18 de Novembro de 2020, Quarta-feira: ‘Eu vos digo: a todo aquele que já possui, será dado mais ainda; mas àquele que nada tem, será tirado até mesmo o que tem (v. 26).

33ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Ap 4,1-11

Os capítulos 4-5 que ouvimos hoje e amanhã são uma unidade que se pode chamar o centro teológico do Ap, porque os textos em seguida sempre se referem a ele. O tema é o Poder (trono) que pertence a Deus (cap. 4) e ao Cordeiro (Jesus, cap. 5), e não ao imperador romano Domiciano (81-96 d.C.) que se deixou adorar como “Senhor e Deus” e “Tu és digno” (cf. 4,11; 5,9) e perseguia os cristãos na época.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1511s) comenta: Em lugar do culto ao imperador, o que se apresenta é um culto ao Deus criador de tudo, o único que merece reverência e adoração. João é conduzido à presença da assembleia litúrgica no céu, a fim de olhar a terra e os conflitos que nela ocorrem sob o ponto de vista do céu, ou seja, do Deus que está sentado em seu trono. Assim, ele se faz profeta (cf. 1,3), e verifica que nesse culto tomam parte as orações dos santos (5,8) e os gritos por justiça (6,9). A partir daí, João poderá perceber em maior profundidade o que ocorre na terra, seus muitos tronos e os poderes que pretendem colocar-se no lugar e acima do único que merece a adoração. Só Deus é santo e doador da vida (cf. Is 6). As comunidades não deverão apartar-se dessa certeza, mesmo diante das hostilidades e perseguições

A Bíblia do Peregrino (p. 2949) comenta: Descreve amplamente uma liturgia celeste, como prólogo a quanto se segue. Enquanto as liturgias tradicionais comemoravam fatos pretéritos, saída do Egito, aliança, Páscoa, esta vai introduzir eventos futuros e próximos. Incluirá hinos e gestos, mas não sacrifícios, porque o sacrifício definitivo se consumou e está presente. É liturgia celeste, modelo da terrestre. Sua cerimônia principal será a leitura de um texto, espécie de libreto ou roteiro das visões que vão ser apresentadas dramaticamente…

Nossa liturgia introduz todas essas visões que serão relatas nos próximos dias com “Eu, João, vi”, enquanto em 4,1 está escrito apenas: “Depois disso, vi” (cf. 7,1.9; 15,5; 18,1).

Vi uma porta aberta no céu, e a voz que antes eu tinha ouvido falar-me como trombeta, disse: “Sobe até aqui, para que eu te mostre as coisas que devem acontecer depois destas.” Imediatamente, o Espírito tomou conta de mim. Havia no céu um trono e, no trono, alguém sentado (vv. 1-2).

“A voz que antes eu tinha ouvido” e “o Espírito tomou conta de mim” (cf. 1,10; Ez 2,2). Em 1,10 João viu o Filho do Homem, agora vê Deus.

A cena toda se inspira em Ez 1 e 10 (cf. também em Is 6, mas a cena não acontece na terra, nem no templo de Jerusalém que já estava destruído, mas “no céu”. O vidente tem que subir ao céu, porque aí se revela a história próxima da terra (1,1).

A cena é apresentada conforme a regras dramatúrgicas: primeiro apresentam-se os requisitos e só depois as pessoas a quem pertencem. O “trono” celeste (Is 66,1; Sl 11,4) é sinal de majestade real (Sl 45,7). Deus aparecerá sentado, entronizado (Sl 93,2; 97,2; etc.). João evita descrever Deus sob forma humana e nem sequer o denomina, é mais discreto ainda do que Ez 1,26 (“um ser com aparência humana”), limita-se a sugeri-lo através de uma visão de luz.

Aquele que estava sentado parecia uma pedra de jaspe e cornalina; um arco-íris envolvia o trono com reflexos de esmeralda (v. 3).

As pedras preciosas, conhecidas no AT, sugerem uma beleza luminosa, não parecem ter outro significado individual. Aqui o vocábulo grego íris deve ser tomado no sentido técnico de “auréola”: é o círculo de luz que circunda os personagens ou as coisas santas (na Tradução Ecumênica da Bíblia: “glória”).

Ao redor do trono havia outros vinte e quatro tronos; neles estavam sentados vinte e quatro anciãos, todos eles vestidos de branco e com coroas de ouro nas cabeças (v. 4).

No Antigo Oriente, o poder superior de um rei se mede pela grandeza da sua corte (cf. 1Rs 10). Por isso, o autor descreve diversos representantes da corte celeste. O nome de “anciãos” (grego: presbíteros) evoca os chefes ou responsáveis de Israel no AT, depois, os das sinagogas e, por fim, os das comunidades cristãs. Aqui, porém, não são homens na glória de Deus, mas um “senado” de vinte e quatro representantes (anjos?), uma espécie de corte que não delibera, mas adora e canta hinos. O número 24 pode significar adoração incessante (24 horas do dia) ou corresponde talvez às 24 ordens sacerdotais de 1Cr 24,1-19. Pode-se pensar também nos dozes profetas que representam o profetismo do AT e continuam nos dozes apóstolos: ou ainda nas dozes tribos do antigo Israel, às quais vêm somar-se as doze do novo povo (Igreja; cf. 7,4-9), os dois povos unidos e pacificados (cf. Ef 2,14). Sua figura é humana, corpórea.

É notável que esses representantes (da humanidade?) tenham um papel preponderante no céu. Estes anciões exercem um papel sacerdotal e real: louvam e adoram a Deus (4,10; 5,9; 11,16-17; 19,4), oferecem-lhe as orações dos fiéis (5,8), assistem-no no governo do mundo (tronos) e participam de seu poder real (coroas). Os três elementos que os caracterizam – tronos, vestes brancas, coroas – correspondem aos atributos prometidos antes aos cristãos (cf. 3,21; 3,4-5; 3,11). Esta assembleia celeste representa pois, em certo sentido o povo de Deus participando na glória e celebrando uma liturgia de adoração e ação de graças que se dirige antes de tudo a Deus como criador (Ap 4), depois, ao cordeiro como redentor (Ap 5).

Do trono saíam relâmpagos, vozes e trovões. Diante do trono estavam acesas sete lâmpadas de fogo, que são os sete espíritos de Deus (v. 5).

“Relâmpagos, vozes e trovões” são elementos frequente nas manifestações divinas (teofanias, cf. Ex 19,16-19; Ez 1,4.13), o “fogo” como elemento da divindade (Gn 15,17). As “sete lâmpadas de fogo” são identificadas com “os sete espíritos de Deus”. Não é aqui a plenitude (sete) do Espírito Santo (cf. 1,4), que se tornará na tradição cristã (relacionada também com os sets dons de Is 11,2), o Espírito “septiforme”, mas trata-se aqui dos “anjos da face” (cf. 3,1; 8,2; Tb 12,15), que são os “enviados” de Deus (5,6; cf. Zc 4,10; Tb 12,14; Lc 1,19.26).

Na frente do trono havia como que um mar de vidro cristalino. No meio, em redor do trono, estavam quatro Seres vivos, cheios de olhos pela frente e por detrás. O primeiro Ser vivo parecia um leão; o segundo parecia um touro; o terceiro tinha rosto de homem; o quarto parecia uma águia em pleno voo. Cada um dos quatro Seres vivos tinha seis asas, cobertas de olhos ao redor e por dentro. Dia e noite, sem parar, eles proclamavam: “Santo! Santo! Santo! Senhor Deus Todo-poderoso! Aquele que é, que era e que vem!” (vv. 6-8).

O mar cristalino pode vir de Ez 1,22 (cf. o mar de bronze no templo; Ex 30,18; 38,8; 1Rs 7,23-38) na comparação prevalece a luminosidade sobre o elemento aquático. É provavelmente o oceano situado por cima do firmamento (Gn 1,6-8), as “aguas superiores” de Gn 1,7; Sl 104,3, ou do “mar” de 1Rs 7,23-26. “No meio, em redor”; a disposição é difícil de imaginar. “No meio do trono” pode ser um acréscimo posterior provinda de Ez 1,5.

Os “quatro Seres vivos” são guardas do trono, seres mitológicos inspirados em Ez 1,5-21 sobre os quais repousa o trono de Deus. Seus numerosos “olhos” (não parece imaginar pavões) simbolizam a vigilância, a ciência universal e a providencia de Deus. Eles adoram a Deus e lhe tributam glória por sua obra criadora (v. 8). A fórmula de louvor (doxologia) de Is 6,3, o triságion (três vezes “santo”, cf. Sl 99) já estava em uso no culto sinagogal e mais tarde foi retomada pelas liturgias cristãs. Aqui em 4,8, não é aclamado como o Senhor dos exércitos (Is 6,3), mas “Senhor Deus Todo-poderoso! Aquele que é, que era e que vem!” (1,8; 11,17; cf. Ex 3,14 grego).

A escolha de suas formas dos quatro Seres vivos (um semelhante a um “leão”, outro a um “touro”, outro a um “homem”, outro a uma “águia em voo”) deve se à representação do que há mais nobre, mais forte, mais sábio e mais ágil na criação. “Quatro” é número de totalidade cósmica (os pontos cardeais da terra, os ventos; cf. 7,1). Outros comentaristas pensam em antepassados ilustres do AT (patriarcas, reis, profetas, doutores), outros os identificam com os quatro elementos, ou tudo quanto vive na terra e no ar (faltam os aquáticos, cf. Sl 8; 96,11; 98,7).

Cada ser vivo tem um só aspecto, os de Ezequiel eram polimorfos. Os de Ezequiel eram “querubins” (os anjos que protegiam a arca da aliança vista como pedestal do trono, cf. Ex 25,18-25; 1Sm 4,4; 1Rs 8,6), tinham quatro asas e moviam-se, puxavam um carro e sustentavam uma plataforma; os do Apocalipse são os “serafins” da visão de Is 6,2s, como sua aclamação semelhante, também têm “seis asas”. Mas não se deslocam do lugar, porque a Gloria de Deus já não se afasta mais como em Ez, mas preside a liturgia perpétua. A liturgia da terra é uma participação no culto eterno (“dia e noite”) do céu.

Desde Irineu de Lião (séc. 3), a tradição cristã viu nestes quatro Seres vivos o símbolo dos quatro evangelistas (aludindo aos começos de Mc, Lc, Mt, Jo). É difícil admitir que esta tenha sido a intenção do autor do Ap, mas esta interpretação de Irineu teve influência para escolha de “quatro” evangelhos considerados inspirados no Cânone da Bíblia (outros ficaram fora, “apócrifos”).

Os seres vivos davam glória, honra e ação de graças ao que estava no trono e que vive para sempre. E cada vez que os Seres vivos faziam isto, os vinte e quatro anciãos se prostravam diante daquele que estava sentado no trono, para adorar o que vive para sempre. Colocavam suas coroas diante do trono de Deus, e diziam: ”Senhor, nosso Deus, tu és digno de receber a glória, a honra e o poder, porque tu criaste todas as coisas. Pela tua vontade é que elas existem e foram criadas” (vv. 9-11).

Também os Anciãos dão gloria a Deus pelo poder que ele lhes concedeu, “colocavam suas coroas diante do trono de Deus”, coisa que os reis da terra recusarão fazer (17,2, etc.). O hino (Sl 33,6; 115,3; 148,5) expressa uma crítica ao culto do imperador: Só Deus é eterno, “vive para sempre” (cf. v. 8), só ele pode ser chamado “Senhor, nosso Deus” (cf. Jo 20,28), só ele pode ser aclamado “Tu és digno” (cf. 5,9).

Evangelho: Lc 19,11-28

Por dez capítulos estávamos acompanhando no Ev de Lc a viagem de Jesus a Jerusalém (desde 9,51) na qual instruía os discípulos. Antes da entrada de Jesus nesta cidade, Lc apresenta ainda uma parábola, que tem em comum com Mt (em lugar de “minas”, Mt 25,14-30 fala de “talentos”). Nos ensina que os dons não são propriedade, mas depósito encomendado, e que o homem tem de colaborar para que rendam. Deus não “o dá enquanto dormem” (Sl 127,2).

Apesar das divergências consideráveis que separam a parábola das minas da parábola dos talentos, a maioria dos exegetas conclui em favor da identidade, ou seja, ambos os evangelistas copiaram da mesma fonte Q (coleção perdida de palavras de Jesus), tendo cada evangelista livremente modificado e desenvolvido o tema inicial.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2019) comenta as modificações da parábola por Lc: Primeiro, colocando-a logo antes da entrada régia de Jesus em Jerusalém; em seguida, misturando-lhe vários traços régios tomados da história de Arquelau (… vv. 12.14.27); finalmente, tratando-a de modo fortemente alegórico. Neste lugar e sob esta forma, a parábola anuncia o Juízo régio que Jesus exercerá por ocasião da sua volta, no advento definitivo do Reino de Deus.

Outros acham que Lc teria fundido duas parábolas fundidas numa só, a das minas (vv. 12-13. 15-26) e a do pretendente à realeza (vv. 12.14.27). Este último se parece com Arquelau, filho de Herodes. Lc gosta de se referir à história humana (cf. 1,5; 2,1s; 3,1s; 13,1-5; 19,43s; 23,28-31; At 4,6; 5,34-39; 12,1-3.20-23 etc.).

Jesus acrescentou uma parábola, porque estava perto de Jerusalém e eles pensavam que o Reino de Deus ia chegar logo (v. 11).

A introdução é própria de Lc (como o final v. 28) e esclarece a dupla parábola. Jesus vai subindo a Jerusalém (cf. Sl 122,5: “ali estão os tronos da justiça, os tronos da casa de Davi”), mas não para tomar posse como rei, sim para padecer e ser glorificado (cf. 9,22.44; 18,31-33; 24,26.46s).

A Bíblia do Peregrino (p. 2519) comenta o caminho de Jesus: Vai caminhar para receber do Pai o poder real (cf. Sl 72,1-2; 110,1). Os discípulos pensam que vai proclamar imediatamente em Jerusalém, o reinado de Deus prometido e anunciado, sem passar pela paixão “Diante do Senhor, que está chegando, já está chegando para reger a terra” (Sl 96,13; 98,9). Não é assim: para receber o poder real, primeiro terá que morrer. Então voltará com poder, como rei, mas não imediatamente.

Como os judeus da época, os discípulos esperavam o reino de Deus dentro de curto prazo, “que ia chegar logo” (cf. At 1,6). A parábola de Lc é uma alerta contra essa impaciência (cf. 17,23). Ela mostra que os discípulos terão de ocupar-se com as tarefas determinadas (cf. 12,35-48) por um longo período antes da volta do Senhor (cf. 17,23). Se o fizerem devidamente, participarão afinal do governo do rei celeste, ao passo que os que resistiram ativamente à sua missão serão condenados e executados (v. 27).

Então Jesus disse: “Um homem nobre partiu para um país distante, a fim de ser coroado rei e depois voltar (v. 12).

Um salmo messiânico começa assim: “Ó Deus, confia teu julgamento ao rei, tua justiça a um filho de rei” (Sl 72,1). No Império Romano, toda investidura de um rei vassalo deve ser ratificada por Roma. O v. 14 mostra que esse traço se inspira na viagem de um dos filhos de Herodes, Arquelau, à Roma no ano 4 a.C. para consolidar em seu favor o testamento do seu pai Herodes Magno (o mais filho mais velho que ainda vivia na morte do pai era Arquelau que governaria a Judeia com Jerusalém; seu irmão Antipas apenas a Galileia). Essa narração está particularmente bem situada em Jericó (v. 1), onde Herodes Grande havia morrido e Arquelau tinha reformou o palácio real magnificamente.

Em Lc, a história tornou-se uma alegoria: a viagem “para um país distante” simboliza a despedida de Jesus na morte e na ascensão; a volta depois da entronização designa sua parusia (volta triunfal) para o juízo final com recompensas e castigos. A longa distância explica a demora da parusia.

Chamou então dez dos seus empregados, entregou cem moedas de prata a cada um, e disse: ‘Procurai negociar até que eu volte’ (v. 13).

Lc menciona dez funcionários, Mt não diz o número. Para um homem de realeza não bastam apenas três servos, mas no decorrer da narração só três vão agir (como em Mt), segundo a norma usual das parábolas (cf. 10,33; 14,18-20; 19,16-24; 20,10-12).

Em Mt, a quantia confiada é bem maior (um “talento” corresponde a 34 quilos). Em Lc, o dinheiro entregue se chama “mina” (uma sexagésimo parte de um talento, cerca de 570 gramas): em Atenas equivale a cem dracmas, na Palestina a cinquenta siclos de prata, uma quantidade moderada (50 diárias de um lavrador, cf. Mt 20,2; Lc 7,41; 15,8) que contrasta com a enormidade da recompensa (vv. 17.19: cidades inteiras!). Lc quer sublinhar que a tarefa dos servos é desproporcional à sua recompensa, é um “negócio mínimo” (v. 17; cf. 16,10). Em Lc, cada servo recebe a mesma soma (em Mt não) e só os rendimentos serão diferentes.

Seus concidadãos, porém, o odiavam, e enviaram uma embaixada atrás dele, dizendo: ‘Nós não queremos que esse homem reine sobre nós’. Mas o homem foi coroado rei e voltou (vv. 14-15a).

Supõe-se que os cidadãos o odeiem sem razão e se oponham a um direito. No contexto do evangelho, os conterrâneos ou “concidadãos” são judeus em relação a Jesus (cf. Jo 18,35).

No mesmo ano 4 a.C., uma delegação de cinquenta judeus seguiu a Arquelau, com o fito de fazerem malograr os trâmites. César Augusto, porém, confirmou o testamento de Herodes, mas sem o título rei para Arquelau (somente “etnarca”). Na sua volta, Arquelau exerceu vingança sangrenta. Lc evoca estas lembranças para descrever a rejeição da realeza de Jesus por Israel oficial (cf. a lamentação sobre Jerusalém em 13,34: “não quiseste”).

Em 6 d.C., outra embaixada dos judeus foi a César Augusto em Roma pedindo abolição do governo de Arquelau, mais cruel que seu pai (cf. Mt 2,22). Desta vez, ele foi deposto e exilado na Gália (atual França). Judeia começou a ser administrada por governadores romanos (com sede em Cesareia no litoral), na época da paixão de Jesus era Pôncio Pilatos.

Mandou chamar os empregados, aos quais havia dado o dinheiro, a fim de saber quanto cada um havia lucrado (v. 15b).

Aqui começa a cena de prestação de contas, mais ou menos semelhante em Mt e Lc, que ambos pensam no juízo final. Investido com o poder supremo, o rei estabelece a hora de prestar contas. Em Mt, não é um rei, apenas um homem rico, mas uma alusão ao julgamento na ocasião da parusia. Mas Lc, pelo contexto, alude igualmente à realeza de Jesus e no drama de Israel.

O primeiro chegou e disse: ‘Senhor, as cem moedas renderam dez vezes mais’. O homem disse: ‘Muito bem, servo bom. Como foste fiel em coisas pequenas, recebe o governo de dez cidades’.

“Senhor” aqui é título régio que convém ao pretendente enfim investido, e melhor ainda a Jesus em sua glória escatológica. No texto paralelo de Mt não se trata de rei, e a mesma palavra indica simplesmente o proprietário.

A fórmula é rigorosa: “teu dinheiro”. Um provérbio diz: “Mão diligente mandará, mão negligente servirá” (Pr 12,24; 17,2). Mas o empregado não considera isso como mérito, talvez por ter depositado o dinheiro no banco (cf. v. 23). Para um ouvinte religioso, significa que sem ajuda de Deus, nada rende (cf. 1Cor 3,6s). O servo é elogiado pessoalmente (“servo bom”). O contraste entre o negócio mínimo (“coisas pequenas”, cf. 16,10) e a recompensa enorme (autoridade sobre dez cidades) chama atenção e talvez queira comparar a tarefa humana em relação à recompensa divina (2Cor 4,17; Rm 8,18; cf. Lc 17,7-10 e a situação incomum em que o Senhor serve ao empregado em 12,37; 22,27).

O segundo chegou e disse: ‘Senhor, as cem moedas renderam cinco vezes mais’. O homem disse também a este: ‘Recebe tu também o governo de cinco cidades’ (vv. 18-19).

Também o segundo empregado teve êxito nos seus negócios e recebe a recompensa na mesma proporção. A falta do elogio “servo bom” não significa logo menos reconhecimento, porque o evangelista resume.

Chegou o outro empregado e disse: ‘Senhor, aqui estão as tuas cem moedas que guardei num lenço, pois eu tinha medo de ti, porque és um homem severo. Recebes o que não deste e colhes o que não semeaste’ (vv. 20-21).

O terceiro servo guardou o dinheiro apenas num lenço (em Mt 25,25, o enterrou no chão), quer desviar da sua preguiça e falta de reponsabilidade acusando o patrão de exigente e “severo”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2519) comenta: A ideia que esse empregado tem do patrão é contraria à realidade: o patrão foi razoável ao emprestar e muito generoso ao remunerar. O acomodado é covarde quer descarregar sua culpa no patrão, e a si mesmo se condena (cf. Pr 12,27), e e a si mesmo se condena (cf. Pr 12,27), descreve o rei como déspota implacável, como o Faraó (Ex 5).

O homem disse: ‘Servo mau, eu te julgo pela tua própria boca. Tu sabias que eu sou um homem severo, que recebo o que não dei e colho o que não semeei. Então, porque tu não depositaste meu dinheiro no banco? Ao chegar, eu o retiraria com juros’ (vv. 22-23).

O rei torna as palavras do servo mau como norma do seu julgamento, “severo”. Não foi só opinião ou autodefesa do servo, mas calunia ao patrão, portanto o servo não é só preguiçoso, mas “mau”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2520) comenta: Teoricamente o depositado pode ficar intacto, como uma jóia num banco. O Senhor quer que o depositado funcione como semeado que cresce e se multiplica. O diligente demonstrou sua capacidade de tirar partido do dinheiro confiado.

Depois disse aos que estavam aí presentes: ‘Tirai dele as cem moedas e dai-as àquele que tem mil’. Os presentes disseram: ‘Senhor, esse já tem mil moedas!’ (vv. 24-25).

A única segurança a respeito do reino de Deus não é conservar-se e ficar na inércia ou no medo, mas aceitar o risco e empenhar-se (cf. 9,26p; Fl 2,12s).

Ele respondeu: ‘Eu vos digo: a todo aquele que já possui, será dado mais ainda; mas àquele que nada tem, será tirado até mesmo o que tem (v. 26).

Numa fase anterior da tradição, este aforismo foi transmitido independente da parábola (cf. Mc 4,25; Lc 8,18; Mt 13,12). A Bíblia do Peregrino (p. 2520) comenta: O aforismo é um paradoxo, e como tal deve ser tratado. Ao interpretá-lo cabem diversas aplicações aqui, p.ex. o terceiro servo tem (confiado) e não tem (próprio); tirar-lhe-ão o que se tem sem possuí-lo; outra explicação: os dotes que tem e as realizações que não tem.

Jesus não opina aqui sobre a lógica trágica do capitalismo que pode levar povos inteiros à ruína através da especulação financeira, mas expressa uma experiência sapiencial; cf. Pr 10,4: “A mão preguiçosa empobrece, o braço diligente enriquece”. Mc 4,25 e Mt 13,2 aplicam a mesma sentença ao conhecimento do mistério do reino que é dado aos discípulos. Eles são pobres materialmente (Mt 9,19s; 10,9s; 19,21-29), mas ricos espiritualmente (cf. Mt 5,3-12). O Magnificat e as bem-aventuranças de Lc também garantem aos pobres a posse do reino de Deus, enquanto aos ricos será tirado o que eles têm (1,53; 6,20-26). Não quer dizer que o pobre deve ser preguiçoso (cf. 2Ts 3,10), muito menos na expectativa do reino.

E quanto a esses inimigos, que não queriam que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e matai-os na minha frente’” (v. 27).

Essa palavra final se refere aos “inimigos” de v. 14 que tramitaram contra o rei pretendente. Lc se lembra do ano 70 d.C em que os líderes judeus, que antigamente eram contra o reinado do messias Jesus, depois foram mortos pelos romanos na destruição de Jerusalém (19,41-44; 23,28-31; cf. 1Sm 15,33).

Jesus caminhava à frente dos discípulos, subindo para Jerusalém (v. 28).

Foi o último ensinamento durante a longa caminhada de Jesus a Jerusalém (9,51-19,28) e é pensando para o futuro (parusia). Esta frase já é transição para sua entrada triunfal em Jerusalém (vv. 28-40).

O site da CNBB comenta: Os dons que temos não nos pertencem, mas sim a Deus, que é o Senhor de tudo, de modo que os dons que recebemos de Deus devem ser ordenados para ele. Sendo assim, não podemos usar os nossos dons, nem mesmo os dons naturais, somente em vista da nossa realização e da nossa promoção pessoal, mas devemos colocá-los a serviço de Deus e dos nossos irmãos e irmãs, pois somente quando o dom se transforma em serviço é que ele é capaz de multiplicar e de produzir frutos em abundância, contribuindo, assim, para que o Reino de Deus cresça cada vez mais no meio dos homens.

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