19 de novembro de 2016 – Sábado, 33ª semana

Leitura: Ap 11,4-12

Ouvimos hoje do martírio de duas testemunhas enigmáticas. Na prática jurídica, uma testemunha só não é suficiente (Nm 35,30; Dt 17,6; 19,15; cf. Mt 18,16; 2Cor 13,1; 1Tm 5,19; Hb 10,28; Jo 8,16s).

No início do cap. 11, a mesma voz do céu que falava no cap. anterior (um anjo?, cf. 10,4s.8) encarrega o vidente de medir o templo (vv. 1; cf. Ez 40,3-42,20). Somente o pátio externo (dos gentios) não é medido, ele será entregue aos pagãos que o calcarão aos pés junto com a cidade santa (v. 2), por “42 meses”. Este período corresponde “1260 dias”, ou seja, três anos e meio (vv. 2-3; 12,6.14; 13,5). Trata-se de um número simbólico: é apenas a metade de sete anos (sete significa plenitude). “Três anos e meio” durou o regime de terror do rei perseguidor Antíoco Epífanes IV (167-164 a.C.; cf. Dn 7,25; 12,7) na época dos Macabeus. Como metade de sete, esse número passou a indicar a vida curta dos poderes dominadores e opressores, um período de provação antes de se completarem os tempos (cf. “três dias e meio” em vv. 9.11), é a duração de qualquer perseguição (cf. Lc 4,25; Tg 5,17). Aqui trata-se imediatamente da perseguição de Roma (a Besta de v. 7; cap.13 e 17,10-14).

Jerusalém é apresentada aqui em sua ambivalência: a “cidade santa”, protótipo da Igreja, a qual será mais imediatamente figurada pela parte reservada do templo; mas também Jerusalém terrestre, que fez morrer os profetas e o próprio Cristo. Esta Jerusalém terrestre é a imagem do mundo que rejeita Deus (cf. v. 8). O Templo, coração de Jerusalém, Cidade santa (v. 2; cf. 20,9; 21,1), representa a Igreja (1Cor 3,16s). Ele vai ser “medido” (cf. Jr 31,39; Ez 40,1-6; Zc 2,5-9); cercados pelos pagãos (v. 2), os fiéis de Cristo serão preservados (cf. 7,4; 14,1-5), como o Resto de Israel (cf. Is 4,3 etc.).

Quando João escreveu (cerca de 95-100 d.C.), o templo em Jerusalém já estava destruído (70 d.C., pelos romanos); mas a comunidade cristã viu-se como “santuário de Deus” (1Cor 10.16; Gl 2,9; cf. Mt 16,18). Quem está dentro deste santuário para adorar Deus (e não o imperador romano), no pátio reservado aos sacerdotes, não sofrerá dano nas tribulações dos pagãos ao final, porque pertence ao povo sacerdotal (1,6; 5,10) e está nas mãos de Deus. Há um espaço de asilo seguro (v. 1) para os adoradores de Deus (1Rs 19,18; Sl 27,5; 61,5); outro espaço fica à mercê dos pagãos (Sl 79; Lm 1,10).

Mas resta a etapa crítica do testemunho profético. A atividade profética deve continuar até que chegue o fim, durante esta etapa na qual as realidades são bivalentes ou ambíguas, porque os cristãos vivem no meio de pagãos. A profecia se proclama em ambientes hostil. Crise é confrontação e separação: os campos se delimitam cada vez mais. A luta é aberta: de um lado, a denúncia que prega a conversão: tal é o testemunho. De outro lado, a perseguição até a morte (Jr 11,21; Sl 35,4).

Disseram a mim, João (cf. 10,11)

O início da leitura foi adaptado para nossa liturgia a partir do v. anterior: “Disseram a mim” (10,11) a voz do céu em 10,8 e o anjo em 10,9. Em 11,1 há variação do texto: “e o Anjo se pôs de pé, dizendo”.

Essas (duas testemunhas) são as duas oliveiras e os dois candelabros, que estão diante do Senhor da terra (v. 4).

As “duas testemunhas” já apareceram em v. 3 (v. 4, apenas “estas”): “Concederei, porém, às minhas duas testemunhas que profetizem vestidos de pano de saco durante 1260 dias”. Com a expressão – as “minhas” testemunhas – fica claro que Deus (ou Cristo) é o locutor em vv. 1-3 (os vv. 4-11 não são mais locução). “Vestidos de pano de saco”, quer dizer, em gesto de luto e penitência (Is 22,12; Jr 4,8; Jn 3,6-8; Mt 11,21) proclamam uma mensagem de conversão. O tempo do ministério está truncado: só a metade de sete anos (Dn 7,25; 12,7). A proteção divina destas duas testemunhas durante seu ministério já prefigura a proteção da “mulher” (comumente interpretado como Maria) que simboliza o novo povo de Deus (comumente por Maria) protegido pelo mesmo período (12,6.14).

Embora sejam profetas, acumulam as funções real e sacerdotal, como as duas oliveiras e os dois candelabros (Zc 4,2-14: um só candelabro com sete lâmpadas). Em Zc as duas oliveiras simbolizam Josué e Zorobabel, os dois chefes (“ungidos”), civil e religioso, da comunidade pós-exílica, restauradores do Templo de Jerusalém. A seita dos essênios em Qumran esperava dois messiasses, um sacerdotal e um político. No Ap simbolizam provavelmente as duas personagens encarregadas de edificar o novo Templo, a Igreja de Cristo, destinada a ser luz do mundo (cf. Mt 5,14-16). Já não é possível identifica-los. Pensou-se frequentemente em Pedro e Paulo, martirizados em Roma sob César Nero (cf. vv. 7-8).

Se alguém quiser fazer-lhes mal, um fogo sairá da boca delas e devorará seus inimigos. Sim, se alguém quiser fazer-lhes mal, é assim que vai morrer. Elas têm o poder de fechar o céu, de modo que não caia chuva alguma enquanto durar a sua missão profética. Elas têm também o poder de transformar as águas em sangue. E quantas vezes elas quiserem, podem ferir a terra com todo tipo de praga (vv. 5-6).

Enquanto durar o ministério destes dois profetas, sua palavra será fogo que consumirá os rebeldes (2Rs 1,10-12; Jr 23,29; Eclo 48,1.3; Lc 9,54). Em suas atividades, as duas testemunhas assumem traços de Moisés e Elias (Ex 7,17.19s; 1Rs 17,1); “quando quiserem…”, inclusive com maior poder que Elias e Moisés. Mas não é possível pensar em Henoc e Elias, nem em João Batista (novo Elias) e no próprio Jesus (novo Moisés).

Em Mc 9,4-5p, Moisés e Elias testemunham juntos a divindade de Jesus. Mas aqui as duas testemunhas representam a comunidade cristã em sua função profética e martirial: “O espírito da profecia e o testemunho de Jesus” (Ap 19,10) não se identificam com personagens individuais. Aqui parece ser designada a própria Igreja, profética e sacerdotal (cf. 1,6; 5,10), recapitulando o testemunho de Elias e de Moisés (v. 6) e o do próprio Cristo, morto e ressuscitado em Jerusalém (vv. 7-12).

Quando elas terminarem o seu testemunho, a besta que sobe do Abismo vai combater contra elas, vai vencê-las e matá-las (v. 7).

Quando tiverem concluído seu ministério, a “besta-fera”, agente do poder da Morte, as derrotará; aparentemente. Por quê? Matando-as por causa do testemunho, as incorpora à paixão do Senhor, e por isso obterão a ressurreição e ascensão (v. 11). A fera parece inspirada em Dn 7 e reaparece na cap. 13 (“besta do mar”), onde se pode identificá-la com César Nero (o número 666 é a soma dos números/letras em hebraico). O imperador Domiciano que perseguia os cristãos na época de João era considerado um outro Nero (cf. 13,3).

E os cadáveres das duas testemunhas vão ficar expostos na praça da grande cidade, que se chama, simbolicamente, Sodoma e Egito, e na qual foi crucificado também o Senhor delas (v. 8).

Aqui, a cidade que matou as testemunhas e crucificou o Cristo é chamada “espiritualmente (lit.) Sodoma e Egito”, Sodoma, a depravada (cf. Is 1,10) e Egito, o opressor. Várias vezes no AT, Sodoma é evocada como protótipo de cidade licenciosa (cf. Dt 29,23; 32,32; Is 1,9-10; Jr 23,14; Ez 16,46.49); o Egito é o paradigma das idólatras e escravaturas hostis ao povo de Deus (cf. Ex 13,14; Is 19,1-3; Sb 11,15-16; 12,23-27; 15,14-19). Por ter levado à morte os profetas e o Messias (Cristo), “Jerusalém” é por sua vez citada como centro da infidelidade.

Nos próximos capítulos, a “grande cidade” é Babilônia (14,8; 16,19; 17,5.18; 18,2.10-12). Aqui ela é chamada Sodoma e Egito por causa de seus dois grandes crimes: impudicícia e opressão dos fiéis de Cristo (cf. 17,4-6); ela será identificada com Roma (em 17,9 as “sete colinas” são da cidade de Roma; cf. 1Pd 5,13). Aqui ela é identificada também com Jerusalém, que não é somente Cidade santa (v. 2), pois ela “matou os profetas” (Mt 23,37) e “o Senhor”. Todas essas alusões e nomes diferentes querem mostrar que os cristãos não têm lugar neste mundo hostil a Deus (cf. Hb 11,4; 1Pd 1,17; 2,11) e, por isso, têm que partilhar a sorte do seu Senhor crucificado. A crucificação de Jesus é a maior mostra do que podem fazer a ambição e arrogância dos que detêm o poder, cuja duração no entanto é rápida.

Gente de todos os povos, raças, línguas e nações, verão seus cadáveres durante três dias e meio, e não deixarão que os corpos sejam sepultados. Os habitantes da terra farão festa pela morte das testemunhas; felicitar-se-ão e trocarão presentes, pois estes dois profetas estavam incomodando os habitantes da terra (vv. 9-10).

Depois do assassinato, a humilhação ainda não para: seus cadáveres jazem nas ruas desta cidade, expostos à caçoada, “não deixarão que os corpos sejam sepultados” (cf. Is 14,19; Jr 8,2; Tb 1,18-20; 2,3s). O mundo estava incomodado com a mensagem profética de conversão, agora festeja, porque conseguiu calá-la, mas só por meia semana.

Depois dos três dias e meio, um sopro de vida veio de Deus, penetrou nos dois profetas e eles ficaram de pé. Todos aqueles que os contemplavam, ficaram com muito medo. 12Ouvi então uma voz forte vinda do céu e chamando os dois: “Subi para aqui!” Eles subiram ao céu, na nuvem, enquanto os inimigos ficaram olhando (vv. 11-12).

A ressurreição das testemunhas segue o esquema da ressurreição em Ez 37,5.10 na visão dos ossos, até “ficarem de pé” (cf. At 7,56). Em Ez, a ressurreição se refere ao povo de Deus, a alusão aqui apoia a identificação dos dois profetas com o novo povo de Deus. Não só voltam a vida, mas serão chamados e arrebatados ao céu. Esta ascensão se assemelha à de Jesus (At 1) e à do personagem humano de Dn 7,13, ou à de Elias (2Rs 2,11).

A inesperada glorificação dos mártires provoca o terror dos culpados, o reconhecimento a contragosto da glória de Deus (cf. Ez 39,21; Sl 102,16; 2Mc 9,12).

 

Evangelho: Lc 20,27-40

Os saduceus pertenciam às classes superiores do sacerdócio em Jerusalém e só aceitavam o Pentateuco (os primeiros cinco livros do AT, chamada torá ou Lei de Moisés). Seguindo a velha tradição não admitiam outra vida (cf. Jó 14,10-19 e outros); não a liam na Escritura nem aceitavam uma tradição oral dos rabinos. Nisso eram conservadores.

Não admitiam a crença na ressurreição, surgida dois séculos antes (cf. Dn 12,2-3; 2 Mc 7). Jesus a admite, como os fariseus. Nesta questão da ressurreição, os saduceus discordam acerrimamente dos fariseus, como ilustra o episódio de Paulo (At 23,8).

Aproximaram-se de Jesus alguns saduceus, que negam a ressurreição, e lhe perguntaram: “Mestre, Moisés deixou-nos escrito: se alguém tiver um irmão casado e este morrer sem filhos, deve casar-se com a viúva a fim de garantir a descendência para o seu irmão. Ora, havia sete irmãos. O primeiro casou e morreu, sem deixar filhos. Também o segundo e o terceiro se casaram com a viúva. E assim os sete: todos morreram sem deixar filhos. Por fim, morreu também a mulher. Na ressurreição, ela será esposa de quem?  (vv. 28-32).

Tal como a imaginam, a suposta ressurreição consiste em prolongar ou repetir a vida presente. Vigoram as mesmas leis, não obstante surjam novas situações. É fácil ridicularizar essa doutrina, e agora vão divertir-se à custa de Jesus. O caso que inventam se baseia na chamada lei do levirato (Dt 25,5; Gn 38,8; Rt 4) que deve garantir descendência a família e evitar alienação da sua propriedade.

Jesus respondeu aos saduceus: “Nesta vida, os homens e as mulheres casam-se, mas os que forem julgados dignos da ressurreição dos mortos e de participar da vida futura, nem eles se casam nem elas se dão em casamento; e já não poderão morrer, pois serão iguais aos anjos, serão filhos de Deus, porque ressuscitaram. (vv. 34-36).

Jesus começa corrigindo a falsa imagem: a ressurreição verdadeira consiste em passar a uma categoria nova, comparável aos “filhos de Deus” da tradição (Sl 29,1; 82,6), ou seja, dos “anjos”. O matrimônio, em seu aspecto de fecundidade, é lei da vida sobre da morte (sobrevivência da família e do povo). Acabada a morte (1Cor 15,26), não se geram mais filhos. Aqui, Jesus se refere ao matrimônio em sua função de procriar, segundo a exposição do caso, não enquanto a relação pessoal amorosa.

“Nesta vida” (lit. “os filhos deste século”) é expressão de estilo semita: aqueles que pertencem a este mundo. “Na ressurreição dos mortos”, aqui é questão somente da ressurreição dos justos. Lc sublinha que é uma graça de ser admitido no mundo futuro (cf. 14,14; 21,36). A expressão “ser como anjos” não pretende depreciar o casamento (cf. 16,18; 17,27; Mt 19,1-12; 1Cor 7), mas significa não ter outra preocupação a não ser servir e louvar a Deus.

Que os mortos ressuscitam, Moisés também o indicou na passagem da sarça, quando chama o Senhor ‘o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’. Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, pois todos vivem para ele.” (vv. 37-38).

O segundo é um argumento da Escritura no estilo da época, mas Jesus não podia se apoiar em Dn 12 e nenhum dos profetas, porque os saduceus só reconhecem a autoridade da Lei de Moisés (Pentateuco). Então Jesus cita dela, do segundo livro da Bíblia: Ex 3,2.6. O Senhor Javé não pode aduzir sua identidade como “Deus dos mortos”, seria absurdo imaginá-lo como divindade infernal (cf. Is 28,15; Sl 49,15; os egípcios adoraram um deus dos mortos, Anubis, com cabeça de chacal, um cão do deserto que come carne morta).

Os israelitas podiam chamar JHVH (Javé, cf. Ex 3,14) de “nosso Deus”, por que era “seu Deus”; também o indivíduo no singular. Mas os mortos não podiam invocar o “nosso Deus” (p. ex. Sl 88,11-13); não era o Deus deles. Em contraste com a crença geral se lêem os vislumbres de Sl 16,11; 17,15; 73,23-28. Em outras culturas circundantes, imaginavam a existência de deuses do reino dos mortos (Anubis, Osiris, Nergal, Plutão etc.). O Pai de Jesus é Deus de mortos só para que cessem de estar mortos. Os que vivem, “vivem para o Senhor” (Rm 14,8) e os que são do Senhor vivem.

Alguns doutores da Lei disseram a Jesus: “Mestre, tu falaste muito bem.” E ninguém mais tinha coragem de perguntar coisa alguma a Jesus (vv. 39-40).

Lc copiou toda esta controvérsia de Mc 12,18-27, mas esta felicitação por parte dos doutores da lei é próprio dele (cf. Mc 12,32 sobre o primeiro mandamento). Os escribas, que na maior parte, são fariseus, aplaudem a refutação dos seus adversários (cf. At 23,8). Para Lc é importante, assegurar o conceito da ressurreição diante do conceito dos gregos da sobrevivência apenas das almas como sombras num submundo (cf. 24,38-41; At 1,3s; 2,24-32; 17,31s). Jesus afirma a ressurreição, não a sobrevivência da doutrina grega, mas a exemplo e como dom do Senhor glorificado, é transmitida como artigo da fé cristã no Credo.

O site da CNBB comenta: Como todos nós vivemos num mundo marcado pelo materialismo, cada vez mais somos tentados a fazer da matéria a causa da nossa felicidade e nos fecharmos nessa realidade para analisar todas as coisas e, com isso, não somos capazes de ver outros caminhos para a felicidade ou até mesmo outras condições de vida que Deus pode nos conceder para o nosso bem, como é o caso da vida eterna. O erro que os saduceus cometeram e que aparece no evangelho de hoje é esse: se tornaram tão materialistas que ficaram incapazes de abrir o próprio coração para a proposta da vida plena que nos é feita pelo próprio Deus.

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