18 de janeiro de 2018 – Quinta-feira, 2ª semana

 

Leitura: 1Sm 18,6-9; 19,1-7

Depois da vitória espetacular do pastor Davi sobre o guerreiro gigante dos filisteus, Golias (cap. 17; leitura de ontem), o próximo capítulo 18 reúne notícias e episódios diversos que ligam dois temas contrapostos: o sucesso crescente de Davi e o medo/ciúme crescente de Saul. A oposição produz um movimento dialético, porque precisamente o temor de Saul provoca o êxito de Davi, e vice-versa.

O capítulo 18 relata a rápida ascensão do jovem Davi após sua entrada a serviço de Saul. Seu êxito é geral: Jônatas, o filho e herdeiro do rei se afeiçoa a ele (cf. 18,1-4: “o amava como a si mesmo”); Micol, a filha do rei se apaixona por ele e se torna sua esposa (Saul não queria Davi como genro, mas foi obrigado fazê-lo, cf. 18,17-27); Davi tem a simpatia da tropa, os ministros o estimam, Judá e Israel o querem (“o amava”, cf. 18,5.16.28; 19,1), triunfa na guerra (18,5.14.27.30), escapa de atentados (18,10-11; 19,8-10). A narrativa insiste sempre que “o Senhor (Javé) estava com ele” (16,18; 17,37; 18,12.14.28; 20,13; 2Sm 5,10). Por sua parte, Saul se irrita por causa do triunfo sobre Golias, depois teme, sente pânico, atormentado pelo espírito mau (16,14-23; 18,10s; 19,9s) atenta contra a vida de Davi, torna-se inimigo permanente seu.

A Bíblia do Peregrino (p. 525) comenta: Assim, bem cedo Davi é amado (‘oheb) por todos e odiado (’oyeb) pelo rei… Este capítulo não é modelo de imparcialidade.

Quando Davi voltou, depois de ter matado o filisteu, as mulheres de todas as cidades de Israel saíram ao encontro do rei Saul, dançando e cantando alegremente ao som de tamborins e címbalos. E, enquanto dançavam, diziam em coro: “Saul matou mil, mas Davi matou dez mil” (18,6-7).

Era costume antigo as mulheres irem ao encontro dos guerreiros na volta de uma expedição acolhendo-os com cantos e danças (cf. a irmã de Moisés em Ex 15,20s; Débora em Jz 5; a filha de Jefté em Jz 11,34; Judite recebida em Jd 15,12).

O coro das mulheres na sua versão primitiva mostrava as cantoras festejando Davi ao voltar de uma dessas expedições que Saul lhe confiava e se refere a todos os inimigos. Posteriormente foi relacionado à vitória de Davi sobre Golias.

Saul ficou muito encolerizado com isto e não gostou nada da canção, dizendo: “A Davi deram dez mil, e a mim somente mil. Que lhe falta ainda, senão a realeza?” E, a partir daquele dia, não olhou mais para Davi com bons olhos (18,8-9).

Por qual razão Saul temia e se irritava? A Bíblia do Peregrino (p. 525) comenta: O príncipe monárquico era recente em Israel e o príncipe dinástico ainda não se tinha firmado; se Saul fora aceito por suas vitórias militares, agora havia outro que ganhava dele nesse terreno; o povo podia muito bem escolher para si outro monarca. Além disso, Saul tinha tomado posição contra Davi. A essas razões objetivas se uniu o processo patológico que o rei sofreu.

Nossa liturgia salta o relato como Davi foi quase morto por uma ataque do mau espirito de Saul (18,10-11; cf. 16,14-23), mesmo assim se tornou genro de Saul (18,17-30). Saul queria que os filisteus matassem Davi e exigiu 100 prepúcios filisteus como preço da noiva, sua filha Micol que estava apaixonada por Davi. Davi matou logo 200 filisteus e entregou os prepúcios exigidos a Saul para que o aceitasse como genro. Então Saul foi obrigado de dar-lhe Micol como esposa. “Saul percebeu que o Senhor estava com Davi” (18,28). Outra vez lembramos que a violência nestas histórias não descrevem a vontade de Deus (outros povos cortavam o membro viril dos caídos), mas serviam aos autores na época de Josias no séc. VII a.C. (ou no pós-exílio) para encorajar a resistência dos judeus contra os fortes impérios pagãos (assírio, babilônico, persa).

Saul falou a Jônatas, seu filho, e a todos os seus servos sobre sua intenção de matar Davi. Mas Jônatas, filho de Saul, amava profundamente Davi, e preveniu-o a respeito disso, dizendo: “Saul, meu pai, procura matar-te; portanto, toma cuidado amanhã de manhã, e fica oculto em um esconderijo. Eu mesmo sairei em companhia de meu pai, no campo, onde estiveres, e lhe falarei de ti, para ver o que ele diz, e depois te avisarei de tudo o que eu souber” (19,1-3).

O conflito entre Saul e Davi se agrava e Jônatas é o mediador. Este episódio não concorda com a narrativa do cap. 20, no qual Jônatas ainda não sabe nada das intenções criminosas de seu pai (cf. 20,2). São duas tradições sobre intervenção de Jônatas a favor de Davi.

Então Jônatas falou bem de Davi a Saul, seu pai, e acrescentou: “Não faças mal algum ao teu servo Davi, porque ele nunca te ofendeu. Ao contrário, o que ele tem feito foi muito proveitoso para ti. Arriscou a sua vida, matando o filisteu, e o Senhor deu uma grande vitória a todo o Israel. Tu mesmo foste testemunha e te alegraste. Por que, então, pecarias, derramando sangue inocente e mandando matar Davi sem motivo?” (19,4-5).

A Bíblia do Peregrino (p.527) comenta a intercessão de Jônatas como apologia (defesa): Seu recurso é a palavra, naturalmente apoiada no seu duplo amor por Saul e por Davi; tem de livrar Davi da morte, e seu pai do crime. O brevíssimo discurso de Jônatas é uma apologia (discurso de defesa) maciça: Davi é inocente, seria injusto fazer-lhe mal; Davi é um benfeitor, seria injusto não lhe retribuir; Davi foi instrumento do Senhor Javé, seria perigoso atentar contra ele. Jônatas enuncia aqui o grande tema dos capítulos seguintes: o duelo entre Davi e Saul acerca da inocência e culpabilidade de ambos. São termos correlativos.

A inocência de Davi em relação a Saul é um ponto sobre o qual toda história da ascensão de Davi insiste (cf. v. 5; 20,1.8; 24,12 leitura de amanhã), cf. a pena de morte para quem “derrama sangue inocente” em Dt 19,10-13.

Saul, ouvindo isto, e aplacado com as razões de Jônatas, jurou: “Pela vida do Senhor, ele não será morto!” Então Jônatas chamou Davi e contou-lhe tudo isto. Levou-o em seguida a Saul, para que ele retomasse o seu lugar, como antes (19,6-7).

Saul parece convencido e invoca Deus como testemunha, “pela vida do Senhor”, que não mataria Davi. Mas este juramento não prevaleceu com seu espírito atormentado. Já nos próximos versículos (vv. 9-10), enquanto Davi estava de volta na corte e tocava música, Saul tentou outra vez (cf. 18,10s), com sua lança na mão, cravar Davi na parede. Mas Davi se esquivou. Saul se torna uma figura trágico-cômica que, em tempo de guerra, tenta eliminar seu melhor capitão (cf. v. 8).

 

Evangelho: Mc 3,7-12

Depois das cinco controvérsias com os adversários na Galileia (das quais ouvimos nos dias passados), Jesus enfrentará muitas outras, mas antes quer se retirar com seus discípulos para depois escolher doze (apóstolos) entre eles (cf. evangelho de amanhã).

Jesus se retirou para a beira do mar, junto com seus discípulos. Muita gente da Galiléia o seguia. E também muita gente da Judéia, de Jerusalém, da Iduméia, do outro lado do Jordão, dos territórios de Tiro e Sidônia, foi até Jesus, porque tinham ouvido falar de tudo o que ele fazia (vv. 7-8).

Jesus se retira “para a beira do mar”; na verdade o que é chamado “mar” é o lago de Genesaré (15 km), por onde passa o rio Jordão. Nesta beira do lago, Jesus chamou os primeiros discípulos, quatro pescadores (Simão Pedro e André, Tiago e João; cf. 1,16-20) e um coletor de impostos, Levi (cf. 2,13-14).

Agora, não só eles o seguiram, também “muita gente” da Galileia, da capital Jerusalém e de várias regiões vizinhas. A fama de Jesus reuniu pessoas de todo o território de Israel/Palestina que corresponde aos limites da terra prometida no AT que Josué conquistou e Davi e Salomão governavam. Salomão tinha relações diplomáticas com as cidades pagãs do litoral da Fenícia (hoje Líbano), Tiro e Sidônia (cf. 7,24;  Mt 11,21-22;1Rs 5,15). Faltam na lista do território só os samaritanos que não aparecem por sua rivalidade religiosa com os judeus (cf. Mt 10,5; Lc 4,51-56; 10,33; Jo 4; At 1,8; 8).

Com esta visão global do ministério de Jesus e atração que ele exercia sobre as multidões, Mc expressa um contraste com a hostilidade das autoridades (2,1-3,6), sugere o ajuntamento de todo o Israel em volta do Messias (“Filho de Deus”, v. 11) e prepara a instituição dos “doze” apóstolos em seguida (vv. 13-20) cujo número representa as doze tribos de Israel (cf. 1Rs 4,7).

Então Jesus pediu aos discípulos que lhe providenciassem uma barca, por causa da multidão, para que não o comprimisse. Com efeito, Jesus tinha curado muitas pessoas, e todos os que sofriam de algum mal jogavam-se sobre ele para tocá-lo. Vendo Jesus, os espíritos maus caíam a seus pés, gritando: “Tu és o Filho de Deus!” Mas Jesus ordenava severamente para não dizerem quem ele era (vv. 9-12).

Jesus entra numa barca “por causa da multidão, para que não o comprimisse” (v. 9; cf. 4,1; Lc 5,3). A barca tornar-se-á um símbolo da Igreja (cf. as travessias em 4,35-41; 6,45-52). No segundo resumo das curas físicas e espirituais de Jesus (cf. 1,32-34), os doentes querem tocá-lo (cf. a mulher hemorrissa em 5,25-34)

Aos espíritos maus, que têm conhecimento sobrenatural da identidade de Jesus (”Filho de Deus”), ele sempre ordena manter este segredo messiânico (vv. 11-12, cf. 1,24.34; 5,7), porque só na cruz se revela que tipo de Messias é Jesus (cf. 15,39): não um guerreiro como Davi derramando o sangue dos inimigos (“10.000”, cf. 1Sm 1,7), mas como o Servo de Deus, dando seu próprio sangue, sua vida própria “em resgate por muitos” (cf. 8,31; 9,31; 10,33.45; 14,24; cf. Is 42,1-4; 53; Mt 26,28).

O site da CNBB resume: O evangelho de hoje é uma continuação dos evangelhos anteriores e nos mostra que, se por um lado, as autoridades religiosas da época de Jesus não concordavam com o seu modo de agir e com os seus ensinamentos, por outro lado, a multidão cada vez mais aderia aos seus ensinamentos e procurava em Jesus a solução para os seus problemas, naturais ou espirituais. A visão institucionalizada da fé é importante porque nos ajuda a viver comunitariamente o nosso relacionamento com Deus, mas pode ser perigosa enquanto pode submeter o próprio Deus aos critérios da razão humana ou legitimar, em nome de Deus, relacionamentos e costumes meramente humanos que podem até ser opressores e excludentes.

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