18 de março de 2018 – Quaresma 5º Domingo Ano B

Leitura: Jr 31,31-34

Depois de percorrer a história do AT nas primeiras leituras dos domingos passados (a aliança com Noé, o sacrifício de Abraão, os dez mandamentos no monte Sinai, o exílio na Babilônia) ouvimos hoje a promessa de uma “nova aliança” dentro do livro das consolações em Jeremias (Jr 30-31). Trata-se provavelmente de uma coleção poética pertencente à escola deuteronomista. As primeiras poesias foram colecionadas e elaboradas durante a reforma de Josias (622-609 a.C.; cf. 2Rs 22-23) para exaltar a volta dos exilados de Israel do Norte (deportados pelos assírios em 722 a.C., cf. 2Rs 17) e sua reunificação com o reino do Sul, Judá, em torno de Sião (a colina do Templo em Jerusalém; cf. 31,5-6.15.18.20).

Eis que virão dias, diz o Senhor, em que concluirei com a casa de Israel e a casa de Judá uma nova aliança; não como a aliança que fiz com seus pais, quando os tomei pela mão para retirá-los da terra do Egito, e que eles violaram, mas eu fiz valer a força sobre eles, diz o Senhor (vv. 31-32).

Deus sela a reconciliação concluindo “nova aliança”. Em v. 31 se mencionam “Israel” (reino do Norte) e Judá (reino do Sul), em v. 33 só Israel (“casa” quer dizer os moradores: a família, o povo): é mais fácil explicar um acréscimo (Judá) que uma supressão. Primeiramente os oráculos de restauração se dirigiam ao reino do Norte, mas depois da invasão do reino do Sul e da destruição de sua capital Jerusalém por Nabucodonosor (586 a.C.), o anúncio de retorno e de restauração foi em seguida estendido e ampliado aos exilados na Babilônia (30,3-4.8-9.17; 31,1 etc.).

Eles violaram a aliança, mas “eu fiz valer a força sobre eles”, em hebraico “fui senhor” ou “fui marido”. Em termos de aliança, o Senhor é o soberano que cumpriu seus compromissos da antiga aliança; em termos de matrimônio, o Senhor é o marido ao qual a esposa foi infiel (cf. Os 1-3).

Esta será a aliança que concluirei com a casa de Israel, depois desses dias, diz o Senhor: imprimirei minha lei em suas entranhas, e hei de inscrevê-la em seu coração; serei seu Deus e eles serão meu povo (v. 33).

A aliança fracassada exigia adesão exclusiva ao Senhor, traduzida no cumprimento integral da lei. A lei era formulada com toda a clareza e respaldada por bênçãos e maldições (cf. Dt 27-28; 30.33). Mas era externa, gravada numa pedra (Ex 24,12; 31,18; 32,15; 34,1.4.28s; Dt 4,13; 5,22; 9,9.15; 10,1-5), com a qual os ânimos dos homens não sintonizam.

A novidade desta “nova aliança” é que a lei será inscrito dentro do ser humano (“em suas entranhas”), de modo que se converta no impulso ou dinamismo da conduta; o “coração” estará remodelado pela marca viva da lei. Na Bíblia, o ser humano escuta com o ouvido e pensa (planeja, age) com o coração. A palavra de Deus morando dentro do centro do ser humano, eis a novidade (cf. Ez 11,19; 16,59-63; 36,26; Jo 1,14; 14,23; 2Cor 3,3).

Há de lembrar que a arca da aliança que continha as “tábuas de pedra” com a lei (dez mandamentos; cf. Ex 20; 25) se perdeu na invasão dos babilônios em 587 a.C. (cf. 2Rs 24,13; 25,9). Jeremias consola que “a arca da aliança de Javé, ela não voltará a memória, não se mais lembrarão mais dela, não a procurarão e nem será reconstruída” (3,16). Se a lei está inscrito no coração das pessoas, não precisa mais da arca. O corpo humano torna-se a arca da lei (cf. Maria é chamada arca da aliança, porque continha a palavra de Deus dentro de si, cf. Ap 11,19-12,1). Na Etiópia, a arca estaria escondida, conforme lendas locais ainda hoje.

O final deste v. contém a fórmula clássica da Aliança (cf. Dt 26,17-18; 27,9; 28,9 etc.), muitas vezes relembrada por Jeremias (cf. 7,23; 11,4; 13,11; 24,7; 31,1.33; 32,38).

Não será mais necessário ensinar seu próximo ou seu irmão, dizendo: “Conhece o Senhor!”; todos me reconhecerão, do menor ao maior deles, diz o Senhor, pois perdoarei sua maldade, e não mais lembrarei o seu pecado (v. 34).

Assim se restabelecem as relações pessoais, substância autêntica da aliança. Afirma-se o “conhecimento” do Senhor, que é reconhecimento e se traduz em compromisso. Faltava nos chefes e no povo (2,8; 4,22; 9,2). A transformação fará com que tal conhecimento atue como dom instintivo, não como lição aprendida.

Um “perdão” total, sem reservas, é o primeiro ato da reconciliação, no qual se manifesta o “amor eterno” (v. 3) do Senhor que perdura séculos. Estes versículos têm muitas citações e alusões no NT, p. ex. Rm 11,27; Hb 8,8-12; 10,16-17 (cf. a consagração do vinho na oração eucarística: “o sangue da nova e eterna aliança“).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 767) comenta: A nova aliança que Deus vai estabelecer depois de ter soberanamente (v. 32b) perdoado a quebra da antiga (v. 34) não consiste numa modificação das diretrizes dadas no Sinai e dos compromissos então assumidos, nem num novo culto puramente espiritual: ela consiste antes no fato de as diretrizes e compromissos antigos serem agora inscritos “no coração” no ser íntimo do homem (cf. Is 48,17; 51,7; 54,13; 55,3; Pr 9,1-6; Ct 8,2; Rm 8,2; 1Cor 9,21). A estrutura da personalidade será regenerada de tal forma que cada um, sem ser orientado por outras pessoas, conhecerá e realizará a vontade do Senhor (cf. Zc 13,9; 1Jo 2,20.27; 3,9…). – Ao instituir a Eucaristia, penhor da realização da nova aliança, Jesus citará esta profecia (Lc 22,20; 1Cor 11,25). Os vv. 31-34 são citados integralmente em Hb 8,8-12, numa meditação sobre a nova aliança.

 

2ª Leitura: Hb 5,7-9

Na segunda secção (4,15-5,10) sobre o sumo sacerdote Jesus (cf. 2,17; 3,1), o autor anônimo desta carta (ou “exortação”, 13,22) escreve sobre o sacerdócio não só a respeito da união com Deus, mas da solidariedade com os seres humanos.

Hb é o único escrito no NT que declara Jesus sumo sacerdote. Na época, ninguém levava a ideia de Jesus como sacerdote. Ele não pertencia à classe dos sacerdotes (o sacerdócio do AT era hereditário), era operário e depois visto como profeta e mestre (cf. Mc 4,38; 6,15; 8,27-29). Nas suas palavras e ações rejeitava as preocupações com a pureza ritual (Mc 15-17p; 7,1-23) e recusou-se a dar valor absoluto ao repouso sagrado no dia de sábado (Mt 12,1-13; Jo 5,16-18; 9,16; cf. Mt 9,13; 12,7). Nem o fato de Jesus sacrificar a própria vida foi considerada sacerdotal, porque não aconteceu num lugar santo; foi o contrário, a execução de um condenado pelo sumo sacerdote em oficio, Caifás, chefe do sinédrio em Jerusalém (Lc 3,2; Mc 14,60s; Jo 18,13.24). A morte na cruz foi vista como maldição (cf. Dt 21,23; Gl 3,13), ao contrário da bênção que se atribuía ao cumprimento de um sacrifício ritual.

Ninguém se torna sumo sacerdote por si mesmo, elevando se orgulhosamente acima dos outros homens…; ao contrário, o acesso ao sacerdócio exige uma humildade perante Deus, atitude da qual o sacerdote permanece unidos aos outros homens… Uma análise mais atenta dos textos bíblicos permitia discernir que a solidariedade com os homens era uma exigência para o exercício do sacerdócio e que o próprio Deus havia barrado o caminho aos orgulhosos (Nm 16-17). O autor de Hebreus releu os textos antigos à luz da Paixão de Cristo, descobrindo esses aspectos (Vanhoye, p. 62.65).

Cristo, nos dias de sua vida terrestre, dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte. E foi atendido, por causa de sua entrega a Deus. Mesmo sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que ele sofreu (vv. 7-8).

Aqui o autor descreve de forma mais precisa o caminho da humildade e solidariedade humana que conduziu Jesus ao sacerdócio. Evoca a paixão de Cristo. Apesar de Jesus ser o messias, “Filho” (v. 8) de Deus, “dirigiu (lit.: ofereceu, apresentou) preces e súplicas com forte clamor e lágrimas” (cf. sua agonia no monte das Oliveiras em Lc 22,44p e seus gritos na cruz em Mc 15,34.37). Nesta situação, realmente estava “cercado de fraqueza” (v. 2), situação que todo sumo sacerdote deve aceitar para tornar-se capaz de verdadeira compaixão.

Mas o papel do sumo sacerdote não consiste simplesmente em assumir sua parte da miséria humana. Consiste sobretudo em transformar essa situação por meio de uma oferenda de sacrifício. Esse aspecto de oferenda não falta no caso de Cristo, da mesma forma que a transformação operada: Cristo “apresentou” e “foi atendido” (Vanhoye, 63).

O que Jesus apresentou? Suas “preces e súplicas com forte clamor e lágrimas”, todos os dramáticos acontecimentos no Calvário que colocavam em jogo a sua vida e sua obra (cf. Mt 27,40) transformaram-se em matéria de oferenda. Sem nos dizer o conteúdo dessas preces, o autor de Hb as apresenta como autêntica oração dirigida “àquele que era capaz de salvá-lo da morte”. A oferenda do Filho agradou ao Pai e o curso dos acontecimentos foi transformado, mas de forma paradoxal: foi morrendo que Cristo triunfou sobre a morte (cf. 2,9.14; At 2,24s; Jo 12,27s; 13,31s; 17,5; Fl 2,9-11). O acontecimento não foi transformado por fora por uma intervenção divina e miraculosa, mas por dentro, devido a “obediência” e “entrega” (lit. submissão, ou seja, temor de Deus) de Cristo à ação transformadora de Deus.

A prece de Jesus em agonia desembocou na união das duas vontades (Mt 26,42p; cf. Hb 10,9-10) e resultou numa obra comum: o Pai atende o Filho, ao mesmo tempo que o Filho cumpre a vontade do Pai. Assim o autor de Hb descreve a Paixão de dois modos aparentemente contraditórios, mas na verdade complementares: como uma súplica atendida e como dolorosa obediência. Cristo apresentou “súplicas… e foi atendido” e, ao mesmo tempo, “apreendeu… a obediência pelo que sofreu”. Assim o autor revela o mistério de Cristo, que é fonte e luz para nossa oração também. Fé é confiança e obediência a Deus, à sua palavra, e “entrega a Deus”.

Mas, na consumação de sua vida, tornou-se causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem (v. 9).

A paixão, vista como sublime prece e mais sublime ato de obediência, ou seja, a “entrega” da sua vida é o sacrifício redentor. Aqui temos o resultado da oferenda obediente de Jesus: ele faz dele um sumo sacerdote perfeito e eterno “na ordem de Melquisedec” (vv. 6.10; citando Sl 110,4). Pela sua solidariedade humilde, Cristo chegou ao sacerdócio.

Não houve somente transformação do acontecimento (em vez do escândalo da cruz o triunfo da ressurreição), mas, no seio do acontecimento, a própria humanidade de Jesus foi transformada também. Cristo, “na consumação de sua vida” (lit. levado a perfeição, cf. 2,10; Jo 19,30), “tornou-se causa de salvação eterna para todos que lhe obedecem”, ou seja, tornou-se o mediador perfeito.

Cristo levou além de qualquer limite sua obediência ao Pai e sua solidariedade para com seus irmãos; assim, ele levou sua relação com Deus e sua relação com os homens a uma perfeição insuperável, selando a união dessas duas relações no mais profundo do seu ser (Vanhoye, p. 64).

 

Evangelho: Jo 12,20-33

Ouvimos no Evangelho um diálogo situado logo após a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (vv. 12-19). No cap. 12, Jesus faz suas últimas considerações em público (no cap. 13 começa o discurso de despedida na última ceia com os discípulos). Há semelhanças com o primeiro discurso do cap. 3: como Nicodemos em 3,1, agora uns gregos procuram o contato positivo com Jesus; surge um mal-entendido, uma interpretação da cruz e do julgamento já no tempo presente (cf. evangelho do domingo passado).

Havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém, para adorar durante a festa (v. 20).

É a “festa da páscoa” (12,1: unção em Betânia “seis dias antes da Páscoa”, 12,12: entrada triunfal em Jerusalém “no dia seguinte”) para a qual todo judeu devia ir (cf. Dt 16,2; Lc 2,41s), ou seja “subir” porque Jerusalém fica 800m acima do nível do mar, construída sobre uma colina, o monte Sião. Entre a “grande multidão” (12,1) de judeus, encontram-se também “alguns gregos” (lit. “helenistas”). Como vieram a Jerusalém “para adorar” (cf. 4,20-24), não se trata de turistas, mas são helenistas como em At 2,3; 6,1: judeus, que vivem fora da Palestina e que têm adotado certa cultura grega, ou pagãos que simpatizam com o monoteísmo judaico, os “tementes a Deus” (cf. At 10,2.22.35; 13,16.26; 13,Lc 7,2.4s). Havia em Jerusalém sinagogas particulares onde a Bíblia era lida em grego (At 6,9; cf. Mc 15,21). Em Jo 7,35, os judeus se perguntaram a respeito de Jesus: “Para onde irá ele, que não poderemos encontrar? Irá por acaso, aos dispersos entre os gregos para ensinar aos gregos?”

Aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e disseram: “Senhor, gostaríamos de ver Jesus.” Filipe combinou com André, e os dois foram falar com Jesus (vv. 21-22).

Eles estavam curiosos, porque Jesus se tornou uma celebridade (cf. v. 9) que acabou de entrar em Jerusalém aclamado como “rei” (palavra chave na paixão).

Os gregos procuram pessoas para entrar em contato. André e Filipe (cf. 6,7s) são nomes gregos. A cena e as palavras lembram a vocação dos primeiros discípulos que foram convidados por Jesus: “Vinde ver!” (1,39), e “André … era um dos dois” (1,40). Filipe disse a Natanael: “Vem e vê!” (1,46). Na ceia, Jesus responderá a Filipe: “Quem me viu, viu o Pai” (14,9; cf. 12,45). A mística de João é para quem aceita Jesus como mediador de Deus. “Quem vê o Filho e nele crê tem a vida eterna” (6,40; cf. 3,14s).

Os gregos querem “ver” (para crer?; cf. Tomé, cujo apelido grego é “Dídimo”, em 20,25). A cultura grega é dominada pelo ver (arte clássica, teatro), enquanto a fé judaica pelo ouvir (a palavra de Deus invisível). A fé cristã reunirá a palavra pessoal com a visão (o rosto de Jesus, em 14,9; cf. a encíclica dos papas Bento XVI e Francisco “Lumen Fidei” n.º 29-31). “O verbo (logos) se fez carne … e nós vimos sua glória … cheia de graça e verdade” (1,14).

Os gregos não vão diretamente a Jesus como Nicodemos (3,1). Sendo não-judeus, eles precisam de intermediação. Como numa corte real, o desejo de audiência é intermediado pelo pessoal da corte. Eles testemunham que “todo mundo vai atrás dele” (v. 19).

Esta cena serve para abrir o horizonte do “mundo” (vv. 23.31s), portanto não precisa mais mencionar os gregos em seguida. Os leitores de Jo sabem que os pagãos foram evangelizados não pelo próprio Jesus, mas depois pelos apóstolos e missionários da Igreja primitiva. Por isso eles não veem Jesus agora, só podem entrar no seguimento acreditando no crucificado e glorificado (v. 32).

Jesus respondeu-lhes: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado (v. 23).

Jesus “responde-lhes” revelando-se também aos pagãos, ao mundo. Mas ele se refere a seu próprio fim da vida aqui na terra. Agora “chegou a hora” da qual já se tem falado umas vezes (cf. vv. 27; 2,4; 7,30; 8,20; 13,1; 17,1; cf. 12,31; 13,31s; 14,30s).

Como diante de Nicodemos em 3,14, Jesus anuncia a morte do “Filho do Homem” (também nos anúncios da paixão dos outros evangelhos: Mc 8,31p; 9,31p; 10,33p; 14,41p; cf. 13,25; 14,62; Dn 7,13s). Em Mc 14,41p, Jesus fala no jardim Getsêmani: “Chegou a hora; eis, o Filho do Homem está sendo entregue nas mãos dos pecadores.”

Mas em Jo, a morte na cruz é interpretada como “glorificação” (12,41; 13,31; 16,14; 17,1.5). Antes, a palavra “glória” foi relacionada aos “sinais” que Jesus realizava (2,11; 11,4).

Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto (v. 24).

A morte miserável na cruz como glorificação é interpretada por uma imagem vegetal. Como João não transmite a instituição da Eucaristia na última ceia (em cap. 13 só o lava-pés; mas em cap. 6 já apresentou o discurso sobre o “pão da vida”), esta frase tem função eucarística, falando da morte da matéria do pão (“grão de trigo”), que dará vida, sepultado na terra para dar fruto (cf. um importante desenvolvimento da imagem em 1Cor 15,36-44).

Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo
conservá-la-á para a vida eterna
(v. 25).

A imagem do grão de trigo é logo generalizada e aplicada a mesma sorte que cabe a seus seguidores, como explica num aforismo paradoxal (repetidos nos evangelhos sinóticos, que falam explicitamente da cruz: Mc 8,34-35p): “Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna” (v. 25). O instinto de conservação a todo custo, ou seja, o egoísmo puro destrói o sentido da vida e a dimensão da vida, ao circunscrevê-la “neste mundo” (cf. v. 31; “idiota” em grego é uma pessoa autorreferencial, só consegue enxergar seu próprio círculo, seu umbigo; cf. Lc 12,13-21). Quem submete a esta vida um valor superior, se enche de sentido e se salva mais além de seu segmento terreno, em forma de “vida eterna”.

Se alguém me quer servir, siga-me, e onde eu estou estará também o meu servo. Se alguém me serve, meu Pai o honrará (v. 26).

Portanto o servo há de seguir, ou seja, acompanhar Jesus aonde quer que ele vá: à cruz (vv. 32s) que é o caminho para a glória. Jesus está na glória do Pai (14,3; 17,24); tal é a honra que o Pai concederá ao discípulo, honra autêntica e suprema.

Agora sinto-me angustiado. E que direi? ‘Pai, livra-me desta hora!’? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu nome!” (vv. 27-28a).

Uns exegetas consideram os vv. 24-26 uma inserção da redação eclesial (última fase do evangelho, cf. caps. 15-17; 21), porque o v. 27 parece a continuação imediata de v. 23: Novamente Jesus fala da sua “hora” e da “glorificação”. Provavelmente, o evangelista omitiu a oração de Jesus no jardim Getsêmani (cf. Mc 14,32-42p) que havia originalmente no seu relato da paixão, mas usa elementos dela aqui (vv. 23.27-29; 14,31; 18,11b).

Apesar de sua soberania no quarto Evangelho, Jesus mostra também fortes emoções (cf. 11,33; 13,21) e fica “angustiado” diante da morte próxima; mas a palavra grega expressa medo e angustia (14,1.27),mas também ira (cf. Mt 2,3), talvez por causa do mal-entendido que Jesus devia pedir salvação para ele próprio.

Ele se dirige a seu Pai (como na oração no jardim, cf. Mc 14,33-36p). Mas ao contrário dos outros evangelhos, aqui não pede de ser salvo (Mc 14,36p: “deixar passar este cálice”; cf. Jo 18,11b). Ele sabe que sua morte é a finalidade do seu envio. Então pede que o Pai glorifique seu “nome”, isto é, Ele mesmo e seu “Filho” (variação de textos), que o Pai mostre seu poder, sua glória, através da doação de vida do seu Filho. A Cruz não será uma derrota e motivo de desânimo, mas o sinal de que o alcance de sua obra é o mundo todo (v. 32; 3,16).

A glorificação do Pai (v. 28; 17,6) é também a do Filho (v. 23; 13,31s; 17,1), como a fé no Pai é a mesma no Filho (cf. 5,24.38; 6,29.35; 11,25s.42) e no nome dele (2,23; 3,16.18), porque há unidade entre aquele que envia e o enviado (5,17-19; 10,38; 14,9). A glorificação do nome do Pai (cf. o pedido na oração do Pai nosso, Lc 11,2p) significa que ele leve ao bom termo sua obra (cf. 19,30).

Então, veio uma voz do céu: “Eu o glorifiquei e o glorificarei de novo!” A multidão que lá estava e ouviu, dizia que tinha sido um trovão. Outros afirmavam: “Foi um anjo que falou com ele.” Jesus respondeu e disse: “Esta voz que ouvistes não foi por causa de mim, mas por causa de vós (vv. 28b-30).

Como em Lc 22,43, acontece uma intervenção “do céu”, não um anjo, mas o Pai atende a oração (cf. Hb 5,7). Em Jo, a “voz do céu” não fala no batismo ou na transfiguração (cf. Mc 1,11p; 9,7p), mas nesta hora antes do sofrimento confirma a unidade do Pai com o Filho.

Em Jo, esta angústia de Jesus e o consolo divino não acontecem no monte das oliveiras no espaço reservado do jardim Getsêmani, mas em público. A multidão, presente desde a entrada em Jerusalém (vv. 12.17s e até o final do cap. 12), entende mal (cf. 5,37) e confunde a voz com o trovão (cf. Ap 6,1; 10,3; 14,2; 16,17s) ou com um anjo (cf. Lc 22,43). Jesus esclarece que a voz do céu falava “não foi por causa de mim, mas por causa de vós”. Jesus não tem dúvidas a respeito do seu caminho, mas o povo precisa acreditar; cf. a oração de Jesus ao Pai em 11,32, “por causa da multidão que me rodeia, para que creiam que me enviaste.” Na sua intenção de demonstrar a unidade do Pai e do Filho, Jo não apresenta um Jesus fraco no jardim Getsêmani, mas forte diante da multidão.

É agora o julgamento deste mundo. Agora o chefe deste mundo vai ser expulso, e eu, quando for elevado da terra, atrairei todos a mim” Jesus falava assim para indicar de que morte iria morrer (vv. 31-33).

Em Jo existe uma escatologia presente (cf. 3,17s; 5,24s). O julgamento não (só) será no fim do mundo, mas desde já (duas vezes “agora”). Por onde o enviado (Jesus) passa, acontece julgamento porque se decide sobre salvação ou desgraça definitivas. Haverá uma mudança no governo do cosmo.

“É agora o julgamento deste mundo (lit. cosmo)” Com a “hora” (vv. 23.27) da morte de Jesus chegará a vitória sobre o mal. A salvação se entende como exorcismo universal: o domínio do diabo neste mundo é quebrado, “agora o chefe deste mundo vai ser expulso” (o mesmo verbo nos exorcismos em Mc 1,34; 3,22; Mt 9,33s; 12,24-28; Lc 11,20). Onde o diabo estava? Não no céu (cf. Lc 10,18; Ap 12,7-12).

No conceito dualista de Jo, o diabo pertencia a este mundo. Jo entende por “este mundo” (cf. 8,23; 9,39; 18,36; 1Jo 4,17) o contrário do mundo espiritual (acima, céu, Deus), e por “mundo” (3,16; 6,33; 8,12; 9,5), a humanidade na sua qualidade negativa. Assim, o julgamento atinge este espaço inferior, onde a humanidade vive longe de Deus e da imortalidade. Neste espaço, quem tinha o poder é o diabo (8,44; 13,2; cf. 6,70; Satanás em 13,27); só Jo o chama “chefe deste mundo” (14,30; 16,11; cf. 2Cor 4,4; Ef 2,2; em 1Jo 2,13s; 3,12; 5,18s é “o maligno”). É o adversário de Deus, que reina nas trevas e no pecado (8,31-36), na mentira e na morte (8,41-44) e gosta de matar (8,44).

Para onde é expulso? Em Jo, não existe um inferno. Mas o poder do diabo está quebrado, ele não consegue mais manter a humanidade presa neste mundo de pecado e morte. Sua atração acabou, porque pela elevação de Jesus se abre o “caminho” (cf. 14,3-6) para o alto, para a vida eterna na esfera do Pai. O poder do diabo acabou, porque abusou do seu poder tentando matar aquele que não podia matar, o único “que desceu dos céus” (3,13) e “tem a vida em si mesmo” (5,26); este sempre fazia a vontade do Pai (4,34; 5,36; 9,3s; 14,30s; cf. Fl 2,8s; Hb 5,8) e nunca as obras do diabo (cf. 8,33-36.41.47). Agora o diabo não pode impedir que este (filho do) homem, que desceu dos céus, volte agora legitimamente para lá e se torne caminho para todos os fieis (14,6; cf. Rm 5,19; Ef 1,20s; 2,5s). Assim, no ícone ortodoxo da ressurreição, se vê o diabo deitado e amarrado como um carcereiro que assiste a fuga dos presos (os antepassados dos túmulos, Adão e Eva) libertados por Jesus com seu estandarte da cruz.

Como na conversa com Nicodemos e outras ocasiões (3,14; 8,28), Jo não usa a palavra “cruz” (só no cap. 19; a cruz era vista como um escândalo e maldição, cf. 1Cor 1,23; Gl 3,13; Dt 21,22s), mas interpreta a morte na cruz já como início da “elevação”. Pela cruz, Jesus cumprirá a vontade do Pai e voltará para glória dele (ressurreição, ascensão; cf. Ap 2,23; 5,31; Fl 2,9 e glorificação, cf. At 3,13; 1Cor 2,8; Fl 3,21; 1Tm 3,16; Hb 5,5) para reinar como “Filho do Homem nas nuvens do céu” (cf. Dn 7,13s; Mc 14,62s etc.). Com sua morte, seu convite à fé não termina, mas se estende ainda mais, em dimensões cósmicas, ele se torna um ímã universal: “atrairei todos a mim”.

Quem crê será atraído também (cf. 6,44), Jo não diz “ao céu”, porque seu interesse é “estar com” Deus e Jesus (cf. 17,24; 1Ts 4,14.17). Jesus é “a ressurreição e a vida” (11,25). O contrário experimentam os que não creem: “morrereis em vosso pecado” (8,21.24), enquanto Jesus se eleva sobre o mundo (cosmo) e volta para o Pai, onde só existe vida (eterna). Por isso, “o mundo passa com suas concupiscências, mas o que faz a vontade do Pai permanece eternamente” (1Jo 2,17). Assim, o resto do cap. 12 (omitido na liturgia), fala da necessidade da fé.

 

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