19 de Setembro 2019, Quinta-feira: Por esta razão, eu te declaro: os muitos pecados que ela cometeu estão perdoados porque ela mostrou muito amor. Aquele a quem se perdoa pouco mostra pouco amor” (v. 47).

24ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: 1Tm 4,12-16

A leitura de hoje nos apresenta o deveres de Timóteo. Em 3,1-7 se falava sobre os bispos, mas não mencionou nenhum dever específico. Timóteo era bispo (epíscopos), não apóstolo; a tradição católica segue Lc e At que consideram apóstolos apenas os doze (At 1,15-26; exceto Paulo e Barnabé em 14,4.14). Os deveres de Timóteo podem servir de descrição para os deveres dos bispos dessas igrejas.

Ninguém te despreze por seres jovem. Pelo contrário, serve de exemplo para os fiéis, na palavra, na conduta, na caridade, na fé, na pureza (v. 12).

Timóteo era “jovem” (como em 1Tm 5,1), mas já considerado um “discípulo” reconhecido nas comunidades, quando Paulo o recrutou no ano 50 d.C. (cf. At 16,1-3). Timóteo deve ser modelo de conduta para os jovens (cf. Tt 2,6s) como para todos os fiéis, com toda pureza (5,2). Não deve ser desprezado pelos “anciãos” (lit. presbíteros, v. 14) do grupo.

Se Paulo fosse realmente o autor das cartas pastorais (1 -2Tm, Tt), escrevendo da sua prisão em Roma (64 d.C.), só relativamente Timóteo seria ainda “jovem”. Mas provavelmente estas cartas foram escritas mais tarde na terceira geração para homenagear Paulo e Timóteo e adaptar seus ensinamentos a novos desafios (por ex. maior organização das comunidades). A juventude de Timóteo faz dele um símbolo de todo líder depois de Paulo, em cada nova geração.

Até que eu chegue, dedica-te à leitura, à exortação, ao ensino (v. 13).

Os judeus chamavam a Escritura de “leitura” (em alta voz), a “exortação” era a homilia, duas práticas na sinagoga judaica. Pela ordem, sugere-se que essa leitura da Sagrada Escritura é a base da exortação e do ensino (cf. 2Tm 3,15s). Timóteo deve ler com atenção, não como os falsos doutores da lei (1,7).

Não descuides o dom da graça que tu tens e que te foi dada por indicação da profecia, acompanhada da imposição das mãos do presbitério (v. 14).

O v. 14 fala da vocação de Timóteo que constitui sua autoridade. O dom (carisma) de oficiar foi-lhe conferido por uma “indicação da profecia” (cf. At 13,1-3: o chamado de Paulo em Antioquia). Desde o dia ao qual alude Paulo, Timóteo possui em si de modo permanente um “carisma” (1Cor 12,1) que o consagra para o mistério, através da intervenção profética (cf. 1Tm 1,18; At 11,27; 13,1-3) e da imposição das mãos.

Este v. reflete os ritos de ordenação na comunidade: o uso da profecia para descobrir o carisma de um candidato e o envio através de um ritual (judaico) da imposição das mãos (cf, Nm 27,18-23; Dt 34,9).

Aquele que tem cargo de direção na comunidade cuide para se tornar modelo (exemplo, v. 12), tanto no comportamento como na ação, perseverando na graça que recebeu pela imposição das mãos (cf. 2Tm 1,6). É o único carisma (“dom da graça”) que se menciona como se fosse a síntese dos demais; a não ser que pretenda sublinhar seu caráter individual (cf. 1Cor 12).

A “imposição das mãos” parece ser o gesto da comunidade para enviar e encomendar os eleitos à graça de Deus para as obras a realizar (cf. At 6,3; 9,17; 13,3; 14,26; 15,40; 6,6; 12,23; 1Tm 4,14; 5,22; 2Tm 1,6). Alguns traduzem: “A imposição das mãos em vista do presbiterado”. A imposição das mãos, rito de transmissão de uma graça ou carisma (Hb 6,2), pode ser um gesto de simples benção (Mt 19,15), ou meio de operar uma cura (Mt 19,18p; Mc 6,5; 7,32; 8,23-25; 16,18; Lc 4,40; 13,13; At 9,12.17; 28,8), de comunicar aos batizados a plenitude do Espírito Santo (At 1,5; 8,17.19 ), enfim o rito que consagra um homem em vista de uma particular função pública (At 6,6; 13,3). É neste ultimo sentido que é preciso entender aqui e em 5,22 e 2Tm 1,6.

Aqui se introduz outra categoria tradicional: os “anciãos” (presbíteros) como senado local com função decisória (cf. At 15,2.6). No NT e no séc. I, ainda não há a distinção clara entre bispos (epíscopos) e anciãos (presbíteros), por ex. os termos e as funções se confundem em At 20,17.28 e Tt 1,5.7. Na Igreja Católica, os presbíteros são os padres, nas igrejas evangélicas são pessoas importantes da comunidade (cf. conselheiros) que decidem sobre coisas importantes (ex. admissão ou demissão de um pastor) ou presidem (cf. 5,17; cf. Tt 1,5; Tg 5,14).

Com perseverança, põe estas coisas em prática, para que todos vejam o teu progresso. Cuida de ti mesmo e daquilo que ensinas. Mostra-te perseverante (vv. 15-16a).

Timóteo é exortado a ser constante na fé e no trabalho (prática). Os deveres dos dirigentes são duplos: são mestres autorizados da Igreja e guardiães (bispos) da fé (cf. At 20,28), mas também testemunhas vivas da sua fé na prática, na coerência e integridade de suas vidas e na perseverança. O dirigente não devia ficar parado, mas fazer “progresso” (cf. Fl 1,25) e assim incentivar os outros.

Assim te salvarás a ti mesmo e também àqueles que te escutam (v. 16b). 

A salvação do dirigente responsável está vinculada a das pessoas a ele confiadas, no que lhe toca (cf. Ez 33,1-9; At 20,28).

 

Evangelho: Lc 7,36-50

Ouvimos uma narrativa própria de Lc sobre uma pecadora anônima ungindo os pés de Jesus. Porque Lucas inseriu aqui esta história de pecadora perdoada? Provavelmente porque se une com o que procede em vários detalhes (cf. evangelhos dos dias anteriores): o julgar e condenar o próximo (6,37); a pecadora corresponde aos “publicanos”, considerados pecadores porque cobravam impostos para os romanos pagãos (7,29; cf. 3,12s); seria uma das arrependidas e batizadas por João que dão razão a Deus com seu arrependimento (v. 29); Jesus come e bebe, é amigo de pecadores (v. 34).

Um fariseu convidou Jesus para uma refeição em sua casa. Jesus entrou na casa do fariseu e pôs-se à mesa (v. 36).

Em Lc, Jesus aceita dos fariseus convites para refeições (11,37; 14,1) e aproveita a ocasião para ensinar. O anfitrião é correto e cortês, mas não é cordial: não presta deferências extraordinárias como vemos depois (vv. 44-46; cf. Gn 18,4; Sl 23,5). Pretende também provar Jesus em sua conduta e doutrina? O fariseu é identificado depois com o nome de Simão (v. 40).

Certa mulher, conhecida na cidade como pecadora, soube que Jesus estava à mesa, na casa do fariseu. Ela trouxe um frasco de alabastro com perfume, e, ficando por detrás, chorava aos pés de Jesus; com as lágrimas começou a banhar-lhe os pés, enxugava-os com os cabelos, cobria-os de beijos e os ungia com o perfume (vv. 37-38).

Nisso “certa mulher”, depois caracterizada como “pecadora” da cidade, provavelmente uma prostituta, irrompe na sala (cf. Os 1,2; 3,1). Jesus e seus conterrâneos nunca se sentaram à mesa, como se costuma traduzir, mas “deitaram-se” à mesa. Conforme o costume de época, os comensais estavam reclinados em almofadas, com a cabeça para frente e os pés para fora, portanto os pés de Jesus estavam a mostra por trás dele. Embora a sala do banquete estivesse aberta, era muito pouco decoroso que tal mulher entrasse na casa de tal anfitrião; os fariseus eram muito cautelosos nesses assuntos. O termo “fariseu” significa “separado” (dos pecadores, da impureza), era provavelmente um apelido (cf. “crente”), eles mesmos se chamavam “companheiros” (haverim).

O que a mulher faz depois com Jesus é tão afetuoso quanto escandaloso: na presença de homens, soltar os cabelos, enxugar com eles os pés banhados em suas lágrimas, o esbanjamento do perfume embora não o derrame na cabeça, como era costume. Ela devia ter a intenção de ungir a cabeça (homenagear Jesus como messias = ungido; cf. Mc 14,3-9p), mas para isso não teve tanta coragem nem tanto acesso na casa do fariseu. E Jesus a deixa fazer sem rejeitá-la nem opor resistência.

Vendo isso, o fariseu que o havia convidado ficou pensando: “Se este homem fosse um profeta, saberia que tipo de mulher está tocando nele, pois é uma pecadora” (v. 39).

O anfitrião se escandaliza, mas por cortesia se abstém de manifestá-lo em voz alta, apenas “ficou pensando”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2477s) comenta: Pronuncia um juízo mental. Se Jesus não adivinha a profissão da mulher, não possui a clarividência própria de um profeta (não pensa na outra parte: se conhece a profissão dela é culpado por omissão, por deixar fazer; a omissão é mais grave que a ignorância). Mas Jesus adivinha o pensamento dele, e com isso rebate o julgamento sobre ele, e lhe responde em voz alta, corrigindo assim o seu juízo sobre a mulher.

Jesus é mais do que “profeta” (cf. vv. 16.18-23). Numa refeição anterior com pecadores (5,29-32), Jesus respondeu à crítica dos fariseus comparando-se com um “médico” (cf. 4,23) que não veio para os que têm saúde (justos), mas para os doentes (pecadores).

Jesus disse então ao fariseu: “Simão, tenho uma coisa para te dizer.” Simão respondeu: “Fala, mestre!” (v. 40).

O nome do fariseu chama atenção. Em diversos trechos paralelos, Mc ou Mt escreveram contra os fariseus, mas Lc parece visar os próprios líderes cristãos, assim aqui também: Simão é o primeiro nome de Pedro (4,38; 5,1-11)

Mas em Mc 14,3p acontece uma unção de Jesus antes da sua paixão (cf. Jo 12,1-8): “Enquanto Jesus estava na casa de Simão, o leproso, aproximou-se dele uma mulher, trazendo um frasco de alabastro com perfume…“ Lc omitiu esta unção antes da paixão, antecipou-a mudando a unção da cabeça para os pés e transformando Simão num fariseu, visando assim também as lideranças da igreja.

A Bíblia do Peregrino (p. 2478) comenta: O recurso é contar uma parábola para distanciar e ao mesmo tempo comprometer o fariseu: terá de julgar o caso, como mentalmente o julgou. No fim, o juiz será julgado; como Davi (2Sm 12) ou jurado na canção vinha (Is 5,1-7).

“Certo credor tinha dois devedores; um lhe devia quinhentas moedas de prata, o outro cinquenta. Como não tivessem com que pagar, o homem perdoou os dois. Qual deles o amará mais?” Simão respondeu: “Acho que é aquele ao qual perdoou mais.” Jesus lhe disse: “Tu julgaste corretamente” (vv. 41-43).

A parábola é brevíssima e a solução é óbvia. “Quinhentas moedas de prata” são 500 diárias, uma grande quantia.

O “acho” do fariseu pode exprimir modéstia ou sarcasmo, desconfiado por ter caído na armadilha do carpinteiro esperto. O fariseu entrou no jogo, agora não pode evitar a aplicação. Abre-se outro julgamento sobre a mulher no qual, por comparação, o fariseu está implicado.

Então Jesus virou-se para a mulher e disse a Simão: “Estás vendo esta mulher? Quando entrei em tua casa, tu não me ofereceste água para lavar os pés; ela, porém, banhou meus pés com lágrimas e enxugou-os com os cabelos. Tu não me deste o beijo de saudação; ela, porém, desde que entrei, não parou de beijar meus pés. Tu não derramaste óleo na minha cabeça; ela, porém, ungiu meus pés com perfume (vv. 44-46).

O contraste triplo dá relevo às mostras de um afeto intenso e incontido. Lavar os pés ao hospede foi costume patriarcal (Gn 18,4; 19,2; 24,32; e posterior 1Sm 24,41). Ungir (a cabeça) também era costume (Sl 23,5; 141,5; cf. Mc 14,3p). Os gestos citados não eram obrigação do anfitrião, o fariseu agiu corretamente, mas a mulher demostrou mais amor

Por esta razão, eu te declaro: os muitos pecados que ela cometeu estão perdoados porque ela mostrou muito amor. Aquele a quem se perdoa pouco mostra pouco amor” (v. 47).

O fariseu não se considera pecador; por isso, fica numa atitude de julgamento, e não é capaz de entender e experimentar o perdão e o amor. Jesus mostra que a justiça de Deus se manifesta como amor que perdoa os pecados e transforma as condições das pessoas. O amor é expressão e sinal do perdão recebido.

A Bíblia do Peregrino (p. 2478) comenta: Na parábola e na sua aplicação, todos os intérpretes e muitos leitores têm observado uma estranha incoerência, que podemos resumir assim: ama muito, porque lhe perdoaram muito (parábola); foi-lhe perdoada muito, porque amou muito (aplicação). Note-se que “amar” pode equivaler a “agradecer” (que em hebraico se exprime com o verbo “brk”). Substitui-se o “porque” por “posto que, sinal que” de manifestação. No Salmo 116 o orante pronuncia: “Amo” (v. 1), “acreditei” (v. 10) e pergunta: “Como pagarei o Senhor por todo o bem que me fez?” (v. 12), mas não fala de arrependimento.

Talvez a explicação se obtenha considerando as duas realidades, amor e perdão, como correlativas, que se implicam mutuamente. Tentemos explicá-los brevemente. Alguém pode arrepender-se de ter violado uma norma objetiva (respeito pela ordem), ou porque vê sua indignidade (vergonha de si), ou por ter ofendido outra pessoa sem razão. O terceiro caso implica estima (um aspecto de amor) por tal pessoa. Quem pede e espera obter perdão, estima o ofendido, sente-se atraído por ele (amor e fé confiante). Obtido o perdão, no afeto do agradecimento, o amor se desenvolve sem empecilhos …

Jesus insinua que os fariseus tenham pouco de que ser perdoados? Em termos de lei e observâncias, talvez. Mas a religiosidade deles é mesquinha, calculista, não entra de cheio na dimensão do amor. Quem entrou no reino recebeu o perdão por pura graça e tem de viver em puro agradecimento.

A ambuiguidade da resposta de Jesus reflete-se no problema dogmático da iniciativa de Deus (graça, perdão) e da colaboração humana (amor, obras).

E Jesus disse à mulher: “Teus pecados estão perdoados.” Então, os convidados começaram a pensar: “Quem é este que até perdoa pecados?” Mas Jesus disse à mulher: “Tua fé te salvou. Vai em paz!” (vv. 48-50).

Seguindo a lógica da parábola, é evidente que os pecados da mulher já “estão perdoados”, por isso demonstrou muito amor. Jesus confirma isso (enquanto em 5,20 perdoou os pecados no momento da declaração). A forma passiva (teológica) indica que Deus perdoou, já pela atuação do Batista. Então, por que agradecer a Jesus? – Porque é ele que confirma e atualiza o perdão com autoridade e dá sentido ao batismo de João.

Não é que o amor dela tem conseguido o perdão. Pela “fe”, ela aceitou o perdão afetuoso de Jesus (de Deus) que a “salvou” (cf. João Batista como precursor em 1,77)

Jesus pronuncia a fórmula da absolvição, sancionando a reconciliação (Sl 32,1; 103,3). Isso provoca admiração ou um segundo escândalo, mais grave do que o primeiro, porque atinge a missão e a revelação de Jesus: “Quem é este que até perdoa pecados?” (cf. 5,21). Mas Jesus não se importa com os adversários, ele despede a mulher com a fórmula convencional: “Vai em paz!”, destacando a importância da “fé” (e não das obras da lei, cf. a teologia de Paulo contra a dos fariseus em Gl 2,16 etc.; cf. a aceitação do pecador ao contrário do fariseu em Lc 5,27-32; 18,9-14), como a mulher hemorroíssa em 8,48p e o cego em 19,42p.

Esta fórmula da paz já parece ter prática litúrgica, se carregou de sentido transcendental e passou aos sacramentos da penitência e eucaristia.

O site da CNBB comenta: “Dize-me com quem andas e eu direi quem és!” A partir deste ditado, vemos as relações de exclusão que são estabelecidas entre os “santos” e os “pecadores”. E claro que quem é “santo” não pode conviver com os “pecadores”, pois correrá o risco de se contaminar e se tornar um deles. Esta é a lógica da mentira e do farisaísmo que marca a vida de muitos de nós. Ninguém é “santo”, pois só Deus é Santo, e o pecado marca a nossa existência, e quem disser que não é pecador, é mentiroso, logo não somos melhores que ninguém. Se uma pessoa é reta de coração, deve conviver com todos para que possa testemunhar a todos o amor de Deus, a vivência na busca da santidade, e assim colaborar com a conversão dos pecadores.

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