18 de setembro de 2017 – Segunda-feira, 24ª semana

Leitura: 1Tm 2,1-8

Além de preservar a comunidade na doutrina dos apóstolos frente a heresias, uma grande preocupação das cartas pastorais (das quais 1Tm faz parte, cf. a introdução no comentário de sexta-feira passada) é dar normas concretas para a ordem de comunidades locais. É significativo que conceda o primeiro lugar às reuniões de oração, talvez por considerá-las centro da vida comunitária. Mas nenhuma destas cartas menciona explicitamente a Eucaristia (como fez Paulo em 1Cor 11).

A instrução é motivada pelo desejo de corrigir abusos internos e externos, oferece também alguns conselhos ou ordens positivas em tom de autoridade, recomendação que equivale a mandato. O autor recomenda que os cristãos incluam na sua oração todos os homens. É a oração litúrgica universal, impulsionada pela convicção de que Deus enviou seu Filho para salvar o mundo inteiro.

Antes de tudo, recomendo que se façam preces e orações, súplicas e ações de graças, por todos os homens; pelos que governam e por todos que ocupam altos cargos, a fim de que possamos levar uma vida tranquila e serena, com toda piedade e dignidade (vv. 1-2).

Podemos distinguir quatro categorias de rezar: “preces (pedidos) e orações (intercessões), súplicas e ações de graças” (o termo grego euc(h)aristia significa ação de graça). O autor frisa a universalidade da oração: rezar não só por si e os seus, mas “por todos os homens”, também pelas autoridades (sobre a lealdade de Paulo, cf. Rm 13,1-7). Entre elas seleciona primeiro a intercessão pelas autoridades imperiais e regionais. Muitas vezes, as autoridades levam a culpa e responsabilidade por toda desordem. A política é considerada suja e corrupta; seu objetivo, porém, seria o bem comum de todos, garantir a harmonia social e a paz e na sociedade.

A Bíblia do Peregrino (p.2852) comenta: Há antecedentes notáveis no AT: Moisés intercede várias vezes pelo Faraó (Ex 8,4-9.24-27; 10,17-19); Jeremias manda rezar por Babilônia: “Rezai por ela, porque sua prosperidade é a vossa” (Jr 29,7). Supõe-se que as autoridades podem e devem contribuir para o bem de seus súditos: no civil, “tranquilidade” (vida calma e serena), e no religioso, “piedade”. Os cristãos, embora espalhados em comunidades sólidas através do Império Romano, eram minoria entre a maioria pagã; haviam superado já algumas perseguições, mas continuavam dependendo da honradez e boa vontade de seus senhores civis, pois não parece que eles tenham tido acesso a cargos de governo. Pelo bem do povo deve-se rezar por eles, ainda que sejam pagãos.

Os cristãos no final do primeiro século anseiam por uma vida de paz e tranquilidade. O fim do versículo reflete talvez os temores do apóstolo quanto ao futuro.

Isto é bom e agradável a Deus, nosso Salvador; ele quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade (vv. 3-4).

Também as autoridades, os políticos, são chamados a salvação (cf. Ez 18,23). Salvação é conhecimento da verdade (4,3; 2Tm 2,25; 3,7; Tt 1,1), mas este conhecimento comporta o empenho de toda a vida (Cf. Os 2,22; Jo 8,32; 10,14; 2Ts 2,12 etc.). Mas “o que é a verdade?”, perguntou Pilatos (Jo 18,38; cf. 14,6); é o Cristo e seu evangelho.

Aqui não se pede o castigo, mas a conversão das autoridades, que sejam agentes da paz. A afirmação de que Deus quer a salvação de todos (Cf. 4,10) é de grande dimensão teológica e ajuda a interpretar corretamente outras passagens de Paulo (cf. Rm 9,18.21 etc.). Ela é motivada (v. 5) pela evocação da unidade de Deus (cf. Mc 12,29p; Rm 3,29-30; Ef 4,6) e da situação única de Cristo Deus e homem (cf. Hb 2,17; 8,6; 12,24; 13,20).

Pois há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens: o homem Cristo Jesus, que se entregou em resgate por todos. Este é o testemunho dado no tempo estabelecido por Deus, e para este testemunho eu fui designado pregador e apóstolo, e – falo a verdade, não minto – mestre das nações pagãos na fé e na verdade (vv. 5-7).

Os vv. 5-6 parecem uma citação de um hino litúrgico ou profissão de fé (outra em 3,16; cf. a apelo a unidade em Ef 4,4-6). “Um só Deus” corresponde ao monoteísmo definido no judaísmo, de modo enfático a partir do Segundo Isaias (Is 43,10s; 44,6.8; 45,514.21s), apoiando em ensinamentos precedentes (cf. Dt 4,35.39; 6,5). “Um só mediador” entre Deus e os homens (1Cor 8,6; Hb 9,15) é um homem chamado Jesus, cujo título é “Cristo” (ungido rei/messias); com ele ficam abolidas as mediações de outras religiões e cultos. Jesus é mediador em sua qualidade de homem que lhe permite ser salvador de todos (v. 4), com sua morte “em resgate por todos” (v. 6; cf. Hb 2,14-17). Em sua vida humana entregou-se à morte como “resgate” (Mc 10,45p; cf. Sl 49,8) de escravos do pecado (1,15; Gl 1,4), com alcance universal. Evoca a figura do servo de Javé em Is 53.

Desde a reforma litúrgica do Vaticano II, há certa polêmica sobre a tradução na Oração Eucarística a respeito das palavras sobre o cálice: “por muitos” (ou “multidão”, cf. Is 53,11s; Mc 10,45; Mt 26,28; Hb 9,28; Ap 7,9) ou “por todos” (cf. os escritos joaninos, Jo 1,29; 6,51; 11,52; 1Jo 2,2, e as cartas paulinas, Rm 5,15-19; 8,32; 1Cor 10,16s; 2Cor 5,14s; 1Tm 2,3-6; Tt 2,11.14). Bento XVI queria voltar para “muitos” (antes da reforma do Vaticano II), Papa Francisco não tocou mais no assunto.

Com sua morte, Jesus deu o testemunho supremo de amor divino, ele é “testemunha fiel” do Pai (Ap 1,5; 3,14). Entregando-se em resgate por todos, deu testemunho do desígnio universal de Deus “diante de Pôncio Pilatos numa bela profissão de fé” (6,13).

Este testemunho foi confiado a Paulo que devia levar o evangelho às nações pagãs (gentios; cf. Gl 2,7; At 9,15), como “mestre das nações” pregar a salvação oferecida a todos (Rm 1,1.5; 16,26; At 9,15). Os três títulos, “mensageiro (pregador, anunciador), apóstolo e mestre (doutor)”, reaparecem unidos também em 2Tm 1,11. O mensageiro anuncia boas notícias, o evangelho; “mestre” é uma das funções (diferentes da apostólica) em 1Cor 12,8-10.28s e paralelos.

Timóteo, discípulo de Paulo, não necessitaria de tal declaração de seu mestre e “pai” espiritual (cf. 1,2). A frase tem outra função: garantir uma carta emanada da sua escola (as cartas pastorais já são da terceira geração cristã).

Quero, portanto, que em todo lugar os homens façam a oração, erguendo mãos santas, sem ira e sem discussões (v. 8).

“Em todo lugar”, quer dizer não só em lugares especiais; o extremo oposto da centralização do culto promovida por Josias (2Rs 22-23; Dt 12; cf. Jo 2,20s; 4,20-24); outros interpretam “os homens de qualquer lugar”. As mãos levantadas são um gesto comum de oração (Is 1,15; Sl 141,2; etc.).

Contra sectarismo e particularismo, “ira e discussões“ partidárias, a leitura de hoje destaca o universalismo: Deus quer salvar a “todos”; seu Filho se entregou para salvar a “todos”; Paulo foi chamado para levar esta boa notícia a “todas as nações”; os cristãos devem rezar “por todas as pessoas” e “em todo lugar”. A oração deve ser tão universal quanto a própria Igreja que se chamará “católica” (significa: universal, geral, para todos). Ser Igreja no mundo é testemunhar que o projeto de Deus está aberto para todos.

Evangelho: Lc 7,1-10

Depois do discurso da planície (em Mt é o sermão da montanha), segue se uma narrativa que destaca a eficácia e o alcance da palavra de Jesus.

Quando acabou de falar ao povo que o escutava, Jesus entrou em Cafarnaum (v. 1).

Ao discurso da planície (evangelhos da semana passada; cf. o sermão da montanha em Mt 5-7) seguem-se dois milagres notáveis em Lc. O primeiro é a cura à distância em Cafarnaum (cf. os paralelos Mt 8,5-13; Jo 4,43-54) a favor de um pagão. O segundo é a ressurreição do filho de uma viúva (próprio de Lc, cf. evangelho de amanhã) na cidade de Naim. Lc destaca a condição dos beneficiários.

O fato de Mt e Lc, embora escrevendo independentemente um do outro, colocam a narrativa do centurião logo em seguida daquele sermão, leva a pensar que a cura já estava na fonte comum que Mt e Lc usaram, mas que desapareceu na história: uma coleção de palavras chamada Q, ou esta combinada à uma segunda e ampliada edição de Mc, chamada Deutero-Marcos. Obviamente a função desta cura à distância já na fonte era mostrar a eficiência da Palavra de Jesus logo após o sermão.

Havia lá um oficial romano que tinha um empregado a quem estimava muito, e que estava doente, à beira da morte. O oficial ouviu falar de Jesus e enviou alguns anciãos dos judeus, para pedirem que Jesus viesse salvar seu empregado. Chegando onde Jesus estava, pediram-lhe com insistência: “O oficial merece que lhe faças este favor, porque ele estima o nosso povo. Ele até nos construiu uma sinagoga” (vv. 2-5).

A figura do “oficial romano”, lit. “centurião” (que comanda cem soldados) é toda descrita com traços significativos. Ele está a serviço do governador da Galileia, Herodes Antipas, mas não necessariamente romano. Herodes Antipas recrutava suas tropas em todas as regiões circunvizinhas (em Jo 4,46-53, Jesus cura o filho de um oficial de Herodes à distância). Talvez seja um romano, mas com certeza um pagão, porém, simpatiza com a religião e as praticas judaicas, às quais tem dedicado parte da sua fortuna (ou autoridade), “construiu (ou mandando construir) uma sinagoga”.

Lc destaca a simpatia do centurião porque está interessado em superar a divisão entre judeus e pagãos, defendendo a missão aos pagãos criticada pelos judeus. Já em 3,14, soldados mostraram abertura à mensagem de João Batista. Em 4,25-27, Jesus falou na sinagoga de Nazaré sobre os pagãos atendidos pelos profetas de Israel. Já em Mc 15,39, um centurião reconheceu Jesus como filho de Deus (cf. Lc 23,47). Em At 10, Pedro batiza o primeiro pagão, o centurião Cornélio, e Paulo leva o evangelho às nações (cf. ainda o Concílio de Jerusalém em At 15 e os conflitos em Gl 2).

O centurião do evangelho de hoje é “temente a Deus” como o centurião Cornélio (At 10,2.4.31), embora não pertencesse oficialmente aos seus quadros religiosos do judaísmo. Não é “prosélito”, os prosélitos são aqueles que, não sendo judeus de origem, abraçaram a religião judaica e aceitaram a circuncisão tornando-se assim membros do povo eleito (cf. At 6,5; 13,43; Mt 23,15). Os “tementes a Deus“ simpatizavam com o judaísmo e frequentavam as sinagogas, mas não chegavam até a circuncisão e a prática ritual da Lei.

Em Mt 8,6 o doente (“à beira da morte”, cf. Jo 4,47) é um menino (ou criado, mas pode ser traduzido por “filho”), em Lc é claramente um “empregado”, servo ou escravo, mas “a quem estimava muito”. Lc, como Paulo, quer superar os conflitos entre classes sociais (cf. Gl 3,28; Rm 8,15; Fm 10-19 etc.). ”Se tens somente um servo, trata-o como a ti mesmo, considera-o um irmão” (Eclo 33,31).

O centurião pagão, mas temente a Deus, reclama a mediação dos judeus, de acordo com predições proféticas (Zc 8,23). Os “anciãos dos judeus” são notáveis da localidade que não devem ser confundidos com os “anciãos” de Jerusalém, membros do sinédrio (cf. 20,1p etc.).

Em Mt e Jo, é o próprio oficial que dialoga com Jesus, mas em Lc não, porquê? A intermediação, primeiro pelos “anciãos” e depois pelos “amigos” (judeus?, v. 6), é própria de Lc. Ele não fala mal dos costumes, da lei e do povo judeu como os outros evangelistas (Lc omite Mt 8,11s), ao contrário, mostra a unidade que devia ter na igreja formada de judeus e pagãos. Por isso, introduz os intermediários judeus nesta cura, cf. Jerome Kodell no Comentário Bíblico III (p. 84): Se os judeus praticantes de seu tempo trouxeram um não-judeu até Jesus e este foi a ele sem evasivas – o argumento da igreja deve ter surtido efeito – porque os cristãos judeus não haveriam de aceitar os pagãos?

Então Jesus pôs-se a caminho com eles. Porém, quando já estava perto da casa, o oficial mandou alguns amigos dizerem a Jesus: “Senhor, não te incomodes, pois não sou digno de que entres em minha casa. Nem mesmo me achei digno de ir pessoalmente ao teu encontro. Mas ordena com a tua palavra, e o meu empregado ficará curado (vv. 6-7).

Lc sublinha a humildade do centurião que reconhece a dignidade especial de Jesus: mais uma vez aproxima-se dele por intermediários e não se atreve a hospedá-lo (sabe da proibição judaica de entrar nas casas de pagãos, cf. Jo 18,28; At 11,3) nem falar com ele pessoalmente. O que mais importa é que crê no poder sobrenatural de Jesus. Enquanto o povo procura tocá-lo para receber dele seu fluido curador (6,19), o centurião reconhece que basta uma palavra, uma ordem de Jesus para que a cura aconteça.

A liturgia cristã conservou a frase de centurião no contexto da eucaristia. Seu pedido (e exemplo de fé e humildade) entrou na liturgia da missa. Antes de receber o corpo de Cristo dizemos: “Senhor, eu não sou digno, que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra, e serei salvo” (o corpo como morada da alma). “Quem ousaria aproximar-se de mim?”, pergunta Deus em Jr 30,21 (cf. Ex 19,12; 33,20).

Eu também estou debaixo de autoridade, mas tenho soldados que obedecem às minhas ordens. Se ordeno a um : ‘Vai!’, ele vai; e a outro: ‘Vem!’, ele vem; e ao meu empregado ‘Faze isto!’, e ele o faz” (v. 8).

A experiência militar é imagem para expressar esse poder de Jesus. Um modo de fazer próprio de soberano e autoridades é por meio da palavra, ou seja, dando ordens: é fazer fazer. Dessa condição são as ordens criadoras de Deus (Gn 1; Sl 33). O centurião o experimentou dentro do regime e da hierarquia militar. Ele chamou Jesus de “Senhor” (v. 6), título que alude a divindade de Jesus (Fl 2,11) e será usado por Lc em v. 13. Em várias ocasiões, os evangelistas citam palavras soberanas de Jesus pronunciadas sobre a criação para melhorá-la ou restaurá-la (cf. Jo 5,17).

Mas curiosamente, o narrador Lc não menciona essa palavra de Jesus (Mt 8,13; Jo 4,50), mas diz apenas que se põe “a caminho com eles” (v. 6; cf. 24,15; a palavra de Jesus em Mt 8,13 destaca a fé) e depois o empregado se recuperou (v. 10).

Ouvindo isso, Jesus ficou admirado. Virou-se para a multidão que o seguia, e disse: “Eu vos declaro que nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé.” Os mensageiros voltaram para a casa do oficial e encontraram o empregado em perfeita saúde (vv. 9-10).

O relato desemboca, não na admiração do povo como em outras curas (4,36), mas na admiração de Jesus diante da fé do pagão! (cf. ao contrário, a falta de fé dos nazarenos em Mc 6,5-6p). Porque Lc está interessado em superar a divisão entre judeus e pagãos, a reação de Jesus é menos dura para Israel do que a de Mt 8,10-12. Para a igreja de Lucas (seus leitores eram pagãos gregos e romanos), a fé do pagão é exemplar e consoladora. Fé no poder e na misericórdia de Jesus, na palavra que penetra no tecido da vida humana.

O oficial era «temente a Deus», isto é, simpatizante do judaísmo, embora não pertencesse oficialmente aos seus quadros religiosos. Às vezes pode-se encontrar mais fé em pessoas que não pertencem a uma instituição religiosa do que entre aquelas que dela fazem parte. Por quê? A Igreja deve reconhecer a fé e a boa vontade de pessoas fora da sua instituição e se alegrar e dialogar em vez de condenar (em vez de criticar o cisco no olho do outro e não ver a trave no próprio, cf. 6,42).

O site da CNBB comenta: Uma coisa é a fé em si, e outra coisa é como ela se expressa. Para muitos, a fé em si nem sequer é percebida, de modo que existe uma necessidade muito grande de ritualismo e de formas exteriores de expressão da fé. Quem tem verdadeiramente fé em Jesus, acredita na autoridade do seu nome e na força da sua Palavra, e não necessita de manifestações exteriores para acreditar na eficácia da sua ação. Deste modo, todos nós somos convidados a reconhecer que a grandiosidade da fé do Centurião que acreditou plenamente no poder da Palavra de Jesus e não exigiu dele nenhum rito ou gesto exterior e, porque acreditou, foi atendido naquilo que desejava.

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