19 de junho de 2018, terça-feira: “Afinal encontraste-me, ó meu inimigo?”

Leitura: 1Rs 21,17-29

A leitura de hoje é a continuação de um caso de grilagem de terras no antigo Israel que culminou no assassinato de Nabot (vv. 1-16, leitura de ontem). Como 150 anos antes o profeta Natã censurou o pecado de Davi (1Sm 11-12), agora é a vez de Elias de denunciar a culpa do rei. Ele intervém em nome de Deus que não fica indiferente e defende os pobres.

A palavra do Senhor foi dirigida a Elias, o tesbita, nestes termos: ”Levanta-te e desce ao encontro de Acab, rei de Israel, que reina em Samaria. Ele está na vinha de Nabot, aonde desceu para dela tomar posse. Isto lhe dirás: Assim fala o Senhor: Tu mataste e ainda por cima roubas! E acrescentarás: Assim fala o Senhor: No mesmo lugar em que os cães  lamberam o sangue de Nabot, lamberão também o teu“ (vv. 17-19).

Não matar e não roubar são dois preceitos do decálogo, violados pelo rei (também isso se parece com o duplo crime de Davi), além de se servir de falso testemunho (cf. Ex 20,13-17). Os cães lamberão o sangue de Acab morto numa batalha em 22,34-38. Mas em nossa leitura, o v. 29 faz cair o castigo sobre seu filho, Jorão, cujo corpo será jogado no terreno de Nabot (2Rs 9, 22-26).

Acab disse a Elias: “Afinal encontraste-me, ó meu inimigo?” (v. 20a).

Na sua replica, Acab parece reconhecer-se culpado, não arrependido.

Elias respondeu: “Sim, eu te encontrei. Porque te vendeste para fazer o que desagrada ao Senhor, farei cair sobre ti a desgraça: varrerei a tua descendência, exterminando todos os homens. Farei com a tua família como fiz com as famílias de Jeroboão, filho de Nabat, e de Baasa, filho de Aías, porque provocaste a minha ira e fizeste Israel pecar (vv. 20b-22).

O autor posterior acrescentou uma ampliação à sentença. É evidente sua intuição de igualar este oráculo a outros dois precedentes, contra Jereboão e contra Baasa. “Varrerei a tua descendência, exterminando todos os homens”, lit.: os que urinam contra a parede (cf. 14,10; 16,11; 1Sm 25,22). O castigo é semelhante às famílias dos primeiros reis do reino do norte que praticavam idolatria: Jeroboão (15,29) e Baasa (16,11). “Porque… fizeste Israel pecar”; alusão aos cultos idolátricos incentivadas por Acab e sua esposa Jezabel.

Os seguintes vv. 23-24 e 25-26 são possivelmente uma adição inserida mais tarde no corpo da narrativa. Os vv. 22 e 27 se completam perfeitamente.

Também a respeito de Jezabel o Senhor pronunciou uma sentença: “Os cães devorarão Jezabel no campo de Jezrael (v. 23).

Parece um acréscimo introduzido com base nos fatos acontecidos durante a revolta de Jéu (2Rs 9-10). Este v. vai depois de 24. Jezabel foi jogada pela janela e comida pelos cães, cf. 2Rs 9,30-37. Aqui “no campo”, segundo umas versões de manuscritos; o texto hebraico traz: “junto aos muros”.

Os da família de Acab que morrerem na cidade, serão devorados pelos cães, e os que morrerem no campo, serão comidos pelas aves do céu” (v. 24).

A mesma fórmula profética se encontra em 14,11: “Todo membro da casa de Jeroboão que morrer na cidade, será comido pelos cães, e todo membro que morrer no campo, será comido pelas aves.”

Não houve ninguém que se tenha vendido como Acab, para fazer o que desagrada ao Senhor, porque a isto o incitava sua mulher Jezabel. Portou-se de modo abominável, seguindo os ídolos dos amorreus que o Senhor tinha expulsado diante dos filhos de Israel (vv. 25-26).

Os vv 25-26 são a reflexão de um redator que não estava convencido do arrependimento de Acab (vv 27-29). Ele vê a idolatria como raiz de todos os crimes, também os de injustiça. Os deuses da fecundidade cananeus (como o Baal, trazido por Jezabel da Fenícia; cf. 16, 31s) não exigem a justiça humana como o faz o Deus de Israel com as condições da sua aliança.

“Seguindo os ídolos dos amorreus”, ou emoritas. A Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB, p. 538) comenta: Os emoritas (em sumério mar.tu), que têm seu nome provavelmente derivado da cidade de Mari, a leste da Mesopotâmia, que era um dos seus centros importantes no segundo milênio. Os emoritas se espalhavam entre o Eufrates e o Mediterrâneo, bem como na Síria e em Canaã. Talvez já sedentários no 3º milênio, construíram uma série de pequeninos reinos de tipo feudal (cidades-estado). Comerciantes e artífices, os emoritas traficavam objetos de couro mas sobretudo de metal, principalmente bronze. Eram também criadores de gado. Na Bíblia, “emorita” é muitas vezes, sinônimo de “canaanita”.

Quando Acab ouviu estas palavras, rasgou as vestes, pôs um cilício sobre a pele e jejuou. Dormia envolto num pano de penitência e andava abatido. Então a palavra do Senhor foi dirigida a Elias, o tesbita, nestes termos: ”Viste como Acab se humilhou diante de mim? Já que ele assim procedeu, não o castigarei durante a sua vida, mas nos dias de seu filho enviarei a desgraça sobre a sua família” (vv. 27-29). 

A Bíblia do Peregrino (p. 657.659) comenta: Acab era fiel ao Senhor, mas tolerava a propaganda aberta do baalismo; respeitava a tradição de Israel e os direitos dos seus súditos, mas tolerou o falso testemunho e o assassinato… A penitência de Acab consegue abrandar a sentença sem anulá-la totalmente. De fato sua dinastia continua nos seus filhos, e termina neles. E não podemos dizer que a sua morte tenha sido totalmente ignominiosa.

Se comparamos a leitura de hoje com a censura do profeta Natã ao rei Davi (2Sm 12), notamos semelhanças como: mesma intervenção de Javé em favor do pequeno contra o poderoso, mesma moratória concedida ao pecador arrependido, que não é castigado senão no seu filho. Mas também há diferenças: a dinastia davídica guarda a promessa (do messias; cf. 2Sm 7), a de Acab é “varrida” (cf. 2Rs 9-10). Natã continua sendo profeta de Davi e abençoará Salomão. Mas Elias é o “inimigo” de Acab.

Deus não fica indiferente. Sua “opção pelos pobres” já se notou na escolha do casal de migrantes idosos Abraão e Sara (Gn 12), na proteção da escrava fugitiva Agar em Gn 16 e principalmente na empatia com o povo oprimido em Ex 3,7. Esta opção torna-se um marco da mensagem dos profetas. O que começou com Moisés opondo-se ao poder do Faraó, continua agora no próprio país: o poder espiritual (a Palavra de Deus no profeta) continua lutando contra a arrogância, desobediência, injustiça e idolatria do poder econômico-político dos reis de Israel (ou das nações). Já Samuel repreendeu Saul (1Sm 15), e Natã corrigiu Davi (2Sm 11-12).  Mas Elias é o primeiro grande profeta, cuja missão consiste permanentemente na oposição do profeta contra o rei.

No NT, João Batista será como Elias, se veste como Elias (Mc 3,6p; 1Rs 19,19; 2Rs 1,7; 2,8), assume o papel de Elias de anunciar o messias (Ml 3,1.19.23-24; Eclo 48,1-10; Lc 1,17; Mt 17,10-12) e denuncia o rei injusto e mal influenciado pela sua mulher fatal (Acab e Jezabel são como Herodes e Herodias em Mc 6,14-29).

 

Evangelho: Mt 5,43-48

Continuamos com trechos do sermão da montanha onde Mt apresenta Jesus como novo Moisés. Hoje ouvimos a última das seis antíteses (vv. 21-48) em que a uma lei do Antigo Testamento (tese: “vós ouvistes que foi dito”), Jesus opõe sua própria interpretação da Lei (antítese: “eu, porém, vos digo”).

Vós ouvistes o que foi dito: “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!” Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem! (vv. 43-44).

Na sexta antítese aparece a palavra chave da interpretação de Jesus: “amar” (cf. 22,34-40p). Embora no Antigo Testamento (AT) a relação de Deus com seus inimigos e como os inimigos do povo de Deus fosse apresentada de maneira dura e direta, sobre o ódio ao inimigo não conhecemos nenhum texto explícito do AT, somente pode se comparar de longe Sl 139,22: “Odeio, Senhor, os que te odeiam”, ou Pr 29,27: “O criminoso é detestado pelos justos” (cf. Sl 119,113-115; Dt 23,6; 25,19). O aramaico, a língua de Jesus, era pobre em matizes e esta expressão pode equivale a “Tu não tens obrigação de amar teu inimigo” (cf. Lc 14,26; Mt 10,37). Em Eclo 12,4-7 e nos escritos contemporâneos de Qumrã (1 QS 1,10 etc.) encontra-se entretanto, uma aversão tal aos pecadores que ela não está longe do ódio, e é nisso que Jesus podia estar pensando, além das divisões que a lei judaica admitia: próximo e não-próximo (inimigo), judeus e pagãos, santo e pecador, puro e impuro, justo e ímpio etc.

A conduta certa, ou seja, a “justiça” dos cristãos deve ser maior do que aquela dos fariseus e doutores da lei (cf. 5,20). O amor dos cristãos deve ter um alcance maior, então não é suficiente “amarás o teu próximo” (em Lv 19,18 é o compatriota; em Lc 10,25-37, Jesus amplia o termo aos samaritanos, rivais tradicionais dos judeus). Os discípulos de Jesus devem amar mais, até os inimigos, e rogar por eles (cf. Lc 6,35; 23,34).

Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos (v. 45).

Jesus quer superar todas as divisões, inspirando-se na fonte da Lei, o Pai. Algo radicalmente novo pode vir de uma fonte tão profunda. Os cristãos são filhos adotivos de Deus pelo batismo (cf. Rm 8,15), mas se tornarão filhos de verdade, quando imitarem o amor do “Pai que está nos céus” (cf. 6,9), “porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (v. 45). O mal que os inimigos nos fazem, não nos deve afetar moralmente de modo que deixemos de fazer o bem (“brilhar como o sol”, cf. Mt 5,16; 13,45) e paguemos o mal com o mal (cf. 5,38-42 e a lei de talião Ex 21,23-25; Lv 24,20; Dt 19,15), tornando-nos como eles.

O preceito de Jesus retoma sugestões do AT (cf. Ex 23,4-5; Lv 19,17-18; Pr 25,21 citado por Rm 12,20) e as faz culminar na intenção e no motivo: nada menos que a imitação de Deus Pai. Enfaticamente diz “seu sol”, porque Deus controla suas criaturas em favor dos homens, sem distinção e o sol é fonte de bens, luz e calor. Jesus, como é da mesma natureza do Pai (consubstancialis), pôde viver tudo isso. Não discriminou ninguém por razão de raça, de sexo, de religião e de classe social. “Deus é amor” (1Jo 4,8.16). Deus não tem inimigos, tem filhos e filhas. Os filhos e filhas de Deus são meus irmãos e minhas irmãs. No amor e no perdão é que nós podemos manifestar o amor divino. Todo o amor vem de Deus, quem ama permanece em Deus e Deus nele (1Jo 4,12.16).

Porque, se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os cobradores de impostos não fazem a mesma coisa? E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa? (vv. 46-47).

Amar somente aqueles que nos amam, não é nada especial, até os fariseus fazem isto, também pagãos e os pecadores. Os “cobradores de impostos” eram considerados pecadores públicos, porque exerciam sua profissão com rapinagem, colaborando com o Império Romano. Por isso eram voltados ao desprezo público (cf. 9,10-11; 11,18; 18,17; Lc 19,8) como os “pagãos” (“gentios”, os não-judeus).

O termo “recompensa” (às vezes traduzido por “salário”) é frequente em Mt (cf. 5,12.46; 6,1.2.5.16 e 10,41-42; 20,8 no sentido de salário). Ao contrário da recompensa dos homens, a recompensa de Deus é soberana e só deriva de sua bondade (cf. 20,15).

Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito (v. 48).

Esta conclusão é a chave para se compreender todo o conjunto formado por 5,17-47: os discípulos são convidados a um comportamento diferente que os torne filhos testemunhando a justiça do Pai, uma “justiça maior do que a dos fariseus e doutores da lei” (v. 20). Lv 19,2 e outros textos convidam a imitar a “santidade” de Deus. Jesus, em Mt, fala da “perfeição” (19,21; cf. Gn 17,1; Dt 18,13; Eclo 44,17) e a centraliza no amor.

A centralidade do amor aos inimigos se vê também no sermão da planície de Lc, numa sequência diferente: logo após as bem-aventuranças (a última falava de ódio e perseguição; Lc 6,20-26), Jesus fala do amor aos inimigos (Lc 6,27). Em vez da perfeição, Lc 6,36 fala da “misericórdia” do Pai a ser imitada. Mt e Lc copiaram de uma fonte mais antiga, porém perdida na história, mas reconstruída e chamada pelos peritos de “Q” (uma coleção catequética de palavras e parábolas de Jesus). Mt reorganizou este material e o enriqueceu na forma das seis antíteses que culminam no amor aos inimigos (vv. 21-48).

Outras religiões como o budismo e o taoísmo também tem afirmações semelhantes como mansidão, não-violência e respeito para com todas as criaturas. A interpretação judaica já descrevia comportamento moderado para com o inimigo, mas nunca usou a palavra “amor”.  Para os cristãos, amor (“agape”) não é tanto um sentimento, mas uma ação concreta (cf. Lc 10,25-37). Na filosofia greco-romana havia o conceito da “filantropia”, uma benevolência geral que incluía também os antipáticos, por causa da mesma descendência divina e harmonia no cosmos (cf. At 17,26.28). Mas Jesus fala dos inimigos com toda sua maldade (cf. Lc 6,27-28: “Fazei bem dos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam”). Sua exigência extrema não corresponde à harmonia do cosmos, mas à vontade de Deus na chegada do seu reino, principalmente ao seu amor e sua misericórdia para com os pecadores, excluídos e discriminados.

No NT da Bíblia, nem sempre se percebe este amor aos inimigos (cf. umas cartas de Paulo; Mt 23; 2Pd 2,12-22), e na história da Igreja, o amor aos inimigos tornou-se se agressividade quando este inimigo não queria converter-se: cruzadas, guerras religiosas, inquisição, conversões forçadas, antijudaísmo. A psicologia e a história questionam esta exigência extrema de Jesus, mas ele está provocando através de um contraste entre a natureza do homem e seu mundo fechado e a perspectiva aberta do reino de Deus. No meio da luta pela sobrevivência ou pela justiça social, as ações de amor ao inimigo são sinais do reino e do amor incondicional de Deus em que o ser humano é aceito como imagem e filho de Deus. Os que amam os inimigos são amigos de Deus e seus filhos, como aqueles bem-aventurados que promovem a paz (v. 9).

Esse amor é exigente demais para nos seres humanos? Mas é o amor divino que é perfeito. Se quisermos ser “perfeitos”, se quisermos ser filhos e filhas de Deus, irmãos, irmãs, discípulos e discípulas do divino mestre (cf. 12,49-50p; 23,8-10), devemos tentar amar os inimigos. A história de muitas pessoas santas mostra que é possível (cf. At 7,60; Rm 12,14.17.20-21). Esta exigência do amor é certamente do próprio Jesus. Menos exigentes, os escritos posteriores de João falam “amai-vos aos outros” ou “os irmãos” (Jo 13,34; 15,12.17; 1Jo 2,7-11; 4,7-21), por causa do perigo de cisma na comunidade.

Em forma de piada, poderíamos reconstruir este caminho do mandamento do amor na história da redação nos evangelhos: Primeiramente Jesus falou: “Amai os vossos inimigos” (segundo a fonte de palavras Q escrita cerca de 50 d.C. e preservada em Mt 5,44; Lc 6,35). Os discípulos ficaram abismados e disseram “Isto é difícil demais. O Senhor é mestre e um mestre tem que ser facilitador; favor, facilite isso para nós.” Então Jesus falou: “Tudo bem. Amai o próximo como a si mesmo” (Mc 12,31, escrito em 70 d.C.). Os discípulos ficaram mais conformados, mas começaram discutir entre si: “Então, quem é o meu próximo?” (Lc 10,29, escrito em 80 d.C.). Seria demais amar um pagão ou ajudar um rival samaritano, uma pessoa odiada por ser de outra religião e etnia (cf. Lc 10,30-36; 9,52-55; 2Rs 17), de outra classe social ou outro time de futebol. Pediram: “A gente não chega a um consenso. Não dá para simplificar mais um pouco, Senhor?” Então o bom Jesus suspirou, disse: “Pelo menos, amai-vos uns aos outros” (Jo 13,34; 15,12.17, escrito em 95 d.C.) e se foi.

O site da CNBB comenta: Um dos valores mais determinantes da nossa vida é a justiça, mas na maioria das vezes deixamos de lado a justiça de Deus para viver a justiça dos homens, fundamentada na troca de valores e não na gratuidade de quem de fato ama. Quem ama verdadeiramente reconhece que Deus é amor e tudo o que somos e temos vem dele, como prova desse amor gratuito. Assim, as nossas atitudes não podem ser determinadas pelas diferentes formas de comportamento das pessoas que nos rodeiam, mas pelo amor gratuito de Deus que deve fazer com que sejamos capazes de superar toda forma de vingança em nome da justiça e procurar dar a nossa contribuição para que o mundo seja cada vez melhor.

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