao de Caim. O auto de Hb segue mais a tradição rabínica em que Abel ofereceu a Deus um “sacrifício melhor”, e Abel morto “ainda fala” com seu sangue, que “clama ao céu” (cf. Hb 12,24; Jó 16,18). Deus mesmo é testemunha da inocência ou justiça de Abel.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2362) comenta: Conforme Gn 4,4-10, Abel foi o primeiro que morreu por causa de sua fidelidade para com Deus. Esta ideia é retomada em Mt 23,25. Embora se referindo-se a narrativa de Gn, o autor de Hb mundifica-lhe um tanto o teor. Em Gn 4,10, é o sangue de Abel que clama; aqui é Abel que, embora morto fala.

Foi pela fé que Henoc foi arrebatado, para não ver a morte; e não mais foi encontrado, porque Deus o arrebatou. Antes de ser arrebatado, porém, recebeu o testemunho de que foi agradável a Deus. Ora, sem a fé é impossível ser-lhe agradável, pois aquele que se aproxima de Deus deve crer que ele existe e que recompensa os que o procuram (vv. 5-6).

Em Gn 5,21-24, dentro da genealogia de fonte sacerdotal, uma lista de Adão a Noé com suas idades alcançadas, Henoc é mencionado como bisavó de Noé. Ele se distingue dos outros por vários traços: sua vida é mais breve, mas atinge um número perfeito de anos, 365 (os dias do ano solar). Ele “andou com Deus”, como Noé (6,9), e foi “arrebatado” por Deus, como Elias (2Rs 2,11s), talvez um mito solar. Este rapto é referido também em Eclo 44,16; 49,14, e evocado em Sl 18,17; 49,16; 73,24 e Sb 4,11. A tradição judaica tomou a piedade de Henoc como exemplo e lhe atribui livros apócrifos (livro de Henoc; citado por Jd 14s). Depois da sua morte e ressurreição, Jesus “subiu”, foi “elevado ao céu”, “arrebatado” numa “nuvem” (Lc 24,51; At 1,9-11; cf. Jo 3,13s; 12,32 etc.).

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 2362) comenta: Por ter escapado assim a morte Henoc foi tido como revelador dos segredos celestes e constituiu-se em objeto de abundantes especulações na literatura do judaísmo tardio. Em contraste, o autor de Hb guarda grande sobriedade.

A Bíblia do Peregrino (p. 2886) comenta: Segundo Gn 5,24, mas substituindo o verbo “arrebatar, assumir”, por “transladar” a outro lugar ou situação. A ele se referem Eclo 44,16 e 49,14; a ele alude Sb 4,10 com “agradou”. O autor tira a fé por dedução. Aquele que “se aproxima” ou formalmente, deseja aproximar-se. Propõe a existência de Deus como objeto de fé.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2254) comenta: A fé necessária para a salvação tem duplo objetivo: a existência do único Deus pessoal (Sb 13,1), invisível por natureza (Jo 1,18; Rm 1,20; Cl 1,15; 1Tm 1,17; 6,16; cf. Jo 20,29; 2Cor 5,7) e sua Providencia remuneradora, fundamento da felicidade esperada, porque Deus deve dar uma justa recompensa aos esforços empenhados na sua procura (cf. Mt 5,12p; 6,4.6.18; 10,41-42p; 16,27; 20,1-16; 25,31-46; Lc 6,35; 14,14; Rm 2,6; 1Cor 3,8.14; 2Cor 5,10; Ef 6,8; 2Tm 4,8.14; 1Pd 1,17; 2Jo 8; Ap 2,23. 11,18; 14,13; 20,12-13; 22,12. Ver também o Sl 62,13). A ausência de qualquer menção de Cristo explica-se pelo fato de que Henoc é anterior a toda a economia das alianças (cf. Jo 17,3; 20,31 etc.).

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 2362) comenta o v. 6: Esta frase é um dos textos escriturísticos a que se recorre mais amiúde nos discursões sobre a necessidade universal da fé para a salvação. Aliás é de se notar o feitio intelectual com que ela exprime o conteúdo da fé. Nota-se finalmente que o autor se atém a uma formula muito genérica, que nem se quer nomeia Cristo (cf. Jo 20,31; 1Jo 5,1.5). Cônscio das etapas da revelação divina, abstêm-se de atribuir a Henoc uma fé explicita em Jesus Cristo (cf. Rm 4,17.24).

Foi pela fé que Noé, avisado divinamente daquilo que ainda não se via, levou a sério o oráculo e construiu uma arca para salvar a sua família. Pela fé, ele se separou do mundo, tornando-se herdeiro da justiça que se obtém pela fé (v. 7).

A Bíblia do Peregrino (p. 2886) comenta: Gn 6 nada diz da fé que Noé tem e muito menos que por ela alcançou a justiça (a grande doutrina de Paulo). O autor deduz isso de fato que Noé confirmou no anúncio de Deus, obedeceu-lhe e tomou suas “precauções”. 

“Ele se separou do mundo”, outros traduzem: “convenceu”, ou “condenou o mundo”. A fé/confiança de Noé na palavra de Deus condena os seus contemporâneos incrédulos e revoltados, no sentido de que o justo condena o ímpio (cf. Sb 4,16; Mt 12,41). A arca que “salva” (a família de Noé) é também é a arca que “condena” (o mundo); não raro o mesmo ato tem consequências duplas, positivas e negativas (cf. 2Cor 2,15-16).

 

Evangelho: Mc 9,2-13

Depois da profissão de Pedro (8,29: “Tu és o Cristo”) e o anúncio da paixão, a transfiguração ilumina a subida do messias a Jerusalém, onde é situada pela tradição pré-sinótica. A alguns dos seus discípulos, que não podem compreender o caminho que seu mestre quer seguir (cf. a reação deles em 8,27-30; 9,32-37; 10,32-40), Deus faz vislumbrar a glória misteriosa do seu Filho e exige deles que escutem seu ensinamento. O relato segue esquema primitivo de uma revelação de apocalipse (cf. Dn 10,1-6; Mt 17,2). A interpretação não é fácil, porque não se sabe bem a origem desta história que alude a muitos motivos do AT.

Nos vv. anteriores, Jesus anunciou sua paixão, morte e ressurreição e convidou a seguir o caminho da cruz (vv. 8,31-38) terminando com a frase enigmática: “Alguns não morrerão antes de ver o reino de Deus” (9,1). Esta palavra de Cristo implica evidentemente que certos contemporâneos de Jesus não morrerão antes da manifestação gloriosa do Filho do Homem. Com todos os profetas, Jesus anuncia o que deve acontecer para sua geração. Mas é difícil determinar a época desta informação. Uns pensaram na ruína de Jerusalém em 70 d.C., outros nas aparições do ressuscitado, outros ainda na transfiguração, que Pedro, Tiago e João vão testemunhar em seguida.

(Naquele tempo,) Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha (v. 2a).

A costumeira introdução da liturgia (“Naquele tempo“) deve ser substituída pelo texto original que tem “Seis dias depois”. No contexto do evangelho, esta indicação parece não ter maior valor cronológico, mas este pormenor pode ser uma alusão ao transcurso da Festa das Tendas, festa alegre e popular (Ex 28,16; Lv 23,28-34; Dt 16,13). Ela começava seis dias depois do grande dia das Expiações (Yom kippur, cf. Lv 16) e durava sete dias (Lv. 23,34.36). A reação de Pedro em v. 5, pode se referir a isso.

Em Mc, Jesus costuma instruir seus discípulos “sozinhos”, “à parte” da multidão (cf. 3,13s; 4,10s.34; 7,17). Entre os doze apóstolos, há um grupo mais íntimo, “Pedro, Tiago e João” (cf. 1,16-20; 5,37; 10,35-37; 13,3) que estarão com Jesus também na oração no monte das oliveiras (14,33).

Na tradição, a “montanha alta” da transfiguração é o monte Tabor (593m) perto de Nazaré. Outros pensam num monte mais alto e mais perto do lugar antes mencionado (Cesareia Filipe, cf. 8,27), onde aconteceu a profissão de fé de Pedro. Deste lugar no norte de Israel, se vê o monte Hermon (2840m) no Líbano (Líbano significa brancura), sempre coberto de neve. Lá nasce o Rio Jordão. Mas a “montanha alta” da transfiguração pode ser simbólica: Junto com Moisés (Ex 3; 19-20; 24) e Elias (1Rs 19) lembra o monte Sinai/Horeb, onde Deus se manifestou em raios e nuvens e falou ao seu povo (Ex 19,16; 20,18-21). Em Ex 24,1.9.15s, Moisés subiu ao monte Sinai também com três homens escolhidos, o monte estava coberta de uma nuvem; no sétimo dia, Deus o chama de dentro da nuvem. Quando Moisés desceu da montanha, seu rosto estava brilhando (Ex 34,29-35).

E transfigurou-se diante deles. Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar. Apareceram-lhe Elias e Moisés, e estavam conversando com Jesus (vv. 2b-4).

Em outras passagens do NT, o verbo “transfigurar” designa uma transformação espiritual (Rm 12,2; 2Cor 3,18). Aqui, a transformação é visível. Os três evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) assinalam a transformação perceptível da roupa (Mt e Lc mencionam que ela afeta também o rosto).

Como nos apocalipses judaicos, vestes tão deslumbrantes são um dos sinais da “glória” celeste que é concedida aos eleitos tornando-os semelhantes aos anjos (cf. 2,9; 10,18; 11,36; 17,24; 24,4; Mt 28,3; At 9.3; 12,7; 22,6; 26,13; Ap 3,4; 4,4). Esta cena misteriosa só adquire sentido na perspectiva da ressurreição gloriosa de Cristo, da qual é evidentemente uma antecipação. Em Mc 16,5, um “jovem… vestido com uma túnica branca” é o anjo que anuncia o túmulo vazio no domingo da ressurreição.

Como nos apocalipses judaicos, vestes tão deslumbrantes são um dos sinais da glória celeste concedida aos eleitos, que se tornam semelhantes aos anjos (cf. Mt 28,3; Ap 3,4; 4,4). Esta cena misteriosa só adquire sentido na perspectiva da ressurreição gloriosa de Cristo, da qual é evidentemente, em Mc, a antecipação.

“Moisés e Elias” representam o Antigo Testamento, “a lei e os profetas” (um representando a Lei e o outro, os Profetas; cf. Mt 5,17; 7,12; 11,13; 22,40; Lc 16,16.29.31; 24,27.44); no culto da sinagoga lê-se uma leitura da Lei, outra dos Profetas, cf. At 13,15). Eles aparecem aqui como precursores ou testemunhas da Aliança. Conversando com eles, Jesus se demonstra mais do que um simples carpinteiro, médico ou pregador. No pé da igualdade com estas autoridades do passado parece pertencer à esfera da eternidade divina. Abre-se uma janela no céu, ou seja, antecipa-se a ressurreição. Elias devia ser precursor do Messias (Ml 3,23; cf. Eclo 48,10) e, aqui em seguida (vv. 11-13), é identificado com João Batista (cf. Mt 17,12; 11,14), morto por ordem de Herodes (6,17-29). Ao mesmo tempo aparece Moisés (cf. Ap 11,3-6), cuja assunção o judaísmo admite (cf. Dt 34,5s), tanto quanto a de Elias (2Rs 2,11) e de Henoc (Gn 5,24).

Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.” Pedro não sabia o que dizer, pois estavam todos com muito medo (vv. 5-6).

O medo faz parte do gênero de epifanias (manifestações divinas, cf. 4,41; 6,49s.51; 16,8). Pedro como porta-voz dos discípulos abre a boca e manifesta sua incompreensão (cf. 8,32). A sugestão de construir tendas pode aludir com a indicação “seis dias depois” (v. 2a) ao transcurso da Festa das Tendas, festa alegre e popular dos judeus (Ex 28,16; Lv 23,28-34; Dt 16,13). Ela começa “seis dias depois” do grande dia das expiações (Lv 16) e dura sete dias (Lv 23,34.36). Ou Pedro pensa em hospitalidade para três figuras celestiais (como Abraão em Gn 18; cf. as moradas em Jo 14,2). Ou alude à morada dos celestiais no monte, como a habitação divina no templo, na cidade santa (cf. Ez 37,27; Zc 2,14; Ap 21,3). Ou Pedro quer evitar o sofrimento de Jesus como em 8,32, porque no monte estaria seguro e ninguém saberia onde estava.

Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!” E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles (vv. 7-8).

Não bastava só o testemunho de Moises e Elias, agora o próprio Deus se manifesta sobre Jesus. A “nuvem” é sinal de teofania (cf. 2Mc 2,7s), da mesma forma como sobre o Sinai (Ex 19,16; 24,15s), como sobre a Tenda do encontro (Ex 40,34-38) e sobre o Templo (1Rs 8,10-12; cf. a alusão em Lc 1,35).

“Escutai-o”. No batismo (Mc 1,11), a voz do céu designara Jesus como o seu Filho (cf. Sl 2,7), lembrando o Servo de Javé (Is 42,1). Na transfiguração, ela o designa antes como o profeta que todo o povo deve escutar (cf. At 3,22 citando Dt 18,15). No Jordão, ela se dirigiu a Jesus (em Mc), aqui no monte, ela se dirige aos discípulos e, através destes, às “multidões”.

Ao descerem da montanha, Jesus ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. Eles observaram esta ordem, mas comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos” (vv. 9-10).

A recomendação de guardar segredo sobre o que foi revelado pelo Céu é um tema clássico da literatura apocalíptica (cf. Dn 12,4-9), reprisado pelos sinóticos, sobretudo por Mc, na perspectiva do “segredo messiânico”:

Em Mc só um homem reconhece Jesus como Messias: Pedro, mas é logo intimado ao silêncio (8,29s; em Mt 16,17-19 é instituído “Papa” primeiro). Jesus só aprova esse título Messias/Cristo durante seu processo (14,61s). Estas imposições de silêncio são particularmente frequentes em Mc. Muitas vezes tal imposição não é respeitada, como se a irradiação do poder do Filho de Deus não pudesse ser contida.

Aos demônios (1,25.34; 3,12), como aos miraculados (1,44; 5,43; 7,36; 8,26) e mesmo aos apóstolos (8,30; 9,9), Jesus impõe, sobre sua identidade messiânica, uma recomendação de silêncio que só depois de sua morte será suspensa (Mc 9,9; Mt 10,27). Como vulgarmente se fazia do Messias uma ideia nacionalista e guerreira (como Davi), muito diferente daquela que Jesus queria encarnar, ele precisava usar de muita prudência, pelo menos nas terras de Israel (cf. 5,19), a fim de evitar infelizes mal-entendidos sobre sua missão (cf. Jo 6,15; Mc 4,10-13p). Essa recomendação do “segredo messiânico” não corresponde a uma tese artificial inventada extemporaneamente por Marcos, como alguns têm afirmado; corresponde, sim, a uma atitude histórica de Jesus, tema sobre o qual, de fato, Marcos tinha gosto em insistir, talvez pelo fato de escrever no final da guerra Judaica (66-70 d.C.; cf. Mc 13). Com a exceção de Mt 9,30, só nas passagens paralelas a Mc essa recomendação ocorre em Mt e Lc; com frequência, chegam mesmo a omiti-la.

“Até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos”; somente aqui em 9,9 o segredo messiânico tem data para ser revelado: a ressurreição do Filho do Homem (assim Jesus se autodenomina, cf. 2,10.28; 8,31; 9,11.30; 10,33; 13,26; 14,21.62). Só depois da sua morte e ressurreição, a pessoa e missão de Jesus pode ser compreendido. Mas no capítulo final, quando Jesus ressuscitou, as mulheres no túmulo vazio guardam segredo sobre isso, em vez de comunicar a Boa Nova do anjo, “pois tinham medo” (16,8). Assim termina o Evangelho original de Mc!

Pode ser que se tenha perdido cedo a pagina final do original de Mc, que foi substituída por 16,9-20 (um anexo do séc. II com vocabulário e estilo bem diferente e que resume encontros do ressuscitado dos outros evangelhos). Mas pode ser também que Mc quisesse mesmo terminar com este fim absurdo: O tempo todo Jesus pede segredo, mas as pessoas não conseguem se calar. Agora, quando é tempo de anunciar a boa nova (“evangelho”) do ressuscitado, as pessoas se calam. Certamente as mulheres falaram depois, porque, como saberia o evangelista (e nós) do fato do túmulo vazio se ninguém tivesse falado? Assim este fim do Ev de Mc torna-se um apelo para anunciar, perder o medo (das perseguições e dificuldades) e evangelizar com alegria.

Diferente dos outros evangelistas, Mc não apresenta aparições do ressuscitado, pois já antecipa a ressurreição pelo relato da transfiguração. A vida e ação de Jesus não terminam com sua morte. A transfiguração é sinal de Ressurreição: a sociedade não conseguirá deter a pessoa e a atividade de Jesus, que irão continuar através de seus discípulos. A voz de Deus mostra que, daqui por diante, Jesus é a única autoridade. Todos os que ouvem o convite de Deus e seguem a Jesus até o fim, começam desde já a participar da sua vitória final quando ressuscitarão com ele.

Os três discípulos perguntaram a Jesus: “Por que os mestres da Lei dizem que antes deve vir Elias?” Jesus respondeu: “De fato, antes vem Elias, para colocar tudo em ordem. Mas, como dizem as Escrituras, que o Filho do Homem deve sofrer muito e ser rejeitado? Eu, porém, vos digo: Elias já veio, e fizeram com ele tudo o que quiseram, exatamente como as Escrituras falaram a respeito dele” (vv. 11-13).

Mc transformou uma questão debatida entre judeus (judeu-cristãos) e cristãos numa diálogo que se segue à transfiguração com aparição de Elias (vv. 4s) e a ressurreição do Filho do Homem (vv. 9s). Duas teses que se contradizem são apresentadas, e Jesus apresenta a solução. Os discípulos ainda mostram sua falta de fé ouvindo mais os adversários judeus (mestres da Lei) do que o próprio Jesus: “Antes deve vir Elias?” Refere-se a Ml 3,23s e Eclo 48,10 que apresentam Elias como precursor de Javé: “Antes que chegue o Dia de Javé … ele fará voltar o coração dos pais voltar para os filhos e o coração dos filhos voltar para os pais” (Ml 3,23s), “e estabelecer as tribos de Jacó” (Eclo 48,10). Se Elias não voltou ainda, Jesus não é o messias (Cristo). E se já voltou, que lugar resta para a paixão do messias?

A reposta de Jesus repete a pergunta e coloca outra profecia contra: Se Elias estivesse conseguido uma reconciliação geral e um povo de Israel (Jacó) bem disposto, seria impensável o Filho do Homem “sofrer muito e ser rejeitado”. Mas isto também está nas Escrituras (servo sofredor de Is 53, a rejeição em Sl 118,22; cf. Mc 8,31) e vontade de Deus (duas vezes “deve” em vv. 11s). A solução que Jesus apresenta solenemente (“Eu, porém, vos digo”) é que “Elias já veio” na pessoa de João Batista (cf. Mt 17,13); não como reencarnação (já que em 2Rs 2,10-12 Elias não desencarnou, mas foi arrebatado ao céu), mas com a missão de Elias de preparar o caminho para o messias (não para Javé, cf. Mc 1,2 citando Ml 3,1). Mas ele não conseguiu uma reconciliação geral devido à falta de conversão de Herodes e sua esposa ilegítima que o colocou na prisão e mandou cortar a cabeça do profeta: “fizeram com ele tudo o que quiseram, exatamente como as Escrituras falaram a respeito dele”.

Não há uma trecho na Escritura que profetiza o sofrimento de Elias na sua volta. O único trecho possível talvez seja Ap 11,3-14 que fala de duas testemunhas que serão mortos, mas reviverão para subirem ao céu (alusão a 2Rs 2). Poderia-ser uma versão cristã (Pedro e Paulo) de uma de uma tradição judaica mais antiga (Elias e Moisés? Elias e o Messias?). Para o evangelista é importante mostrar João como precursor de Jesus não só em vida, mas também na morte. Em 6,17-29 descreve Herodes e sua esposa parecidos com o rei Acab e sua esposa Jezabel que perseguiram Elias (19,2.10.14; cf. a influência nefasta da esposa ao rei em 2Rs 21). Voltando do monte da transfiguração, os discípulos têm que se preparar, porque o sofrimento faz parte dos homens de Deus.

O site da CNBB comenta: A transfiguração nos mostra que Jesus, verdadeiro homem, vive todas as dimensões da existência humana, ou seja, da glória até o sofrimento e a morte. No alto do Monte Tabor, a sua glória torna-se manifesta, porém Jesus está diante de Moisés e Elias, ou seja, diante de todas as profecias que foram feitas em relação a ele, principalmente as que se referem à sua morte e ressurreição. E Jesus nos mostra que a verdadeira realização humana encontra-se em fazer a vontade de Deus, ou seja, amar até o fim. A morte de cruz foi colocada pelos homens como condição para que Jesus amasse até o fim, e Jesus não fugiu do seu compromisso, nos mostrando que é perfeitamente possível cumprir a vontade do Pai até o fim.

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