18 de Novembro de 2018, Domingo: Quanto àquele dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas somente o Pai (v. 32).

1ª Leitura: Dn 12,1-3

Estes três pequenos versículos são um dos grandes e importantes textos do AT sobre a ressurreição da carne (outro, 2Mc 7,9, não está na Bíblia Hebraica nem na protestante).

Só nos livros mais novos do Antigo Testamento afirmam a doutrina sobre uma vida após a morte (Sb), a ressurreição (2Mc) e o fim do mundo (Dn). O livro de Daniel se encontra na Bíblia grega e latina (e portuguesa) entre os livros proféticos, mas na Bíblia hebraica (TNQ) faz parte dos “outros escritos”, ou seja, sapienciais. De fato, é de outro gênero literário do que as pregações dos profetas antigos: Os capítulos 1-6 são narrativas; os capítulos 7-12 apresentam visões apocalípticas (revelações sobre o fim do mundo); na Bíblia hebraica (e também na protestante) faltam os últimos capítulos 13-14, como também o cântico dos três jovens na fornalha em 3,24-90, que só se encontram na tradução grega. Partes do livro original estão escritos em aramaico, o que indica uma data mais recente, porque o hebraico já estava saindo do uso.

Enquanto os livros proféticos antigos apresentaram a pregação de um profeta enviado por Deus em missão, o autor de Dn se esconde atrás de um pseudônimo (já em Jn) usando o nome de “Daniel”, um sábio antigo (Ez 14,4-20; 28,3), mas os acontecimentos relatados em Dn 11 indicam a verdadeira data desta obra: durante a perseguição do rei selêucida (grego-sírio) Antíoco IV Epífanes entre 167 e 164 a.C. (relatada nos livros 1-2 Macabeus).

Naquele tempo, se levantará Miguel, o grande príncipe, defensor dos filhos de teu povo; e será um tempo de angústia, como nunca houve até então, desde que começaram a existir nações (v. 1a).

O texto de Dn 12,1-3 dá continuidade ao capítulo 11 e particularmente aos v. 40-45, que descrevem o “tempo do fim” (11,40) e nos quais se entrevê a morte do rei Antíoco IV, que procurou impor a cultura e a religião pagãs ao povo judeu. É a esse tempo que se refere o início do nosso texto de hoje: “Naquele tempo…” (12,1; desta vez não é introdução costumeira da nossa liturgia, mas texto original).

O livro de Dn apresenta dois arcanjos, “Gabriel” que explica as visões (8,15s; 9,21s, no NT, anuncia os nascimentos em Lc 1,19.26) e “Miguel” (hebraico Mika-El, significa: quem (igual a) Deus?), “o grande príncipe” (se Deus é rei, o arcanjo é príncipe) e chefe do exército celeste (10,13.21; cf. Ap 12,7), que vai presidir à libertação final na sua função de “defensor” (protetor, advogado) do povo de Deus, ou ainda de juiz que, como instrumento de Deus, impõe a justiça.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta o “tempo de angustia”: A crise que se estabelece na história atinge seu paroxismo precisamente no momento em que a libertação chega. Na perspectiva profética, o desfecho esperado é sempre iminente. Essa iminência psicológica não deve ser interpretada como um anúncio datado do fim do mundo. Será um tempo de angústia máxima, no qual só se pode esperar saída por uma intervenção decisiva de Deus… A intervenção de Deus que livra o povo da angústia é, em primeiro lugar, a aniquilação do rei estrangeiro, mas se alarga numa dimensão mais ampla, pois diz respeito também àqueles que já morreram. O agir de Deus alcança mesmo os que já não são parte ativa desta história.

A Bíblia do Peregrino (p. 2160) comenta: Como nas escatologias clássicas, a derrota do inimigo não é mais que o penúltimo ato, precedendo a instauração definitiva do reino de Deus. A nova era se ilumina com dores de parto, arautos de vida e salvação. Este livro segue a tradição oficial, mas acrescenta a doutrina nova da ressurreição (antecedentes em Is 53; Ez 37; Is 26,14-19), que se imporá entre a maioria dos judeus. Sua ressurreição não é universal, mas pessoal e diferenciada.

Mas, nesse tempo, teu povo será salvo, todos os que se acharem inscritos no Livro (v. 1b).

No céu são mantidos atualizados os registros que contêm os nomes dos vivos, destinados aqui a se tornarem os membros da nova Jerusalém (cf. 7,10). É o livro dos predestinados ou “livro da Vida” (cf. Ex 32,32-33; Sl 69,29; 139,16; Is 4,3; Lc 10,20; Ap 20,12).

  1. L. Corrêa Lima (Vida Pastoral, 2015) comenta: Os que serão libertados da angústia são aqueles que estão inscritos no “livro”. A ideia de um livro onde estão escritos os atos dos seres humanos ocorre em outros lugares na Bíblia (cf. Ex 32,32-33; Ml 3,16; Sl 68/69,29). Os que estão inscritos serão liberados da angústia: são os membros da comunidade da aliança, que permaneceram fiéis a Deus apesar das tribulações e perseguições; são os justos que ainda não morreram, mas – com os justos que ressuscitarão (v. 2) – também receberão a vida eterna.

Muitos dos que dormem no pó da terra, despertarão, uns para a vida eterna, outros para o opróbrio eterno (v. 2).

Quem garante a solidariedade e justiça para com as vítimas da história? Se já morreram injustamente, só Deus poderá ainda fazer lhes justiça e recompensá-los com a “vida eterna”. Dn 12 e 2Mc 7 não afirmam apenas a imortalidade das almas (cf. Sb 3), mas a ressurreição dos corpos (do ser humano integral), o que contraria as ideias da cultura grega (cf. At 17,31s; 1Cor 15). Como a ideia era mais nova, ainda não se tinha termos próprios, mas análogos: como morrer é adormecer (“os que dormem no pó da terra”), ressuscitar é despertar ou levantar-se (“despertarão”).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1106) comenta: A ressurreição dos corpos dos mártires da fé israelita diante da perseguição (11,35; 12,2) contrasta com a morte vergonhosa dos malvados (cf. Is 66,24; Ap 2,11.20,6.14; 21,8). Este tema aparece em textos pós-exílicos, tais como 2Mc 7,9-23; Ez 37,1-14; Is 26,14-19; 53,10-14; Ecl 3,18-22.

A ressurreição pertence ao tempo final (cf. Jo 11,24; 1Ts 4,13-18). Não se trata aqui da ressurreição universal (de todos; lit. “muitos dentre os que dormem…”), nem apenas a dos justos, mas da ressurreição dos sábios e dos ímpios (v. 3) que receberão destinos diferentes: a “vida eterna” ou o “opróbrio eterno”. Os infernos (hebraico xeol, grego hades), “lugar” da morte, não são nomeados aqui, mas termos equivalentes: a ignomínia, o opróbrio, o horror (cf. Is 66,24). Ou seja, o “lugar” de condenação, onde os ímpios são privados da vida eterna (cf. Mq 2,5; Sl 1,5)

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1391) comenta: Deus triunfa sobre o último inimigo, a Morte personificada, a arranca-lhe os fiéis que ela engolira indevidamente. Nos textos mais antigos, o tema da ressurreição era compreendido de modo simbólico e coletivo (cf. Ez 37,1-14, e provavelmente Is 26,19). A promessa da ressurreição individual é a resposta profética ao problema posto pela experiência do martírio (cf. 2Mc 7,9.11.14.23.29).

A Bíblia do Peregrino (p. 2160) comenta: A ressurreição precede o julgamento de separação (cf. Ez 20,35-38). Se para Ezequiel ressuscitar é sair do desterro (Ez 37,12), concebe uma ressurreição para retornar à pátria e outra para morrer no deserto. Nosso autor toma a imagem ao pé da letra e amplia o seu alcance: ressurreição para se incorporar ao novo reino de Deus. Entre os que ressuscitam há um grupo privilegiado: não os guerreiros Macabeus, nem sequer os mártires – Eleazar e companheiros –, mas uns mestres que pregam com êxito a conversão. Os cidadãos do novo têm de ser justos (Is 26,2).

É bastante claro o sentido de uma vida eterna que, se ultrapassa Is 65,20, pode apoiar-se em Is 25,8. O seu oposto não é tão claro. A “vergonha perpétua” pode ser a consciência de derrota que se experimentará sem término ou a consciência de uma derrota definitiva e irreversível. A distinção é indefinida ou definitiva. A expressão hebraica “vergonha perpétua/definitiva” se lê em Sl 78,66 sem implicação de sobrevivência perpétua; Is 66,24 fala de “cadáveres”, não de seres ressuscitados sofrendo. Não parece que os autores da época imaginassem um Antíoco outra vez vivo em cárcere perpétuo; pensavam antes em seu fracasso definitivo. Finalmente, o texto não opõe vida eterna gloriosa/vida eterna vergonhosa, mas vida eterna/vergonha eterna. Então, para que ressuscitam? – Para comparecer a julgamento (Sb 5).

Mas os que tiverem sido sábios, brilharão como o firmamento; e os que tiverem ensinado a muitos homens os caminhos da virtude, brilharão como as estrelas, por toda a eternidade (v. 3).

Através do paralelismo da frase, podemos identificar os “sábios” com “os que tiverem ensinado … os caminho da virtude”. A promessa da ressurreição visa em primeiro lugar não os heróis militares, mas chefes espirituais do povo (os que discernem) que o mantiveram na verdadeira fé: só Deus justifica, mas eles, pelo seu ensinamento conduziram a multidão para a justiça (cf. Is 53,11); “brilharão como o firmamento” (a palavra hebraica para brilho, zohar, tornou-se famosa na literatura cabalística por sua obra capital, séfer hazzohar, séc. 13).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1106) comenta: São palavras dos homens esclarecidos (mártires piedosos; cf. 11,33-35) que confortam e edificam com seus ensinamentos e testemunhos, como em Pr 4,18; Mt 13,43,… Provavelmente estes homens esclarecidos (maskilim) formam o grupo de sábios, escribas e entendidos que compilaram os textos hebraico e aramaico de Daniel (cf. 1,4.17; 8,25; 9,13. 22.25; 11,33.35; 12,3.10).

M.L. Corrêa Lima (Vida Pastoral, 2015) comenta: Os “sábios” (maśkîlîm) são os prudentes, os que julgam retamente. Esse termo adquiriu também a conotação de “aquele que tem êxito, que prospera”. Eles são aqueles que conduzem muitos para a justiça (literalmente: tornam [outros] justos), que caem pela espada e pelo fogo e são purificados (cf. 11,33-35). Esse fato e ainda a presença de três termos – “sábio” ou “o que tem êxito”; “muitos”; “tornar justo” – fazem uma ponte de nosso texto com o quarto cântico do Servo sofredor (Is 52,13-53,12), que morre, mas “terá êxito” (Is 52,13) e “tornará justos muitos” (53,11). Assim sendo, os sábios de Dn 12 têm uma função em relação ao povo que é, de certa forma, paralela à do Servo sofredor de Isaías. Mas, em Isaías, o servo torna justos muitos em virtude de seu sacrifício expiatório (cf. Is 53,5-6.10-11); em Daniel, “os sábios” tornam justos muitos em virtude de seu ensinamento.

Muitas vezes, os sábios são identificados com os “piedosos” (hassidîm). Estes, porém, chegaram a formar, na época do livro de Daniel, um grupo militante armado (cf. 1Mc 2,14), liderado por Judas Macabeu (cf. 2Mc 14,6). Os sábios de nosso texto, ao contrário, são aqueles que renunciaram a meios violentos para fazer prevalecer o direito de Deus. Sua exaltação vem do fato de instruírem a muitos nos caminhos da justiça.

O julgamento de Deus sobre a história pode tardar, mas não falhará. Por fim prevalecerá sua justiça, que recompensará os fiéis e dará glória e beleza divinas àqueles que de modo particular foram seu instrumento. Com isso, a comunidade de fé é fortificada para enfrentar perseguições na confiança da intervenção final do Senhor.

 

2ª Leitura: Hb 10,11-14.18

A parte doutrinal desta “carta” (que é mais um sermão sacerdotal) termina com estes versículos, que resumem os pensamentos mais importantes: Jesus Cristo supera o sacerdócio da antiga aliança.

É uma questão aberta, se a carta foi escrita antes ou, mais provavelmente, depois da destruição do templo em Jerusalém em 70 d.C. pelo romanos (nunca mais foi erguido; hoje, um santuário muçulmano está no lugar). Com isso acabou o culto antigo e seu sacerdócio, continuaram apenas os rabinos (mestres da lei, fariseus) e seu ensino nas sinagogas.

O ponto central da leitura de hoje é que Jesus realizou um sacrifício único pelos pecados, pois por ele alcançou plenamente a salvação do gênero humano. O perdão já foi concedido (v. 18), porque por este sacrifício, Deus se tornou propício a humanidade e não voltará atrás. Por esse sacrifício irrepetível (uma vez por todas; cf. leitura do domingo passado), Jesus alcançou a glória. A ressurreição de Jesus o constitui Senhor da história (v. 12: “sentou-se a direita de Deus”) e como Filho do Homem julgará o mundo por sua Palavra levando sua obra à plenitude.

Todo sacerdote se apresenta diariamente para celebrar o culto, oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, incapazes de apagar os pecados. Cristo, ao contrário, depois de ter oferecido um sacrifício único pelos pecados, sentou-se para sempre à direita de Deus. Não lhe resta mais senão esperar até que seus inimigos sejam postos debaixo de seus pés. De fato, com esta única oferenda, levou à perfeição definitiva os que ele santifica (vv. 11-14).

Os sacrifícios diários dos sacerdotes levitas no templo (cf. Ex 29,38s; 2Rs 16,15) foram incapazes de apagar os pecados (v. 11; 10,1.4), “sem eficácia para aperfeiçoar a consciência” (9,9; cf. 7,19). Só o “sacrifício único” de Cristo, que oferece seu próprio corpo e sangue pelos pecados dos outros (cf. 7,26-27; 9,26.28) “levou a perfeição definitiva aos que santifica” (v. 14).

Aqui, o autor destaca uma nova diferença entre o sacerdócio de Cristo e o dos sumos sacerdotes judeus. Na tradição grega do Antigo Testamento (AT), que o autor de Hb usa, os ritos para conferir o sacerdócio não são chamados “ordenação” nem consagração, mas “aperfeiçoamento”, i.e., “ação que torna perfeito, que dá a perfeição.” Segundo o AT, quando um descendente de Aarão foi consagrado (levado a perfeição) sumo sacerdote, sua consagração valia apenas para si próprio. Ele era o único habilitado a penetrar no santuário uma vez por ano (no dia do Perdão, cf. Lv 16), nenhuma pessoa podia acompanhá-lo, nem mesmo de longe (Lv 16,17).

Por sua condição de Filho obediente e solidário, Jesus foi levado a “perfeição” (5,8s) e “entrou uma vez por todas no santuário” do céu (9,12); seu sacerdócio com o sacrifício do seu corpo é perfeito (2,10; 7,28; 9,11). E mais: o sacrifício de consagração sacerdotal não vale apenas para ele mesmo, vale ao mesmo tempo para todo povo que nele crê; Cristo “levou a perfeição definitiva aos que santifica” (v. 14).

Assim, ao mesmo tempo em que apresenta o aspecto passivo (Cristo foi “levado a perfeição”, recebeu o sacerdócio), a Paixão também apresenta um aspecto ativo: Cristo nos tornou perfeitos, nossa transmitiu o sacerdócio… A consagração de Cristo não se efetuou, como a dos sacerdotes judeus, por meio de um ritual de separação, mas sim por meio de um acontecimento no qual ele levou ao extremo a sua solidariedade para conosco. Por conseguinte, a transformação obtida não podia se restringir somente a ele, pois isso teria encontrado em contradição com o próprio ato que a havia produzido: essa transformação tinha que incluir necessariamente um dinamismo de transmissão (A. Vanhoye, p. 78).

Jesus é o rei-messias e o sumo sacerdote definitivo, é presente e futuro, “só lhes resta mais esperar até que seus inimigos sejam postes debaixo de seus pés” (v. 13; cf. 1Cor 15,25). Ele é mais do que os anjos (1,4-14), mais do que Moises (3,3-6), mais do que sacerdotes (caps. 7-9). Ele é o mediador da nova aliança (8,6; 9,15) e abriu o acesso ao santuário para todos (cf. Mc 15,38; Ef 2,13s).

Ora, onde existe o perdão, já não se faz oferenda pelo pecado (v. 18).

Nossa liturgia omitiu a citação do profeta Jeremias que anunciou a nova aliança caracterizando-a pela ação de Deus nos corações (vv. 15-17; Jr 31,31-34 citado por extenso em Hb 8,8-12). Nessa nova aliança, a lei de Deus não está mais em tábuas de pedras, mas no coração e na mente dos fieis (Ez 19,2; 36,26s; cf. 2Cor 3) e “não se faz oferenda pelo pecado” (v. 18), porque os sacrifícios ineficazes com animais (que já substituíram os sacrifícios humanos, cf. Gn 22) agora são substituídos pela memória eucarística, a ação de graças pelo sacrifício único de Cristo que tirou o pecado do mundo “uma vez por todas” (7,27; 9,12.26.28; 10,10; cf. Rm 6,10; 1Pd 3,18; cf. leitura do domingo passado).

É interessante que o autor da carta nunca chama Cristo de “cordeiro” (cf. Jo 1,29.35; 1Cor 5,7; 1Pd 1,18-19; Ap 5,6-12 etc.), provavelmente para destacar o papel ativo do “sumo sacerdote” e não da vítima passiva (cf. Jo 10,14-18).

A trágica história do Antigo Testamento havia feito com que se tomasse consciência ao mesmo tempo da necessidade de transformação dos corações e da incapacidade dos homens para mudar seus corações maus (Jr 18,11-12). Quando o coração é mau, as melhores leis não servem para nada. Mas como formar no homem um coração verdadeiramente fiel e generoso, dócil a Deus e aberto para o amor fraternal? Para ver com que profundidade o autor aos Hebreus compreende a realização dessa promessa, devemos recordar a descrição que fez anteriormente do acontecimento do Calvário (Hb 5,7-9; 10,5-9). Cristo Jesus aceitou submeter-se, em seu ser de homem, à necessária transformação. Ele enfrentou os sofrimentos que essa transformação implicava. Fazendo a vontade de Deus (10,7.9) até a imolação do seu próprio corpo, ele aprendeu por nós a obediência (5,8). Sendo assim, passa a existir um novo homem, formado na perfeita obediência: ele tem a lei de Deus inscrita no mais profundo do seu ser. Existe um “novo coração” (Ez 36,26), totalmente unido a Deus e a seus irmãos. Esse coração, criado para nós (Scf l 51,12), está a nossa disposição. Se aderimos a Cristo, ele é nosso. E então a profecia da nova aliança se realiza para nós: nós passamos a ter a lei de Deus em nossos corações (A. Vanhoye, p. 78s).

 

Evangelho: Mc 13,24-32

O capítulo 13 de Mc é um discurso de Jesus para seus discípulos (vv. 1-4) tratando da escatologia, ou seja, das últimas coisas, o final do mundo e a segunda vinda (parusia) de Cristo como a conclusão e a meta da história. As alusões à destruição e profanação do templo de Jerusalém pelos romanos (v. 14) deixam entrever a data da redação do evangelho (por volta de 70 d.C.). Mc vive neste tempo de guerra e horrores e neste discurso mistura os acontecimentos históricos (destruição do templo) com as expectativas apocalípticas (fim do mundo, vinda do messias do céu, o “Filho do Homem”, já predito por Dn 7,13s).

Costuma-se dividir o discurso nestas seções: introdução com anúncio da destruição do templo (vv. 1-2), os sinais da crise (vv. 3-13), a grande tribulação de Jerusalém (vv. 14-23), a vinda (parusia) do Filho do Homem (vv. 24-27), o dia e a hora (vv. 28-37). Nossa liturgia selecionou a parte central da parusia e a questão da data.

M.L. Corrêa Lima (Vida Pastoral, 2015) comenta: Esse discurso usa numerosas imagens tiradas de textos proféticos do Antigo Testamento e da “apocalíptica judaica”. A apocalíptica é um conjunto de ideias que responde a uma situação de grave crise com base em uma “revelação” de Deus. Essa revelação mostra o sentido das tribulações presentes e, baseando-se no fato de que é Deus, em última instância, quem dirige a história, inculca a ideia de seu triunfo final sobre todo o mal. Fornece à comunidade, assim, meios para enfrentar a realidade negativa que experimenta.

Dessa forma, o discurso de Jesus em Mc 13 não procura primeiramente descrever os acontecimentos do fim da história. Não se preocupa em anunciar uma catástrofe ou fazer uma ameaça, mas indicar que o mundo tem uma meta, para a qual inexoravelmente caminha: a vinda do Filho do homem em poder e glória. Acontecerá então a consumação do plano de Deus. Com isso, visa inculcar uma atitude nos cristãos: eles devem estar sempre vigilantes, pois o Senhor, embora possa tardar, com toda a certeza virá. Seus discípulos vivem já na certeza dessa vinda, atentos a ela, fixando o olhar naquele que retornará.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1243) comenta: O texto interpreta o ataque romano a Jerusalém e a profanação do Templo como a “abominação da desolação” (v. 14) apresentada no livro de Daniel (cf. Dn 9,27). São tempos de crise e perturbação: é necessário saber resistir aos temores e a tantos projetos enganadores, e manter o testemunho: os poderes hão de cair. Os olhos devem estar postos na esperança do Filho do Homem, que vem para reunir os membros do povo de Deus

Naqueles dias, depois da grande tribulação, o sol vai se escurecer, e a lua não brilhará mais, as estrelas começarão a cair do céu e as forças do céu serão abaladas. Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória. Ele enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus, de uma extremidade à outra da terra (vv. 24-27).

A Bíblia do Peregrino (p. 2435) comenta: O fato da parusia ou vinda do Messias se afirma de modo transparente; todo o resto é opaco. Primeiro a data. Marcos, que gosta tanto da ligação “logo” (euthys), usa aqui um vago “naqueles dias”, fórmula corrente nos profetas para indicar um futuro indefinido. Os outros são temas próprios da apocalíptica e textos afins… Começando pela perturbação estelar (Is 13,10; 24,23; 34,4), que se pode considerar como testemunho cósmico do fato. As estrelas são o exército celeste (Gn 2,1) que cumpre as ordens do Senhor (cf. Eclo 43,9-10) … A reunião dos eleitos se encontra na escatologia de Isaías (Is 27,12-13; cf. Zc 2,6.10; Dt 30,4).

O livro de Daniel (Dn 7) apresentou numa visão uma sequência com quatro bestas-feras, cada uma simbolizando um reino pagão e hostil. Mas o “Altíssimo” (Deus) fará um tribunal, e depois de destruir o rei da última besta (Antíoco Epífanes, o rei perseguidor na época de Dn, 167-164 a.C.), entregará o poder universal e reino perpétuo a um “Filho do Homem” (ser humano, figura humana) “vindo nas nuvens” (Dn 7,13s). O próprio texto de Dn 7,18-27 identifica depois esta figura humana com “o povo dos santos do Altíssimo” (7,18-27), ou seja, a comunidade judaica fiel. O livro apócrifo Apocalipse de Henoc já vê nele o representante deste povo fiel, o messias a quem será entregue também o juízo final. O NT e a tradição cristã o identificam com o messias (Cristo) Jesus.

O termo grego “parusia” significava o retorno glorioso de um rei ou general após uma guerra ou vinda/visita do imperador a uma cidade. Aqui, a parusia se propõe como fato cósmico (“estrelas…”), histórico (“naqueles dias”), transcendente (“nas nuvens com grande poder e glória”) e universal (“quatro cantos da terra”). A tradição cristã é unânime em esperar a “vinda” de Jesus Cristo e afirma que será “gloriosa”. Os sofrimentos que marcarão o tempo final não são a conclusão de tudo, “depois daquela tribulação” haverá grande mudança, determinada pelo retorno do Filho do homem (cf. Mc 14,62 diante do sinédrio).

M.L. Corrêa Lima (Vida Pastoral, 2015) comenta: O tempo da consumação já não será marcado pelo levantar-se de Miguel, mas pelo retorno do próprio Jesus. Sua vinda será não mais na fraqueza de sua humanidade terrestre, mas na glória de sua ressurreição e no seu poder para julgar o mundo e a história (cf. Mt 25,31). Ele vem para todos. Não se diz para que ele vem; apenas se acena à reunião de todos os justos de todas as partes…

Com efeito, em Marcos, a primeira ação de Jesus é chamar e reunir a si os discípulos; eles estarão com ele todo o tempo de sua vida pública (cf. Mc 1,16-20). Na parusia, a Igreja será levada à sua plenitude, quando os justos (cf. Dn 12,2) estarão definitivamente com o Senhor (cf. 1Ts 4,17).

Aprendei, pois, da figueira esta parábola: quando seus ramos ficam verdes e as folhas começam a brotar, sabeis que o verão está perto. Assim também, quando virdes acontecer essas coisas, ficai sabendo que o Filho do Homem está próximo, às portas (vv. 28-29).

M.L. Corrêa Lima (Vida Pastoral, 2015) comenta: A parábola que segue (v. 28-29) mostra a necessidade de saber discernir os sinais precursores do fim (v. 5-23). O discípulo deve ser sábio: deve ser capaz de observar e interpretar. Como os sinais estão presentes em vários momentos da história, o cristão é chamado, a cada instante, à consciência de que “está próximo, às portas” (cf. 1Ts 5,1-3). A parusia do Senhor é um acontecimento futuro que lança luz ao presente de cada cristão, à medida que influencia seu pensar, seu julgar, seu agir.

No contexto da purificação do templo, a “figueira” já havia sido apresentada como exemplo de que o sistema político-religioso estabelecido no templo de Jerusalém estava com os dias contados, por conta da injustiça em que se baseava (11,12-21). Aqui se repete numa “parábola” para reforçar a convicção de que as palavras de Jesus guiarão a comunidade diante das tribulações e ameaças.

Em verdade vos digo, esta geração não passará até que tudo isto aconteça. O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão (vv. 30-31).

“Esta geração não passará”, aqui se reflete a atitude da comunidade que espera uma parusia próxima (cf. 9,1); atitude própria da primeira geração cristã (cf. Paulo em 1Ts 4,16s; 1Cor 15,51s; reinterpretada depois em 2 Pd 3). Podemos entender que “esta geração” do evangelista vivencia a destruição do templo (70 d.C.), mas antes de acontecer o fim do mundo, “é necessário que o evangelho será proclamado a todas as nações” (v. 10).

A expressão enfática equivale à concessiva, “o céu e a terra passarão” (cf. 1Cor 7,31), lit. “ainda que passem…” (como em Is 54,10; Jr 31,35-36). Um salmo fala do céu e da terra: “eles perecerão, tu permaneces” (Sl 102,27), ao passo que Is 40,8 garante que “a palavra de Deus se cumpre sempre”. A parusia mostrará que tudo é transitório, com exceção da Palavra divina de Jesus (que também criou universo, cf. Jo 1,1-14). A consumação da história já começa em nossas decisões e na Palavra de Cristo que desde já opera.

A Bíblia do Peregrino (p. 2436) comenta: Sobre a data dos acontecimentos futuros, a última seção nos deixa na incerteza. Partimos da repetição, formando inclusão marcada, de “essas coisas” e “tudo isso” (13,4). Todas essas coisas são os fatos que precedem a parusia e indicam sua proximidade. O problema é que “tudo isso”, inclusive a grande tribulação, são descrições bastante genéricas, modeladas por citações e alusões. A comparação vegetal sugere também que a parusia traz uma primavera como o parto doloroso traz uma nova vida? Compara-se com o oráculo de Is 18,5: “Porque antes da vindima, terminada a floração, quando a flor se torna uva”. É um tempo concreto, mas não rigorosamente preciso. Ezequiel anunciara a iminência da desgraça: “o fim chega, chega o fim, espreita-te, está chegando” (Ez 7,5 no contexto); e o povo caçoava da demora: “passam dias e dias e não se cumpre a visão” (12,22).

Quanto àquele dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas somente o Pai (v. 32).

No gênero apocalíptico se gastava tempo e energia para decifrar e calcular o fim (ainda há seitas que tem esta pretensão). A comunidade cristã não deve ficar fazendo cálculos sobre o tempo em que se darão esses eventos que foram anunciados. O que importa é que a esperança depositada no Filho do Homem não leve a comunidade a nenhuma atitude que conduza ao afastamento dos seus compromissos. Daí o apelo à vigilância no v. 37, própria de Mc.

M.L. Corrêa Lima (Vida Pastoral, 2015) comenta: O texto conclui enfatizando que determinar o momento da parusia é algo reservado ao Pai (v. 32). Há uma linha ascendente: anjos – Filho – Pai. Isso sublinha a absoluta liberdade de Deus, a gratuidade de seu agir, e em nada diminui o poder de Jesus. Mostra, porém, que Jesus quis, como homem, submeter-se totalmente ao Pai, dele recebendo tudo. Para a comunidade de Marcos, isto é o decisivo: saber que o dia virá com certeza e que o momento de sua vinda está nas mãos de Deus.

 

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