18 de junho de 2018; Segunda-feira: “Olho por olho e dente por dente!” Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado!

Leitura: 1Rs 21,1-16

Continuamos ouvindo histórias do cíclo de Elias inserido nos livros de 1Rs 17 a 2Rs 2. Nestes livros, a história deuteronomista narra como a decadência dos reis dividos (norte e sul, ou seja, Israel e Judá) se agravou cada vez mais e acabou na invasão do reino do Norte pelos assírios em 722 a.C. (2Rs 17: os 10 tribos desaparecem e surge o sincretismo dos samaritanos) e na destruição de Jerusalém e do templo pelos babilônios em 586 a.C. que levaram boa parte do povo judeu ao exílio (2Rs 24-25).

Hoje a leitura nos apresenta uma crítica a respeito do poder real e seus abusos de poder. Elias confrontou-se com o rei Acab (874-853), cujo pai Omri tinha construído a capital de Samaria no reino do Norte (1Rs 16,23-28). Acab casou-se com a princesa fenícia de Sidônia, Jezabel, e passou a servir Baal e adorá-lo (16,30-31). Baal (ou Bel, cf. Belzebu em Mc 3,22p) significa “Senhor” e aplicado a várias divindades dos povos vizinhos. O Baal introduzido em Israel por Jezabel foi Baal-Melkart, deus fenício da tempestade, da fecundidade e da guerra.

Já nas leituras da semana passada ouvimos como Elias foi enviado a Sarepta (perto de Sidônia, origem de Jezabel), mas alojou-se na casa de uma pobre viúva que reconheceu o verdadeiro Deus de Israel (1Rs 17,7-24; cf. Lc 4,25-26). Depois da demonstração da fé monoteísta (qual é o Deus verdadeiro: Javé ou Baal,  em 1Rs 18) no monte Carmelo, Elias fugiu da perseguição pela casa real para um retiro no monte Horeb/Sinai (1Rs 19), mas voltou.

Nabot de Jezrael possuía uma vinha em Jezrael, ao lado do palácio de Acab, rei de Samaria. Acab falou a Nabot: “Cede-me a tua vinha, para que eu a transforme numa horta,  pois está perto da minha casa. Em troca eu te darei uma vinha melhor, ou, se preferires, pagarei em dinheiro o seu valor”. Mas Nabot respondeu a Acab: “O Senhor me livre de te ceder a herança de meus pais” (vv. 1-3).

Jezrael está situada no ângulo oriental da planície de Esdrelon, perto do Jordão, numa região muito fértil da agricultura e passagem de rotas comerciais. Nabot era provavelmente um dos “notáveis” (nobres) da vila (cf. v. 8).

Acab é “rei de Samaria” (cf. 2Rs 1,3). Seu pai Omri construiu Samaria como capital do Reino do Norte (Israel). Este título raro ao lado de “rei de Israel” alude à sua condição como latifundiário. Além de uma residência luxuosa em Jezrael (1Rs 18,45) e queria ter ainda um terreno vizinho, mas este pertencia a Nabot que plantava uvas. Nabot não aceitou a oferta do rei de trocar a vinha por outra ou por dinheiro. Não foi só por apego sentimental à terra de seus pais, mas por fidelidade a Deus que confiou certa área a seu clã (Nm 36,7; Lv 25,13). A transferência da terra de um clã para outro não foi facilitada em Israel, porque se queria conservar a distribuição igualitária das terras entre famílias e tribos (cf. Lv 25,23-28). Talvez o autor bíblica queira salientar a cobiça de Acab que procura se satisfazer à custa de um pequeno vinhateiro (cf. a maldição de Is 5,8 depois do cântico da vinha, e Mq 2,1s).

Acab voltou para casa aborrecido e irritado por causa desta resposta que lhe deu Nabot de Jezrael: “Não te cederei a herança de meus pais”. Deitou-se na cama, com o rosto voltado para a parede,  e não quis comer nada. Sua mulher Jezabel aproximou-se dele e disse-lhe:  “Por que estás triste e não queres comer?” Ele respondeu: “Porque eu conversei com Nabot de Jezrael e lhe fiz a proposta de me ceder a sua vinha pelo seu preço em dinheiro,  ou, se preferisse, eu lhe daria em troca outra vinha. Mas ele respondeu que não me cede a vinha”.  Então sua mulher Jezabel disse-lhe: “Bela figura de rei de Israel estás fazendo! Levanta-te, toma alimento e fica de bom humor, pois eu te darei a vinha de Nabot de Jezrael” (vv. 4-7).

Jezabel, de origem pagã (fenícia), não pode compreender que em Israel a realeza não é absoluta, mas tem por limite a autoridade de Javé Deus, ou seja, o direito de Nabot. “O príncipe não poderá tomar nada da herança do povo, desapropriando-o do que é propriedade sua” (Ez 46,18).

O rei em Israel deve exercer sua função como servo de Deus em favor da justiça e dos pobres (cf. 1Rs 3-4; 12,7; Sl 72 e a crítica da monarquia em 1Sm 8). O “direito do rei” (cf. Dt 17,14-20) foi por muito tempo considerado como reflexo dos abusos do poder real sob Salomão e seus sucessores. Mas textos recentemente descobertos indicam que ele representa também as práticas dos reinos cananeus anteriores a Israel (conhecidas através dos arquivos cuneiformes de Alalakh e Ugarit).

Ela escreveu então cartas em nome de Acab, selou-as com o selo real, e enviou-as aos anciãos e nobres da cidade de Nabot. Nas cartas estava escrito o seguinte: “Proclamai um jejum  e fazei Nabot sentar-se entre os primeiros do povo, e subornai dois homens perversos contra ele,  que dêem este testemunho: Tu amaldiçoaste a Deus e ao rei! Levai-o depois para fora e apedrejai-o até que morra” (vv. 8-10). 

O plano de Jezabel se baseia numa séria de leis e costumes judaicos. Nos tempos de desgraça (uma seca, cf. cap. 17-18; ou praga, epidemia etc.) proclamava-se um jejum e uma oração pública (Jl 1,1,4;2,15; Jz 20,26, Jn 3) na qual se fazia uma confissão geral (comunitária) dos pecados para aplacar a Deus. Os chefes do povo devem procurar a causa da desgraça e eliminá-la. Nabot, sem saber de nada, será convidado a presidir a assembléia para buscar uma saída para a situação. Aí mesmo duas testemunhas falsas declararão que ele é o culpado (cf. a fome em 2Sm 21,1-13; a peste em 2Sm 24; a tempestade em Jn 1).

A calúnia será: “Nabot amaldiçoou a Deus e ao rei”; blasfêmia contra Deus e o chefe do povo acarreta pena de morte por lapidação (Ex 22,27; Lv 24,14). A lei exigia pelo menos duas testemunhas para que um depoimento fosse válido (Dt 17,6; 19,15; Mt 26,60; cf. Dn 13). A cobiça (10º mandamento) leva a vários outros pecados (aqui contra 5º, 7º e 8º mandamentos, cf. Ex 20,13-17).

Os homens da cidade, anciãos e nobres concidadãos de Nabot, fizeram conforme a ordem recebida de Jezabel,  como estava escrito nas cartas que lhes tinha enviado. Proclamaram um jejum e fizeram Nabot sentar-se entre os primeiros do povo. Chegaram os dois homens perversos, sentaram-se diante dele  e testemunharam contra Nabot  diante de toda a assembléia, dizendo: “Nabot amaldiçoou a Deus e ao rei”.  Em virtude disto, levaram-no para fora da cidade  e mataram-no a pedradas. Depois mandaram a notícia a Jezabel:  “Nabot foi apedrejado e morto” (vv. 11-14).

A presença das testemunhas e dos anciãos do povo deram a aparência de justiça. Com a morte de Nabot e provavelmente de seus filhos que teriam herdado a vinha contestada (Js 7,24-25; 2Rs 9,25-26) a vinha voltou ao estado, ou seja, ao rei.

Ao saber que Nabot tinha sido apedrejado  e estava morto, Jezabel disse a Acab:  “Levanta-te e toma posse da vinha  que Nabot de Jezrael não te quis ceder por seu preço em dinheiro; pois Nabot já não vive; está morto”. Quando Acab soube que Nabot estava morto, levantou-se para descer até a vinha de Nabot de Jezrael  e dela tomar posse (vv. 15-16).

A Bíblia do Peregrino (p.658) comenta aludindo a Gn 3: Jezabel fala duas vezes no relato ao marido no relato. A primeira vez em tom de zombaria “Reinar é isso?” Seu conceito de poder não tem limites morais (Mq 2,1). Na segunda vez lhe oferece o fruto proibido, a vinha cujo preço é sangue inocente. E em p.675, referindo-se a 1Rs 11: A maldição das esposas estrangeiras, que havia começado seus estragos durante o reinado de Salomão, continuou envenenando a monarquia. E Jezabel não será a última, já quer uma filha sua chegará a ser rainha de Judá.

Israel era um povo pequeno ameaçado em sua fé e identidade pelas culturas potentes dos vizinhos. Cultuar os deuses estrangeiros era comparado com um adultério, infidelidade à aliança com Javé, seu Deus. Para os autores (homens) bíblicos, é a sedutora mulher estrangeira que representa este perigo (cf. Pr 2,16-19; 5; 6,20-7,27). No NT, a visão da mulher estrangeira muda (cf. a samaritana em Jo 4 e as quatro mulheres na genealogia de Jesus em Mt 1).

Esta leitura de hoje, porém, chama atenção à grilagem de terras que aconteceram e ainda acontecem no Brasil. Se não conseguem convencer os posseiros a venderem suas terras, pessoas poderosas sem escrupulosos partem para ameaça e violência (pistoleiros), subornos e fraudes de cartórios sob aparência da lei. O novo documento aprovada na assembleia da CNBB em 2014 deve jogar uma luz nesta situação conforme a “opção preferencial pelos pobres” (CELAM, Puebla 1979). A leitura de amanhã mostrará que Deus não fica indiferente.

 

Evangelho: Mt 5,38-42

Mt apresenta Jesus no sermão da montanha como novo Moisés declarando sua nova interpretação da Lei em forma de antíteses: “ouvistes que foi dito… eu, porém vos digo” (vv. 21-25.27-28.31-34.38-39.43-44).

Ouvistes o que foi dito: “Olho por olho e dente por dente!” Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! (vv. 38-39a).

No evangelho de hoje ouvimos a quinta antítese. Trata-se da “lei do talião” (Ex 21,24-25; Lv 24,19-20; Dt 19,21), que já se encontra escrita no Código do rei babilônico Hamurabi (1792-1750 a.C, época dos patriarcas, Abraão e sua família). Na sua origem tentava frear os excessos de vingança e violência (cf. o grito da Lamec em Gn 4,23-24); o princípio da equivalência rege muitos textos do AT, até os Salmos em que o orante apela a Deus para que lhe faça justiça (Sl 5,1; 10,15; 31,18; 54,7; 58,7s; 59,12s; 69,23-29; 79,12; 83,10-19; 104,35; 109,6-20; 125,5; 137,7-9; 139,19-22; 140,10-12).

Como se pode frear a violência, superar a vingança ou até mesmo a “justa” punição? O freio que Cristo propõe é vencer o mal com o bem (cf. Sl 35,11-13). Jesus propõe uma atitude nova, a fim de eliminar pela raiz o círculo infernal da violência: a resistência ao inimigo não deve ser feita com as mesmas armas usadas por ele (não pagar com a mesma moeda), mas através de um comportamento pacífico e criativo.

Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda! Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto! Se alguém te forçar a andar um quilômetro, caminha dois com ele! Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pede emprestado (vv. 39b-42).

Os três casos propostos representam muitos outros na ordem do sofrer, possuir e executar. Túnica e manto são as duas peças do vestuário normal, o manto servia de penhor (cf. Ex 22,25-26; Dt 24,12-13). O paradoxo é evidente (cf. 19,24; sobre a generosidade, cf. Pr 3,27s; sobre o emprestar, cf. Eclo 29,1-13).

Os exemplos tratam do mal do qual somos pessoalmente prejudicados. Não quer dizer que você esteja indiferente e não deva interferir quando alguém bate no seu irmão, ou que um soldado não deva defender uma vítima que está sendo agredida. Jesus não proíbe que alguém se oponha dignamente aos ataques injustos (como ele mesmo se defendeu em Jo 18,22s, mas apenas verbalmente) e menos ainda que alguém combata o mal no mundo. Jesus, porém, queria provocar outra atitude diferente da vingança, da raiva (cf. vv. 21-26), do ódio (cf. 43-48), sob a lei máxima do amor (22,36-40).

Como lidar com a violência que nos atinge? Entre os primeiros cristãos, muitos ainda negavam o serviço militar num império que os perseguia. Depois, com a aliança entre Estado e Igreja, os cristãos foram convidados a participar da política, das leis, da justiça e do exército e não podiam mais renunciar da justiça e do exercício da força em todos os casos. S. Agostinho desenvolveu critérios para participar de uma guerra “justa” a respeito dos fins e dos meios (p. ex. é lícito combater um genocídio, mas punir sem ódio). A guerra do Iraque, porém, não foi justa (inventou-se a mentira de uma ameaça por armas químicas para invadir este país rico em petróleo); os americanos falavam de uma “cruzada contra o eixo do mal”, mas torturaram e sequestraram suspeitos, sem processo jurídico, para uma prisão em Guantânamo (parte de Cuba administrada pelos EUA).

Desde a Idade Média, as guerras entre católicos e protestantes até as duas guerras mundiais, representantes das Igrejas (de ambos os lados) abençoavam as armas contra inimigos muitas vezes também cristãos e também “abençoados”. A provocação de Jesus mostra o contraste entre o mundo e o reino de Deus e nos inspira a pensarmos numa outra solução que não seja violência e retribuição com a mesma moeda. Um exemplo possível foi Mahatma Gandhi que conseguiu a independência da Índia sem guerrilha, sem atentados, renunciando à violência em todas as manifestações. Gandhi não era cristão (era hindu jaina), mas conheceu o sermão da montanha de Jesus.

O site da CNBB comenta: Os critérios humanos não são suficientes para resolver os problemas da própria humanidade, principalmente os que estão relacionados com a justiça, pois a justiça dos homens não tem como centro a pessoa humana, mas sim o que elas têm ou deixam de possuir. Os bens são comparáveis entre si, mas as pessoas não, pois cada uma é um ser único, incomparável na sua dignidade. Além disso, os elementos que estão presentes em um relacionamento são por demais complexos para serem abrangidos na sua totalidade a partir de categorias do conhecimento humano, uma vez que a própria razão é insuficiente para a compreensão do ser humano. Jesus nos mostra que somente o amor e a misericórdia possibilitam superar essas deficiências e construir um relacionamento justo e fraterno.

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