19 de Setembro de 2020, Sábado: “O semeador saiu para semear a sua semente”

24ª Semana do Tempo Comum 

 Leitura: 1Cor 15,35-37.42-49

A leitura de hoje é tirada da terceira parte da abordagem de Paulo sobre a ressurreição da qual alguns membros da comunidade duvidaram (v. 12). A doutrina da ressurreição era particularmente difícil de ser aceita pelos gregos. Uns pensavam que tudo terminava com a morte, outros que a alma se separava do corpo e continuava vivendo sozinha, outros “que a ressurreição já se realizou” (2Tm 2,16). Na filosofia neoplatônica, a alma era considerada o essencial da pessoa e a matéria como peso sujo, ou seja, o corpo como prisão do espírito. Se na morte a “alma” se liberta do “corpo”, que sentido tem recuperá-lo, encerrar-se ou enterrar-se outra vez nele? Outros interpretaram a ressurreição puramente espiritual, apenas interior e operado já pelo batismo (cf. Rm 6,3-11; Ef 2,6; Cl 2,12; 3,1-4), ou imaginaram uma ascensão mística para Deus.

Paulo diz que à semelhança do corpo de Cristo ressuscitado, as pessoas passarão por uma transformação total, conservando toda a sua diversidade individual (Rm 8,23). A realidade transcendente, porém, só se explica por meio de comparações. Por isso, a carta compara a morte e ressurreição à semente que morre para reviver de maneira diferente numa planta.

Alguém perguntará? Como ressuscitam os mortos? Insensato! O que semeias, não nasce sem antes morrer. E, quando semeias, não semeias o corpo da planta, que há de nascer, mas o simples grão, como o de trigo, ou de alguma outra planta (vv. 35-37).

As comparações se movem no terreno sapiencial: por isso chama de “insensato” quem não compreende. As comparações ilustram duas coisas: a mudança radical do estado do corpo e a variedade individual.

As comparações com plantas são correntes no AT, e geralmente servem para exaltar a vitalidade permanente, crescente e renovada (cf. Sl 1; 92; Jó 14,7-9; etc.). A comparação presente se fixa na incrível diferença entre uma semente enterrada e uma planta crescida e adulta (cf. Mc 4,31-32p; Jo 12,24), e supõe a continuidade ou identidade do sujeito. No conceito popular da época, a germinação é um processo natural, mas resultado de uma ação milagrosa da divindade (cf. 2Mc 7,20-23). Os judeus e atribuíam à ação direta de Deus a transformação prodigiosa, da simples e madura semente em talo robusto e em espiga cheia de grãos. Solicitado pelo contexto, Paulo chama a planta madura de “o corpo (da planta)” (v. 37).

Nós, que sabemos até de códigos genéticos (DNA e o genoma humano), deveríamos recuperar nossa capacidade de assombro para refletir sobre a comparação.

Ao descrever as relações entre o corpo atual e o corpo de glória, Paulo insiste muito mais nas diferenças do que na continuidade. Quer responder as perguntas (v. 35) daqueles que, a justo título, recusavam tomar ao pé da letra a imagens como a de Ez 37,1-10, onde o profeta fala de maneira simbólica sobre a restauração após o sofrimento no exílio (cf. Os 6,2; 13,14; Is 26,19; cf. Ap 20,4-6.12s). Explicitamente, a “ressurreição de carne” (do corpo, só se afirma nos escritos mais novos do AT: Dn 12,2; 2 Mc 7,9-14.23-36; 12,43-46; cf. Jó 19,25; em Sb, só a imortalidade da alma). Sobre esta questão, Jesus discutiu com os saduceus (Mc 12,18-27p; cf. At 23,6-8).

Nos vv. 38-41 (omitidos pela nossa liturgia) lemos uma segunda comparação que apela para a diversidade entre as carnes no reino animal, e uma terceira sobre a diversidade das estrelas e do seu brilho.

Pois assim será também a ressurreição dos mortos. Semeia-se em corrupção e ressuscita-se em incorrupção. Semeia-se em ignomínia, e ressuscita-se em glória. Semeia-se em fraqueza, e ressuscita-se em vigor. Semeia-se um corpo animal, e ressuscita-se um corpo espiritual. Se há um corpo animal, há também um espiritual (vv. 42-44).

Paulo tira a conclusão em três oposições que servem de pedestal à quarta (quase como um provérbio do tipo “três coisas … uma quarta”, cf. Pr 30,15-31). Retoma a comparação vegetal com a metáfora “semeia-se” e olha para o ato de enterrar o morto como uma espécie de semeadura (Jo 12,24). A incorruptibilidade é destino, não condição (cf. Sb 2,23). A participação do corpo fica vigorosamente afirmada, mas pertence à nova ordem futura.

“Em ignomínia”, sem honras fúnebres que suprem com ritos a indignidade física do cadáver. “Em fraqueza”, a inércia total do morto, que é conduzido. “Corpo animal” (psychikon), trata-se do homem reduzido às meras possibilidades da sua natureza, destinado à morte, animado por alento vital caduco (psyche) que não livra da corrupção; corpo espiritual (pneumatikon), animado por um novo princípio celeste, o Espírito (pneuma) que lhe comunica a incorruptibilidade (cf. Rm 8,11).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2170) comenta:

Para Paulo, como para a tradição bíblica, a “psyché” (hebr. nefesh; cf. Gn 2,7) é o princípio vital que anima o corpo humano (1Cor 15,45). É a “vida” do corpo (Rm 16,4; Fl 2,30; 1Ts 2,8; cf. Mt 2,20; Mc 3,4; Lc 12,20; Jo 10,11; At 20,10, etc.), a alma viva do corpo (2Cor 1,23). A mesma palavra pode designar o homem inteiro (Rm 2,9; 13,1; 2Cor 12,15; At 2,41.43, etc.). A psyché, porém, fica sendo um princípio de vida natural (1Cor 2,14; cf. Jd 19), que deve apagar-se diante do “pneuma”, para que o homem encontre de novo a vida divina. Esta substituição, que se inicia já durante a vida mortal pelo dom do Espírito (Rm 5,5; cf. 1,9), atinge a sua plenitude após a morte. Ao passo que a filosofia grega só professava a sobrevivência imortal da alma superior (“nous”), liberta do corpo, o cristianismo concebe a imortalidade estritamente como restauração integral do homem, ou seja, como ressurreição dos corpos pelo Espírito, princípio divino que Deus retirou do homem em consequência do pecado (Gn 6,3) e que lhe devolve pela união ao Cristo ressuscitado (Rm 1,4; 8,11), homem celeste e Espírito vivificante (1Cor 15,45-49). De “psíquico” o corpo se tornará então “pneumático”, incorruptível, imortal (1Cor 15,53), glorioso (1Cor 15,43; cf. Rm 8,18; 2Cor 4,17; Fl 3,21; Cl 3,4), liberto das leis da matéria terrestre (Jo 20,19.26) e das suas aparências (Lc 24,16). – Em sentido mais amplo, a psyché pode designar, por oposição ao corpo, a sede da vida moral e dos sentimentos (Fl 1,27; Ef 6,6; Cl 3,23; cf. Mt 22,37p; 26,38p; Lc 1,46; Jo 12,27; At 4,32; 14,2; 1Pd 2,11, etc.), e até mesmo a alma espiritual e imortal (Mt 10,28.39p; At 2,27; Tg 1,21; 5,20; 1Pd 1,9; Ap 6,9, etc.

Por isso está escrito: o primeiro homem, Adão, “foi um ser vivo”. O segundo Adão é um espírito vivificante. Veio primeiro não o homem espiritual, mas o homem natural; depois é que veio o homem espiritual. O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo homem vem do céu. Como foi o homem terrestre, assim também são as pessoas terrestres; e como é o homem celeste, assim também vão ser as pessoas celestes. E como já refletimos a imagem do homem terrestre, assim também refletiremos a imagem do homem celeste (vv. 45-49).

Paulo continua desenvolvendo o que precede com a comparação entre Adão e Cristo (vv. 21s; cf. 5,12-21), agora aplicada ao corpo terrestre e corpo ressuscitado.

Ao consultar Gn 2,7 (na Tradução grega dos Setenta), encontra o termo psychê, que lhe permite confirmar seu argumento. Adão “foi um ser vivo” (Gn 2,7), lit. alma (psychê) viva; isto é, um ser dotado de vida puramente natural e submetido às leis do desgaste e da corrupção, porque esta expressão aplica-se tanto ao homem como aos animais, “seres vivos” (Gn 1,20).

Adão foi tirado “da terra”: segundo Gn 2,7 e sua tradução. Em hebraico, as palavras “Adão” (adam, significa ser humano) e “terra, argila” (adamá) tem a mesma raiz. Adão é criatura mortal, ao que parece prescindindo do pecado (como em Eclo 17,1-2); Cristo é aqui provavelmente o glorificado (“homem celeste”; não o preexistente; cf. a antítese em Jo 3,31s).

“Refletir” (lit. trazer) a “imagem” que o pai transmite ao filho (Gn 5,3); a do celeste (Gn 1,26s; Rm 8,29; cf. Cl 1,15; 2Cor 3,17s; 4,4; 5,17).

Nossa liturgia omitiu o final triunfal do capítulo (vv. 50-58; cf. 2ª leitura do 8º Domingo do ano C: vv. 54-58). Sobre o modo da ressurreição só se pode falar em comparações, mas sobre o tempo tem um segrego (“mistério”, v. 51) a comunicar: na parusia (quando Jesus voltar), “todos seremos transformados, num instante, … com efeito, é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade … A morte foi absorvida pela vitória … Morte, onde está o teu agulhão?”

Evangelho: Lc 8,4-15

No evangelho de hoje, Lc inicia o ensinamento de Jesus em parábolas, fora do sermão da planície que já contem pequenas comparações (6,39-49). O discurso de parábolas em Mc 4 serviu de modelo para Mt e Lc. Mt preservou a unidade e o contexto do discurso, acrescentando mais parábolas ainda (cf. Mt 13). Lc, porém, transmitiu aqui só a parábola do semeador, sua explicação e as sentenças em seguida; a parábola do grão de mostarda será contada mais tarde no contexto da viagem de Jesus a Jerusalém (13,18-19, talvez por ter tido outra versão desta parábola na fonte Q, junto com a do fermento).

Reuniu-se uma grande multidão, e de todas as cidades iam ter com Jesus. Então ele contou esta parábola:(v. 4).

Além da grande multidão que se reuniu ao redor de Jesus, Lc acrescenta que ela vinha “de todas as cidades”, mas Lc elimina a cena em que Jesus entrou num barco para poder ensinar o povo na beira do mar. Em Lc 5,1-3 Jesus já tinha subido no barco de Pedro para ensinar e depois operar a pesca milagrosa, chamando Pedro para ser pescador dos homens (5,4-11). De fato, o conteúdo das parábolas é da agricultura, não é da pesca (cf. apenas Mt 13,47-50 tem uma para finalizar o discurso).

“O semeador saiu para semear a sua semente. Enquanto semeava, uma parte caiu à beira do caminho; foi pisada e os pássaros do céu a comeram. Outra parte caiu sobre pedras; brotou e secou, porque não havia umidade. Outra parte caiu no meio de espinhos; os espinhos cresceram juntos, e a sufocaram. Outra parte caiu em terra boa; brotou e deu fruto, cem por um.” Dizendo isso, Jesus exclamou: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.”

Os discípulos lhe perguntaram o significado dessa parábola. Jesus respondeu: “A vós foi dado conhecer os mistérios do Reino de Deus. Mas aos outros, só por meio de parábolas, para que olhando não vejam, e ouvindo não compreendam.

A parábola quer dizer o seguinte: A semente é a Palavra de Deus. Os que estão à beira do caminho são aqueles que ouviram, mas, depois, vem o diabo e tira a Palavra do coração deles, para que não acreditem e não se salvem. Os que estão sobre a pedra são aqueles que, ouvindo, acolhem a Palavra com alegria. Mas eles não têm raiz: por um momento acreditam; mas na hora da tentação voltam atrás. Aquilo que caiu entre os espinhos são os que ouvem, mas, com o passar do tempo, são sufocados pelas preocupações, pela riqueza e pelos prazeres da vida, e não chegam a amadurecer. E o que caiu em terra boa são aqueles que, ouvindo com um coração bom e generoso, conservam a Palavra, e dão fruto na perseverança” (vv. 5-15).

A parábola do semeador é cópia de Mc 4,1-20 (cf. evangelho de 4ª feira da 3ª semana comum), mas Lc resume usando também palavras próprias. Em alguns momentos, porém, ele entra com mais detalhes, mostrando seu interesse específico:

As sementes que caíram a beira do caminho, estão sendo “pisadas”; o diabo tira a palavra “do coração deles, para que não acreditem e não se salvem” (vv. 5.12).

Entre as causas que sufocam a palavra, além das preocupações e da riqueza, Lc troca as “ambições que a tornam infrutífera” (Mc 4,19) pelos “prazeres da vida, e não chegam a amadurecer” (v. 14).

Para contar o êxito da terra boa, Lc resume os números da produção 30, 60 ou 100 por “cem por um” (v. 8) e capricha na descrição daqueles que, ouvindo “com um coração bom e generoso, conservam” a palavra e dão fruto “na perseverança” (v. 15). A perseverança é termo próprio de Lc (cf. 21,19) e muito familiar a Paulo (1Ts 1,3; 2Cor 1,6; 6,4; 12,12; Rm 2,7; 5,3.4; 8,25; 15,4-5; Cl 1,11); aqui designa a resistência aos perigos que ameaçam a palavra e a impedem a trazer frutos na vida das pessoas e na evangelização.

Jesus contou esta parábola em Mc 4 para mostrar que valia a pena continuar sua missão: apesar do desentendimento do seu povo e da própria família (Mc 3,21.31-34) e da hostilidade dos fariseus e herodianos, dos escribas da Galileia e de Jerusalém (Mc 3,6.22.30), seu trabalho de “semear a palavra” do reino não seria em vão, mas teria êxito exuberante (30,60, 100 vezes; cf. as parábolas seguintes).Seu trabalho pode parecer uma perda, mas ao final trará frutos (cf. Jo 12,24). Em Mc, os discípulos entenderão isso só depois da cruz através da ressurreição (o segredo do messias que se revela só na cruz é uma característica em Mc).

Em Mt e Lc a parábola já é interpretada mais em vista do crescimento da Igreja, com destaque na formação dos discípulos (em Mt 13,23: “ouve a palavra e a entende”, em seguida a parábolas do joio, do tesouro e da perola) e na misericórdiae perseverança (depois da acolhida da pecadora e da lista das discípulas em Lc 7,36-8,3).

O site da CNBB comenta: Muitas vezes, quando estamos exercendo o trabalho evangelizador, ficamos angustiados porque não vemos os resultados que estávamos esperando, e isso acaba por se tornar para nós causa de desânimo. O Evangelho de hoje nos mostra que o mais importante é evangelizar, e que sempre devemos lançar as sementes da Palavra. O semeador do Evangelho de hoje não estava preocupado se as sementes estavam caindo em terreno bom. Nós também não devemos lançar as sementes apenas para os que podem responder de forma positiva. A evangelização é para todos e os resultados não dependem de nós, mas da Graça divina.

 

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