1º de Fevereiro de 2021, Segunda-feira: Jesus lhe dizia: “Espírito impuro, sai desse homem!”

4ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Hb 11,32-40

O autor anônimo de Hb quer fortalecer a fé e a coragem dos seus ouvintes desanimados. Depois do seu sermão sobre o sumo sacerdócio de Cristo que abriu o acesso aberto aos fiéis, o autor apresenta um elogio dos antepassados no cap. 11. Em 11,1 definiu-se: “a fé e um modo de possuir desde agora o que se espera, é um meio de conhecer realidades que se veem.” Em seguida, o autor apresentou como prova e testemunho da fé a história da salvação, o caminho de Deus com os seres humanos como foi escrito no Antigo Testamento (AT), começando pela criação (v. 3) e passando por Abel, Henoc, Noé, Abraão e Sara, Jacó, José, Moisés até a conquista de Jericó na terra prometida (vv. 4-31). Esta maneira de passar em revista os personagens do AT é comum na tradição judaica (cf. Eclo 44-50; Jt 8,25-27; 1Mc 2,51-64; Sb 10), aliás um culto aos ancestrais ou elogios dos antepassados são comuns em quase todas as religiões. No sábado passado ouvimos o início, hoje o fim deste elogio.

Que mais devo dizer? Não teria tempo de falar mais sobre Gedeão, Barac, Sansão, Jefté, Davi, Samuel e os profetas (v. 32).

O início desta leitura “que mais devo dizer? …”, refere-se à nova abordagem da fé que começou no cap. 11. Na leitura de hoje, o autor conclui sua lista de maneira mais resumida ainda. “Não teria tempo de falar mais …” (v. 34). Nós mesmos somos convidados a enriquecer a série de Hb 11 com a recordação ou o repasse dos relatos bíblicos sobre Gedeão (Jz 6,11), Barac (Jz 4,6), Sansão (Jz 13,24), Jefté (Jz 11,1), Davi(1Sm 16,13), Samuel (1Sm 1,20) e os profetas.

Estes, pela fé, conquistaram reinos, praticaram a justiça, foram contemplados com promessas, amordaçaram a boca dos leões, extinguiram o poder do fogo, escaparam do fio da espada, recobraram saúde na doença, mostraram-se valentes na guerra, repeliram os exércitos estrangeiros. Mulheres reencontraram os seus mortos pela ressurreição. Outros foram esquartejados, ou recusaram o resgate, para chegar a uma ressurreição melhor. Outros ainda sofreram a provação dos escárnios, experimentaram o açoite, as correntes, as prisões. Foram apedrejados, foram serrados, ou morreram a golpes de espada. Levaram vida errante, vestidos com pele de carneiro ou pelos de cabra; oprimidos e atribulados, sofreram privações. Eles, de quem o mundo não era digno, erravam pelos desertos e pelas montanhas, pelas grutas e cavernas da terra (vv. 33-38).

Esta lista se compõe de façanhas históricas e sofrimentos suportados, tudo animado pela fé e esperança. Alguns podem ser identificados: “leões” (v. 33): Sansão (Jz 14,18); Davi (1Sm 17,34-35); Banaías (2Sm 23,20); Daniel (Dn 6,23); “ressuscitados” por Elias (1Rs 17,17-24) e Eliseu (2Rs 4,36), “esquartejados” os sete irmãos (2Mc 7), “acoites” e “prisão” de Jeremias (Jr 20,2; 37,15-16); “serrados” (Isaias conforme um livro apócrifo “Ascensão de Isaias”, mencionado por Orígenes, séc. III), “apedrejados” (Zacarias em 2Cr 24,21); “vida errante, vestidos com peles … pelos desertos e pelas montanhas, pelas grutas e cavernas da terra” (Elias em 17,2-6; 19,3-15; 2Rs 1,8 e João Batista em Mc 1,4.6).

E, no entanto, todos eles, se bem que pela fé tenham recebido um bom testemunho, apesar disso não obtiveram a realização da promessa. Pois Deus estava prevendo, para nós, algo melhor. Por isso não convinha que eles chegassem à plena realização sem nós (vv. 39-40).

Todos eles são exemplos de fé, “um bom testemunho, apesar disso não obtiveram a realização da promessa” (v. 39). Deus adiava o cumprimento de tantas esperanças para que fossem incluídos também os cristãos (“nós”) numa grande unidade. Contra crenças antigas, o autor quer dizer também, que a retribuição não se dava plenamente nesta vida. A era escatológica da “perfeição” ou “plena realização” foi inaugurada por Cristo (2,10; 5,9; 7,28; 10,14) e o acesso à vida celeste só foi aberto por ele (9,11s; 10,19s). Os justos do AT, que a Lei não pode “levar a perfeição” (7,19; 9,9; 10,1), tiveram que esperar a ressurreição dele para entrar na vida perfeita do céu (12,13; cf. Mt 27,52-53; 1Pd 3,19). Nós somos realmente privilegiados por conhecer e acreditar em Jesus Cristo (cf. Mt 11,11; 13,16-17; Lc 7,28; 10,23-24).

Muitos outros cristãos já caminhavam antes de nós, podemo-nos lembrar deles (pessoas da Bíblia, Santos conhecidos e não-conhecidos, nossos antepassados da família (cf. 2Tm 1,5); pessoas exemplares da comunidade. Aprendendo a partir da experiência deles podemos fortalecer a nossa fé.

Evangelho: Mc 5,1-20

Hoje o evangelho nos apresenta a primeira atuação de Jesus em terreno pagão, logo um exorcismo de dimensão colossal e descrito por Mc com muitos detalhes e vivacidade.

Já comentamos o esquema comum dos relatos de exorcismo (cf. 1,23-27; comentário da terça-feira da primeira semana) com os seguintes passos: a descrição e a aproximação do possuído (vv. 2-6), o conhecimento sobrenatural da identidade, a revelação do nome (v. 9), a ordem do exorcista (v. 8), a demonstração da cura através de um gesto do demônio (gritar, sacudir…cf. v. 13) e do comportamento normal do possuído curado (v. 15), a reação do povo ao redor (vv. 14.16-17).

Jesus e seus discípulos chegaram à outra margem do mar, na região dos gerasenos (v. 1).

Depois da tempestade perigosa no mar da Galileia (lago de Genesaré; cf. evangelho de sábado passado), Jesus e seus discípulos chegaram à outra margem do mar da Galileia (lago de Genesaré), isto é, à terra estrangeira, “na região dos gerasenos”. Gerasa faz parte da “Decápole” (v. 20), ou seja, “dez cidades” de cultura e língua gregas, mas a cidade de Gerasa fica distante do lago, por isso Mt mudou para “gadarenos” (Mt 8,28). Para os judeus, é terra dos pagãos.

Logo que saiu da barca, um homem possuído por um espírito impuro, saindo de um cemitério, foi ao seu encontro. Esse homem morava no meio dos túmulos e ninguém conseguia amarrá-lo, nem mesmo com correntes. Muitas vezes tinha sido amarrado com algemas e correntes, mas ele arrebentava as correntes e quebrava as algemas. E ninguém era capaz de dominá-lo. Dia e noite ele vagava entre os túmulos e pelos montes, gritando e ferindo-se com pedras (vv. 2-5).

O “homem possuído por um espírito impuro” (cf. 1,23) representa aqui a situação dos pagãos (como o possuído em 1,23-27 representou de certo modo a dos judeus na sinagoga): crenças e ideias esquisitas, superstições, comportamentos imundos de uma cultura da morte que se opõe com muita força à cultura da vida.

O possuído é descrito com detalhes realistas: uma força desmedida (“ninguém conseguiu amarrá-lo”) e autodestrutiva (“vagava entre túmulos e pelos montes, gritando e ferindo-se com pedras”). O relato parece-se inspirar na descrição dos povos pagãos, em Is 65,4: “Habitavam nas sepulturas e pernoitavam nas grutas, comiam carne de porcos, pondo nos seus pratos caldo abominável.”

Vendo Jesus de longe, o endemoninhado correu, caiu de joelhos diante dele e gritou bem alto: “Que tens a ver comigo, Jesus, Filho do Deus altíssimo? Eu te conjuro por Deus, não me atormentes!” (vv. 6-7).

Este pagão com sua força terrível e indomada vem correndo ao encontro de Jesus, como saindo do reino da morte, mas em vez de ameaçá-lo, ”caiu de joelhos” e vem pedindo: “Eu ti conjuro, não me atormentes” (v. 6). Igual aos outros possessos, ele conhece a identidade de “Jesus, Filho do Deus altíssimo”, título conveniente na boca de um pagão que reconhece a superioridade de Jesus e do verdadeiro Deus superior aos deuses pagãos (cf. Gn 14,18; Nm 24,16; Sl 9,2;18,14,83,19; Is 14,14; Dn 4,29-31; Lc 1,32-35,76;6,35; At 7,48).

Com efeito, Jesus lhe dizia: “Espírito impuro, sai desse homem!” Então Jesus perguntou: “Qual é o teu nome?” O homem respondeu: “Meu nome é Legião, porque somos muitos.” E pedia com insistência para que Jesus não o expulsasse da região (vv. 8-10).

Aqui Jesus não impõe silêncio aos demônios (cf. 1,25.34; 3,12), porque em terra pagã (não-judaica) não havia o perigo de ser mal-entendido como messias nacionalista e guerreiro (cf. o segredo do Messias no evangelho de Mc). Jesus o obriga a revelar seu nome (v. 9); segundo os exorcismos da época, o conhecimento do nome confere poder sobre ele. O nome “legião” sugere que um regimento inteiro de demônios ali se acha instalado (uma legião romana constava de 6000 soldados). A pluralidade de demônios indica a gravidade da alienação (cf. Mt 12,45; Lc 8,2; 11,26). Aqui a narrativa ultrapassa o caso do doente e tenta ilustrar o poder de Jesus sobre o reino de satanás (cf. 1,13; 3,23-27: “amarrar”) e sua autoridade também em território pagão.

Havia aí perto uma grande manada de porcos, pastando na montanha. O espírito impuro suplicou, então: “Manda-nos para os porcos, para que entremos neles.” Jesus permitiu. Os espíritos impuros saíram do homem e entraram nos porcos. E toda a manada – mais ou menos uns dois mil porcos – atirou-se monte abaixo para dentro do mar, onde se afogou (vv. 11-13).

A legião dos demônios não quer ser destruída, mas pede uma concessão. Acreditava-se que um demônio expulso devia procurar outro refúgio (cf. Mt 12,43p). A presença dos porcos, animais impuros para os judeus (cf. Dt 14,18; Lv 11,7), ilustra aqui a impureza de uma terra pagã (cf. Is 65,4; Lc 15,15-16). A concessão de Jesus de entrarem nos porcos, porém, significa sua ruína, afundou-se a legião no caos do mar.

Pode-se pensar numa origem popular desta narração na Palestina: os pagãos romanos invadiram Palestina vindo pelo mar mediterrâneo em 63 a.C. e se apoderaram das terras e do povo judeu. O povo oprimido (possuído, alienado) desejava que os opressores romanos com todas suas legiões violentas e imundas voltassem para o lugar de onde vieram e se afogassem no mar como antigamente o exército do Faraó (Ex 14,27-15,21).

Os homens que guardavam os porcos saíram correndo e espalharam a notícia na cidade e nos campos. E as pessoas foram ver o que havia acontecido. Elas foram até Jesus e viram o endemoninhado sentado, vestido e no seu perfeito juízo, aquele mesmo que antes estava possuído pela Legião. E ficaram com medo. Os que tinham presenciado o fato explicaram-lhes o que havia acontecido com o endemoninhado e com os porcos. Então começaram a pedir que Jesus fosse embora da região deles (vv. 14-17).

O possesso libertado por Jesus demonstra agora comportamento social e civilizado “sentado, vestido e no seu perfeito juízo” (v. 15), mas os homens da região ficaram com medo e começaram a pedir que Jesus fosse embora da região deles (vv. 15-17), talvez pensando no prejuízo de perder 2000 povos pela cura de uma única pessoa. Se Jesus continuasse com suas curas assim, poderia ameaçar a economia da região toda (cf. a idolatria do dinheiro, Mt 6,24).

Enquanto Jesus entrava de novo na barca, o homem que tinha sido endemoninhado pediu-lhe que o deixasse ficar com ele. Jesus, porém, não permitiu. Entretanto, lhe disse: “Vai para casa, para junto dos teus e anuncia-lhes tudo o que o Senhor, em sua misericórdia, fez por ti.” Então o homem foi embora e começou a pregar na Decápole tudo o que Jesus tinha feito por ele. E todos ficavam admirados (vv. 18-20).

O homem curado queria “ficar com ele” (v. 18), mas Jesus não o aceita; o fato de “estar com ele” caracteriza os Doze em 3,14. Mas Jesus o deixa como testemunha e mensageiro na sua família e terra.

A ausência da imposição do silêncio (aqui e em vv. 7-8) parece contradizer o segredo messiânico, comum no Ev de Mc. Mas aqui Jesus se retira da região, e a ordem de falar não se refere à sua pessoa, mas à obra do verdadeiro Deus, o “Senhor” (v. 19) também fora de Israel na terra pagã. Mesmo assim, o ex-possesso torna-se o primeiro pregador da boa notícia de Jesus em terra pagã.

Nós cristãos brasileiros tampouco somos judeus; então podemo-nos perguntar: Quais são os nossos demônios, possessões, impurezas, etc.? Não devemos expulsar Jesus do nosso meio, só porque, para nossa cura espiritual e para recuperar o equilíbrio na sociedade, uns sacrifícios materiais possam ser necessários como efeitos colaterais de um bem maior.

O site da CNBB resume: O que nós queremos fazer a partir do momento em que fazemos uma experiência mais profunda do amor de Deus em nossas vidas? Em muitos casos, o que acontece é que a pessoa adota uma postura intimista e individualista de vivência religiosa. O Evangelho de hoje nos mostra essa tendência, mas nos mostra também a vontade de Deus. Jesus não permitiu que o homem que tinha sido endemoninhado ficasse com ele, mas o enviou para ser evangelizador através do testemunho da misericórdia de Deus, mostrando-nos, assim, que a verdadeira resposta ao amor de Deus é o compromisso evangelizador.

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