19 de Fevereiro de 2020, Quarta-feira: Jesus pegou o cego pela mão, levou-o para fora do povoado, cuspiu nos olhos dele, colocou as mãos sobre ele, e perguntou: “Estás vendo alguma coisa?” (vv. 22b-23).

6ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Tg 1,19-27

Ouvimos na leitura de hoje várias semelhanças da carta de Tiago com o evangelho de Mateus, especialmente com o sermão da montanha em Mt 5-7: a palavra de Jesus como lei perfeita (Mt 5), que se deve “pôr em prática” (Mt 7,21-27), não se deve orar com muito palavreado ao nosso Pai (cf. Mt 6,7-14), mas praticar a ética e a misericórdia para com os necessitados (cf. Mt 25,31-46).

Meus queridos irmãos, sabei que todo homem deve ser pronto para ouvir, mas moroso para falar e moroso para se irritar. Pois a cólera do homem não é capaz de realizar a justiça de Deus (vv. 19-20).

O tema de falar é enunciado aqui, se prolonga nos vv. 26-27 e retornará em 3,1-12. É muito freqüente na literatura sapiencial. A citação é tirada do Eclesiástico e pertence à primeira instrução sobre o falar (Eclo 5,9-15); pode-se comparar com Pr 10,19; 13,3. Pela proximidade material, poderíamos referi-lo também à mensagem (“Palavra”) que deve ser ouvida (Rm 10,17). A cláusula acrescentada sobre a ira poder ser recordação de Ecl 7,9.

A ira de Deus é sua reação ao mal e sua condenação, e é justa. A ira do homem leva à vingança, que não realiza a justiça querida por Deus, mas acrescenta injustiça (cf. Am 1,11).

 A Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB, p. 2371) comenta: A justiça de Deus não reveste aqui o significado paulino de revelação da salvação (cf. Rm 1,17; 3,24), mas designa o conjunto das exigências da palavra e da sabedoria divina (cf. 3,18), particularmente as da lei régia de amor (cf. 2,8) que são violadas pela cólera. É concordando com essas exigências que o homem se torna justo (cf. 2,21-25) e dá força a sua oração (cf. 5,16). Essa concepção da justiça como agir a partir da fé tem seus melhores paralelos em Mt (5,6.10.20; 6,33; 12,36-37).

Por esta razão, rejeitai toda impureza e todos os excessos do mal, mas recebei com humildade a Palavra que em vós foi implantada, e que é capaz de salvar as vossas almas. Todavia, sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Com efeito, aquele que ouve a Palavra e não a põe em prática é semelhante a uma pessoa que observa o seu rosto no espelho: apenas se observou, vai-se embora e logo esquece como era a sua aparência (vv. 21-24).

Retoma o tema da “Palavra” (cf. v. 18): é preciso preparar-lhe o terreno, recebê-la escutando e pô-la em pratica. A primeira tarefa é limpar a “impureza” (ser livres de toda mancha; uma fórmula relacionada ao batismo cf. 1Pd 2,1; Rm 13,12; Ef 4,22.25; Cl 3,8; Hb 12,1), um dos símbolos básicos do pecado (cf. Sl 51 e Ez 36). Depois, deve-se acolhê-la suavemente, sem resistência nem violência, para que seja “implantada” (semeada, diz Mt 13). Dá fruto quando é posta em “prática” (Tt 3,14). Ao “gerar” (v. 18) corresponde ao “salvar”.

A comparação do espelho (cf. 1Cor 13,12) é original e é pouco desenvolvida. Talvez se imagine um personagem que se olha no espelho para ver “como está”, sujo ou despenteado; e quando sai se esquece de arrumar-se. Pouco lhe valeu olhar-se no espelho.

Aquele, porém, que se debruça sobre a Lei da liberdade, agora levada à perfeição, e nela persevera, não como um ouvinte distraído, mas praticando o que ela ordena, esse será feliz naquilo que faz (v. 25).

O evangelho pode ser chamado “lei”, enquanto manda ou dá instruções. Só que é uma lei especial: não escraviza, mas liberta; lei de um reino (2,8) em que todos são livres (2,12) e não há escravos; é a lei de Cristo, implantada pela pregação do evangelho. Aceitar a mensagem e não cumpri-la é iludir-se, como explicará depois (2,14-26). Bom exemplo de ouvir sem cumprir é o que lemos em Ez 33,30-33. Como a “palavra da verdade” (v. 18) esta “lei da liberdade” é a revelação cristã recebida e posta em pratica (cf. Mt 5,17-19; 7,24-27; Jo 13,17). Ela liberta o homem (2,12) pela observância dos mandamentos. Paulo verá na libertação do cristão uma prerrogativa da nova lei, a da fé (Rm 3,27; 6,15; 7,1; Gl 4,21ss).

Se alguém julga ser religioso e não refreia a sua língua, engana-se a si mesmo: a sua religião é vã. Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai, é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo (vv. 26-27).

Quem multiplica orações com uma “língua sem freio” (v. 26) e pensa que nisso consiste ser “religioso” (cf. Mt 6,7), engana-se. É a polylogia (usar muitas palavras sem dizer muita coisa) que já os antigos condenavam. Corresponde a condenação profética do ritualismo (cf. Is 1,10-20; Jr 7; Is 58). A isso se opõem as obras de misericórdia para com os necessitados, resumidos na dupla “viúvas e órfãos”, de matriz bíblica (cf. Sl 68,6; Jó 29,12s; etc.). Temos aqui um eco dos profetas que se recusavam a dissociar o culto autêntico da justiça com os humildes (cf. Is 1,11-17.23; Jr 5,28; Ez 22,7; Zc 7,10).  “Mundo” tem o mesmo sentido que em 4,4; seu critério ou princípio é o egoísmo (cf. 1Jo 2,15-17), sua ação é “contaminar”.

“Deus (nosso) Pai” (cf. Mt 6,9; 1Cor 15,24; Ef 5,20): esta expressão já era usada no AT (Dt 32,6; cf. Is 63,16; Eclo 23,1.4; Sb 2,16). O culto espiritual agradável a Deus toma forma concreta no comportamento honesto e no serviço aos fracos (cf. Dt 27,19; Is 1,17; Jr 5,28; etc.). A “pureza” (sem mancha, não se deixar contaminar) exigida pelo culto é a do amor (cf. 4,8; Mc 7,1-23). Aliás, é a única vez na Bíblia que se define este termo: “religião” (cf. Mq 6,8). O shema Israel destaca o ouvir: “Ouve Israel, Javé nosso Deus é único…” (Dt 6,4). Religião não é só falar, mas ouvir e praticar, “re-ligar-se” a Deus que ouve o clamor do seu povo sofrido (Ex 3,7).

A Bíblia Sagrada Edição Pastoral (p. 1490) resume:

Tiago chama a atenção para a essência da vida cristã: ouvir a palavra do Evangelho e colocá-la em prática. A fé não se resume em afirmações que podem ser ouvidas e decoradas; ela é compromisso que leva a tomar atitudes concretas e cheias de conseqüências. Centrado no mandamento do amor, o Evangelho é a lei da liberdade, pois o amor não se restringe a exigir a obediência a uma lista de obrigações; ele é comportamento criativo, que sabe dar resposta libertadora e construtiva em qualquer situação…Temos aqui um dos pontos centrais do Novo Testamento: o culto que se pede aos cristãos não se resume em cerimônias ou em saber fórmulas de cor. O verdadeiro culto é a entrega de si mesmo a Deus para viver a justiça na prática: não difamar o próximo (língua); socorrer e defender os pobres e marginalizados (órfão e viúva) e não comprometer-se com a estrutura injusta da sociedade (corrupção do mundo).

 

Evangelho: Mc 8,22-26

A cura do cego é muito parecida em estrutura e gestos com procedentes do surdo (7,31-37). Na tradição anterior de Mc, estas duas curas deviam ter formado um par contado para exaltar Jesus como aquele que renova a criação ferida e traz a salvação messiânica profetizada em Is 35,5-6 (cf. 7,37). Com essa cura, a profecia de Is 35,5-6 (curas de cegos, surdos, coxos, mudos) se completou no Evangelho.

Jesus e seus discípulos chegaram a Betsaida (v. 22a).

Betsaida (hebraico: lugar de pesca) fica à margem setentrional do lago Genesaré. Segundo o quarto evangelho, três apóstolos eram naturais desta cidadezinha: Pedro, André e Filipe (Jo 1,44; 12,21). Jesus passou várias vezes ali (cf. Mc 6,45; Lc 9,10) e operou também milagres (cf. Mt 11,21p). Será que a cura em seguida tem algo ver com Pedro cuja profissão de fé é narrada em seguida (vv. 27-33)?

Algumas pessoas trouxeram-lhe um cego e pediram a Jesus que tocasse nele. Jesus pegou o cego pela mão, levou-o para fora do povoado, cuspiu nos olhos dele, colocou as mãos sobre ele, e perguntou: “Estás vendo alguma coisa?” (vv. 22b-23).

Na cura do surdo, vimos também pessoas anônimas que trouxeram um deficiente, e descreve-se o mesmo afã de afastar-se e a comunicação pelo tato, ou seja, pela saliva e pela mão (dedos). Os antigos atribuíam à saliva virtudes terapêuticas: a de Jesus é milagrosa. De fato, a saliva tem certa qualidade anti-inflamatória como se pode observar em animais lambando suas feridas. Em Jo 9,6, Jesus “cuspiu na terra, fez lama com a saliva, aplicou-a sobre os olhos do cego.”

O homem levantou os olhos e disse: “Estou vendo os homens. Eles parecem árvores que andam.” Então Jesus colocou de novo as mãos sobre os olhos dele e ele passou a enxergar claramente. Ficou curado, e enxergava todas as coisas com nitidez. Jesus mandou o homem ir para casa, e lhe disse: “Não entres no povoado!” (vv. 24-26).

Novo e único é o processo da cura em duas etapas, não era cego de nascença (cf. Jo 9), pois soube identificar as figuras com arvores. A Bíblia de Jerusalém traduz “começou a ver” em vez de “levantou os olhos”. A cura é constada, mas falta uma aclamação do povo (cf. 7,37) porque está ausente aqui. Jesus manda o homem ir à casa (cf. 2,11; 5,19) sem passar pelo povoado, porquê?

Como em outras ocasiões, Jesus não quer a divulgação da cura. É o chamado “segredo do messias”, uma característica no Evangelho de Mc (cf. 1,24s.34.44; 3,12; 5,43; 7,36; 8,25.30; 9,9): Jesus não quer ser confundido com um messias guerreiro igual a Davi ou com um médico famoso que prolonga a vida dos doentes. A sua missão de messias é salvar o povo através da doação de sua própria vida, e isso só se revelará na cruz (cf. 10,45; 15,39).

As curas nos evangelhos, porém, tem significado simbólicos. Jesus é a luz do mundo, é ele que ilumina as pessoas que não conseguem enxergar a realidade e o segredo da sua pessoa. Em Mc, no trecho anterior (evangelho de ontem), Jesus acabou de censurar os discípulos: “Tendo olhos, vós não vedes, e tendo ouvidos, não ouvis?” (8,18). No contexto da cidade Betsaida ainda, esta cura do cego pode aludir à fé (visão) de Pedro no trecho seguinte: ele começa enxergar que Jesus é o messias, mas ainda o confunde com um messias guerreiro; só depois da cruz e da ressurreição enxergará “com nitidez”.

O site da CNBB comenta: Jesus retira o homem do povoado, não o cura totalmente na primeira vez que lhe impõe as mãos, o deixa totalmente curado na segunda vez que lhe impõe as mãos e diz para ele não entrar no povoado. Esses elementos nos ajudam numa reflexão sobre o Evangelho de hoje. As pessoas vivem em sociedade e, geralmente, assumem integralmente os seus valores. Esses valores muitas vezes se tornam um obstáculo para a atuação da graça e para a verdadeira libertação dessas pessoas. Depois que a libertação acontece, essas pessoas não podem assumir novamente todos os valores da sociedade, pois voltarão a viver na escuridão do erro e do pecado.

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