2 de Abril de 2021, Sexta-feira Santa: Ao se aproximarem de Jesus, e vendo que já estava morto, não lhe quebraram as pernas; mas um soldado abriu-lhe o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água.

Semana Santa 6ª feira Santa

1ª Leitura: Is 52,13-52,12

Ouvimos o quarto canto (poema) do Servo de Deus. Embora pareçam dispersos pela segunda parte do livro de Is (Segundo Isaías), os quatro cantos formam uma grande unidade literária. No primeiro canto (42,1-7), Deus apresentou seu servo em quem pôs seu espírito para fazer justiça na terra com cuidado e sem violência (cf. leitura de 2ª feira; os evangelistas o aplicam ao batismo de Jesus; cf. Mt 3,17p combina 42,1 com Sl 2,7). No segundo canto (49,1-6), o servo falou da sua vocação de profeta e do seu insucesso, mas é enviado para além de Israel ser “luz das nações” (cf. leitura de 3ª feira). No terceiro canto (50,4-9), o servo falou como um sábio e discípulo fiel que suporta várias agressões, até que Deus lhe conceda a justiça (cf. leitura do domingo de Ramos e de 4ª feira). Cada vez ficou mais claro que este servo não é uma figura coletiva (Israel, cf. 41,8), mas um indivíduo (profeta, messias?).

O quarto canto do servo é o mais longo, o mais denso e o mais belo que chegou a ser chamado o “quinto evangelho”, pois nele se pode entrever uma imagem pormenorizada da paixão e glorificação de Jesus. Fala de um paradoxo: do cúmulo da dor e da humilhação, o servo chega ao auge do “êxito” e da “ascensão” (52,13; 53,10).

Existem variações nos manuscritos hebraicos (texto masorético e Qumrã) e gregos (LXX), por isso temos traduções divergentes nas diversas Bíblias. O gênero e o conteúdo são inéditos no AT, “nunca lhes foi narrado e conhecendo coisas que jamais ouviram” (52,15b). É uma lamentação, talvez proferida por outro profeta (discípulo) diante da comunidade no exílio da Babilônia, uma liturgia de funeral em memória do Servo de Javé que acabou de morrer. Compõe-se de três estrofes que podem ser lido em duas vozes (Deus, comunidade) na liturgia de hoje: na primeira e na última é Deus que fala (“meu servo”, 52,13; 53,11b), na segunda (53,1-11b), é a comunidade (a multidão: “nós”, 53,1-11a) que confessa seu pecado que fazia o servo sofrer (a dor é sua, a culpa é nossa).

Ei-lo, o meu Servo será bem sucedido; sua ascensão será ao mais alto grau. Assim como muitos ficaram pasmados ao vê-lo- tão desfigurado ele estava que não parecia ser um homem ou ter aspecto humano -, do mesmo modo ele espalhará sua fama entre os povos. Diante dele os reis se manterão em silêncio, vendo algo que nunca lhes foi narrado e conhecendo coisas que jamais ouviram (52,13-15).

Pela boca do profeta, Deus reapresenta seu servo eleito como no primeiro canto (cf. 42,1: “Eis o meu servo”) e revela a verdade última sobre aquele homem: apesar do insucesso aparente (cf. 49,4), “será bem sucedido”, “sua ascensão (lit. ele se levanta, é elevado) será ao mais alto grau”. Justamente aquele “desfigurado” no sofrimento “que não parecia ser um homem ou ter aspecto humano” é agora entronizado como rei dos reis. Aqui tem um acúmulo de expressões da realeza como em nenhum outro lugar do Antigo Testamento (AT).

O servo espalhará a sua “fama entre os povos” (cf. 42,6; 49,6). As multidões e os reis ficam espantados (52,14-15; cf. Ez 32,10), porque o que se passa com ele é absolutamente inaudito e humanamente incrível (53,1), revela uma realidade transcendente, “seu reino não é deste mundo” (cf. Jo 18,36). Antes e depois: antes era um servo desfigurado, depois Javé o unge como rei dos reis (cf. Sl 45). Não se deve julgar pelas aparências (cf. 1Sm 16,7); toda pessoa sofrida tem uma dignidade secreta (cf. a teologia da cruz em 1Cor 1,26-31; 2,1-5; 2Cor 12,1-10)

No ritual da posse do trono pelo rei, “os reis” e “os povos” fazem parte (1Rs 1,32-40; Sl 2; 72,11; cf. Gn 17,6.16; 35,11; Jr 27,7; Ez 32,10, Sl 102,16; 110,5s; 13,10; 148,11; 149,7s; 1Mc 2,48), eles ficam “pasmados” ao ver aquele que era “desprezado” (49,7) e “se manterão em silêncio”  (cf. Mq 7,16s; Sl 107,42; Jó 5,16). Podemo-nos lembrar do funeral do Papa João Paulo II (desfigurado na sua doença) com toda presença de chefes de estados.

Quem de nós deu crédito ao que ouvimos? E a quem foi dado reconhecer a força do Senhor? Diante do Senhor ele cresceu como renovo de planta ou como raiz em terra seca. Não tinha beleza nem atrativo para o olharmos, não tinha aparência que nos agradasse. Era desprezado como o último dos mortais, homem coberto de dores, cheio de sofrimentos; passando por ele, tapávamos o rosto; tão desprezível era, não fazíamos caso dele (53,1-3).

A partir de 53,1, a comunidade (“nós”) toma a palavra e fala sobre o servo. Nesta memória, como numa meditação salmista, se alternam lamentação e agradecimento, penitência e profissão de fé. Os exilados ouviram a mensagem profética do servo, mas não acreditaram que a força (lit. “braço”; cf. 40,11…; Ex 6,6 etc.) do Senhor podia criar salvação através desta figura miserável do servo. A tradução aramaica (Targum) usou a palavra besorta, “evangelho, boa notícia” (v. 1; cf. 1Cor 15,1-3; Rm 1,16; Mc 1,1.15 etc.).

Desde seu nascimento (ou do início do seu ofício), o servo não tinha aparência atraente, é comparado a uma raiz em terra seca (v. 2). Como não correspondeu ao ideal de um homem belo e cobiçado (cf. Gn 29,17; 39,6s; 1Sm 16,12), era “desprezado” e abandonado pelas pessoas; não olharam para ele e negaram até o contato e a comunicação com ele (cf. o lamento dos excluídos em Sl 22,7.25; 102,7-9). Seu sofrimento físico (uma doenças crônica?) o fez íntimo do sofrimento: “homem coberto de dores, cheio (lit. íntimo, familiar) de sofrimentos”.

A verdade é que ele tomava sobre si nossas enfermidades e sofria, ele mesmo, nossas dores; e nós pensávamos fosse um chagado, golpeado por Deus e humilhado! Mas ele foi ferido por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes; a punição a ele imposta era o preço da nossa paz, e suas feridas, o preço da nossa cura (vv. 4-5).

Em vv. 4-5, interpreta-se de maneira diferente o sofrimento do servo. A aclamação “a verdade é” (ou: “com efeito)” marca um conhecimento surpreendente e transcendente (cf. 40,7; 45,15; Gn 28,16), uma intuição que não veio do pensamento lógico, mas pela contemplação deste homem de dores. O pensamento tradicional era que o homem sofre porque é castigado (“golpeado”) pelos seus próprios pecados (cf. Gn 12,17; Ex 11,1; 1Rs 8,37s; Jó 19,21; Sl 39,11; 73,14; 89,33; Jr 30,14; Os 5,2; 2Cr 26,20) ou como meio de educação (cf. Dt 8,2.5; Pr 3,11s; Hb 12,5-12). Agora cresceu a intuição que Deus fez sofrer o servo em representação e substituição do povo. Assim se revela não apenas a nova visão do sofrimento do servo, mas também a situação do povo que confessa seus pecados agora (usando os termos de Ex 34,7; Is 43,25; Gn 4,13). O servo pagou por nosso crimes, “a punição a ele imposta era o preço da nossa paz”. O hebraico não tem uma palavra por reconciliação, mas usa shalom, “paz” (cf. Rm 5,1.10s; 2Cor 5,19s).

Na metáfora da enfermidade, as suas feridas foram a causa da nossa cura. Mt 8,17 cita Is 53,4 referindo-se às curas de Jesus: “Levou nossas enfermidades e carregou nossas doenças.” A culpa e também o perdão podem ter efeitos para nossa saúde. Mas depois do servo sofredor fica claro, que ninguém deve reduzir qualquer doença imediatamente à uma culpa moral da pessoa enferma.

Todos nós vagávamos como ovelhas desgarradas, cada qual seguindo seu caminho; e o Senhor fez recair sobre ele o pecado de todos nós. Foi maltratado, e submeteu-se, não abriu a boca; como cordeiro levado ao matadouro ou como ovelha diante dos que a tosquiam, ele não abriu a boca (vv. 6-7).

Esta interpretação do sofrimento do servo serve-se das metáforas das ovelhas desgarradas e do cordeiro levado ao matadouro (em v. 2, a metáfora era a planta, em v. 6s é o animal). Mas aqui se alude à morte violenta do servo-cordeiro (cf. Jo 1,29; Ap 5,6-13). Já Jeremias usou esta metáfora, mas para sublinhar sua inocência (Jr 11,19). A metáfora revela a essência do pecado, o egoísmo: “cada qual seguindo seu caminho”, procurando seu próprio interesse, incapaz de compreender o outro (56,11; 1Cor 13,5; Fl 2,4.21; cf. o ditado: cada um só pensa em si, só eu penso em mim).

Mencionam-se três causas do sofrimento de servo: 1. Javé, na sua intenção de salvar o povo, “fez recair sobre ele o pecado de todos nós”. 2. O servo concordou, não pagou o mal como mal, mas “submeteu-se” (à vontade de Javé, cf. v. 10; numa espécie de Getsêmani do AT). 3. Os “maus tratos” e a tortura dos opressores lembram a escravidão no Egito (cf. Ex 3,7; 5,6ss) e a dureza nos latifúndios de Israel (cf. Dt 15,1-18).

Foi atormentado pela angústia e foi condenado. Quem se preocuparia com sua história de origem? Ele foi eliminado do mundo dos vivos; e por causa do pecado do meu povo foi golpeado até morrer. Deram-lhe sepultura entre ímpios, um túmulo entre os ricos, porque ele não praticou o mal nem se encontrou falsidade em suas palavras (vv. 8-9).

A quinta estrofe deixa claro que o servo morreu de fato, ou na prisão (cf. 2Rs 17,4; Jr 33,1; 39,15) ou depois de uma sentença, numa execução (cf. Dt 17,9ss; 25,1; 2Rs 25,6; Pr 16,10; Jr 21,1).

Não sabemos nada de um procedimento desse contra Deutero-Isaías ou outro judeu no exílio. Mas podemos imaginar a reação das autoridades babilônicas a respeito da pregação de Deutero-Isaías que anunciou a vitória do rei persa Ciro (41,1-5; 44,28-45,1), a queda da Babilônia com seus deuses Bel e Nebo (cap. 46-47; Bel era o senhor do céu e foi identificado com Marduk, o deus da cidade da Babilônia; Nebo era filho de Marduk e protetor da dinastia dos reis, p. ex. Nabu-codonosor). O profeta ridicularizou a idolatria dos deuses (cf. 40,18s; 41,21-29; 44,9-20) e declarou o monoteísmo absoluto (Jávé é o único Deus, fora dele não há outros deuses, cf. 43,8-13; 44,6-8; 45,5).

A sepultura sela uma vida de dores e desprezos. Quatro das expressões de v. 9, encontramos numa crítica anticapitalista de Mq 6,11s: “ímpios”, “mal” (ato violento), “falsidade” são três características dos “ricos”. Em Hab 1, estes termos se aplicam não só aos capitalistas de Israel, mas também aos povos estrangeiros.

A pregação cristã viu aqui um anúncio da sepultura de Jesus entre os ricos (José de Arimateia). Mas o sentido hebraico é pejorativo: O servo, verdadeiro israelita e inocente que anunciava um novo êxodo, foi sepultado na terra dos exploradores ricos da Babilônia (em v. 9b, a tradução da liturgia “porque” é duvidosa, melhor seria: “apesar de”, “se bem que” ele não praticou nenhum mal.

O Senhor quis macerá-lo com sofrimentos. Oferecendo sua vida em expiação, ele terá descendência duradoura, e fará cumprir com êxito a vontade do Senhor. Por esta vida de sofrimento, alcançará luz e uma ciência perfeita (vv. 10-11a).

A sexta estrofe conta a virada do destino do servo. Depois do seu sofrimento e da sua morte, vida em abundância lhe é concedida, lit.: ele “verá descendência, terá vida longa, … saciar-se-á ao ver a luz”.

São expressões tradicionais de vitalidade plena no AT que não conhecia ainda vida após morte. A única maneira de um indivíduo perdurar estava na sua descendência, “ver sua descendência” significa poder ainda vivenciar este “durar”. “Ter vida longa” é dom de Deus com o qual ele recompensa o justo e fiel (cf. Dt 4,26.30; 5,33 etc.). “Ver a luz” é metáfora de vida (feliz) em contraste com a morte (morrer é cair na cova e escuridão). “Saciar-se” pode se juntar ao “ver” (Sl 17,15; cf. Pr 27,20b; Ecl 1,8; 4,8) e significa matar a ansiedade no ato de ver, aqui satisfação plena (cf. Jo 10,10).

Encontramos todas estas expressões também em Ecl 6,3-7, numa meditação cética. Em Is 53,10s, porém, o autor tem certeza de que o servo, “por esta vida de sofrimento” (lit. “por sua vida de trabalho fatigante” cf. Ecl 1,2; 6,7) receberá vida em abundância. Não se trata de apenas revitalizar alguém que estava quase morto e volta a viver. Na estrofe anterior (vv. 8-9), o servo de fato morreu e foi sepultado.

Estamos num ponto em que se começa afirmar que há vida e justiça após a morte. Antes do exílio babilônico (586-538), pouco se refletia sobre isso. Após a escravidão do Egito (séc. 13 a.C.), Israel não quis saber da continuação da vida após a morte da mesma maneira injusta como era antes (escravos servindo o faraó ainda no além?). Javé é o Deus dos vivos, não dos mortos. Ele quer vida e liberdade aqui para seu povo. Aos poucos, porém, surgem questionamentos a respeito da morte injusta de indivíduos (cf. Sl 49; 73; Ecl) e da teologia da retribuição que nem sempre se cumpre nesta vida.

No exílio da Babilônia (onde o Segundo Is escreve), a ideia da ressurreição começa surgir (cf. Ez 37,1-14), porque o poder de Deus é universal, não tem limites de espaço (é Deus de todo a terra e não só de Israel; cf. Is 44,6; 45,4-7.12; Gn 1) nem tem limites de tempo: portanto, a justiça de Deus deve se estender para além da morte, como aqui, sem falar explicitamente da ressurreição (cf. Is 25,8; 26,19).

Na crise do exílio, um profeta contemporâneo no exílio, Ezequiel, descreverá a volta do exílio como ressurreição dos ossos secos em termos de uma nova criação pelo Espírito (Ez 37). Depois, pelas influências persa e grega, surge a ideia da vida eterna da alma justa no paraíso (cf. Sb 3; Lc 16,19-31), além da ressurreição da carne (Is 26,19; 2Mc 7; Dn 12,2-3).

Em vv. 10-11a, não se trata apenas da possibilidade de vida após a morte. A comunidade (que está falando ainda) reconhece que esta vida após a morte é a recompensa pela doação e obediência do servo que “oferecendo sua vida em expiação” correspondeu à “vontade do Senhor” (desígnio, projeto salvífico de Javé) que “quis” macerá-lo “com sofrimentos” (outra tradução possível: “e o traspassou”).

De fato, pela primeira vez no AT se fala aqui da “expiação” vicária, ou seja, de um sofrimento que paga a culpa de outros. Geralmente no AT se falava da doutrina da retribuição, “aqui se faz, aqui se paga” (cf. Sl 1 e a teologia da prosperidade hoje em dia). Já o livro de Jó a questiona: Se faz nada de errado, porque o justo sofre? Também uns salmos falam do sofrimento do justo (cf. Sl 22; 73; cf. Ecl; Sb 2). O servo não foi salvo mais aqui na terra (como Jó, como José do Egito e outros), morreu de fato e foi sepultado (vv. 8-9).

Aqui temos o único texto no AT que usa a imagem de uma vítima humana em expiação. É sabido que os sacrifícios humanos eram absolutamente proibidos (cf. Gn 22,12s: um cordeiro é oferecido no lugar do filho de Abraão).

O termo hebraico ‘asam tem um significado de “reparação” (em caso de delito inconsciente ou sem querer, cf. Lv 5,15-19) até “sacrifício de culpa” (em casos de delito consciente e grave, Lv 5,20-26). Em 1Sm 6,3.5, o homem toma iniciativa e espera que Deus aceite este sacrifício. Talvez o servo não tivesse a certeza desde o início, se Deus aceitaria seu sacrifício. Ele esperava ainda pela aceitação e justificação divina que será proclamado no final (vv. 11b-12), mas já em v. 11a reconhece-se que a doação de vida do servo está em “consciente” consonância com o projeto de Deus e assim “cria salvação” (nossa liturgia traduz: “ciência perfeita”; cf. Jr 22,15s: o rei Josias, que criou justiça e salvação para os pobres através do seu “conhecimento” de Deus).

Meu Servo, o justo, fará justos inúmeros homens, carregando sobre si suas culpas. Por isso, compartilharei com ele multidões e ele repartirá suas riquezas com os valentes seguidores, pois entregou o corpo à morte, sendo contado como um malfeitor; ele, na verdade, resgatava o pecado de todos e intercedia em favor dos pecadores (vv. 11b-12).

Aqui Javé Deus, pela boca do profeta, volta a falar. No terceiro canto, o servo maltratado esperava pelo auxílio de Javé (53,8-9) que o supremo juiz o defenderia e declararia publicamente sua inocência, dizendo como agora “meu servo é justo” (v. 11b).

No direito do AT (cf. Dt 25,1-3; 23,7; 1Rs 8,31s), precisa de um julgamento para solucionar um conflito que impossibilita a convivência e proclamar publicamente a sentença: 1) quem é inocente e justo (cf. Pr 24,24) e quem é culpado, 2) qual a consequência do ato (pena, sanção, indenização) e 3) justificar a sentença. Assim, Javé proclama a sentença (v. 11b: “ele é justo”), a consequência (v. 12a: não pena, mas recompensa), e a justificação da sentença (v. 12bc)

Deus declara justo o servo que os muitos desprezavam achando que era castigado por Deus. A ação justa do servo consistiu exatamente no fato de ele tirar a culpa daqueles que o desprezavam mostrando-se seus inimigos. Aqui a “justiça divina” chega ao cume: nunca era apenas justiça por obras ou méritos, sempre ajudava os fracos e indefesos (cf. Jr 22,15: Sl 72), mas agora ajuda até os pecadores, aqueles que o desprezavam (cf. Rm 5,8-10)!

A consequência (v. 12a), o resultado do julgamento divino é a recompensa, expressada com metáforas marciais: o servo receberá “sua parte”, repartirá despojos (cf. 9,2; Gn 49,27; Ex 15,9). “Repartir despojos” (a liturgia traduz “riquezas”) já não é tal bélico (cf. Pr 16,19; Jr 33,23) e significa num sentido amplo: “ganhar o bem da vida ao lado de certas pessoas.”

Neste termo, o servo desprezado, excluído e isolado (cf. v. 3) será ressocializado. Sua isolação é eliminada e transformada em experiência de comunhão feliz “com multidões” e “notáveis” (a liturgia traduziu: “valentes seguidores”. O mesmo par, “numerosos” e “poderosos”, se encontra em Ex 1,9; Dt 9,14; 26,5; Jl 2,2; Sl 35,18). Difícil de imaginar é como se dá esta comunhão e reintegração, porque o servo já morreu. Mas esta frase afirma coisa importante sobre a vida após morte: não será algo impessoal (como o nirvana budista), mas interpessoal (podemos relacionar a transfiguração de Jesus com este canto do servo em vários aspectos, aqui sua conversa com Moisés e Elias, Mc 9,4p).

Qual será o despojo do servo? Pode-se dizer, a partir dos cantos de 42,1-7 e 49,6-9, que serão os povos, ou melhor: o resgate deles, a virada da salvação para o mundo. No NT, é a Igreja de todos os povos (católica), a comunhão com os discípulos que vão “ter parte” com o Corpo e Sangue de Jesus (cf. Jo 13,8; 1Cor 10,16s).

A justificação da sentença (v. 12bc) é mais do que mera repetição: fala-se de doar a vida e a honra e do papel de bode expiatório. “Pois entregou o corpo à morte”, lit. “se derramou a si mesmo até morte” (cf. Fl 2,7); o que no Sl 141,8 mais se teme, “derramar a minha vida”, o servo aceita (cf. Mt 26,28). “Deixou-se contar entre os malfeitores (criminosos)” (cf. Lc 22,37), quer dizer que renunciou à sua honra e sua justificação por conta própria, interrompendo a espiral da violência e reação violenta.

“Resgatava o pecado de todos”, lit. “carregou o pecado de muitos”. Há uma polêmica sobre a tradução, “muitos” ou “todos”, que levou Papa Bento XVI a pedir a revisão das palavras litúrgicas na consagração eucarística: Jesus derramou seu sangue “por muitos” ou “por todos”? No relato da última ceia, Mc 14,24 e mais ainda Mt 26,28 aludem ao servo de Deus em Is 53,12 e traduzem a palavra hebraica rabbim por “muitos” (cf. Mc 10,45; Lc 22,20: por vós). A reforma litúrgica na esteira do Concílio Vaticano II traduz (interpreta) a palavra “por todos”.

Em português (e outras línguas como grego, latim etc.) há contraposição entre muitos e todos, ex.: “muitos alunos foram aprovados”, quer dizer que “nem todos foram aprovados”. Em hebraico, não: rabbim significa uma “multidão” que pode ser todos ou nem todos.

Comparamos outros trechos no NT: Hb 9,28; Ap 7,9; Mt 22,14 usam a palavra grega por “multidão”, mas as cartas paulinas (Rm 5,15.18-19; 8,32; 1Cor 10,16s; 2Cor 5,14s; 1Tm 2,4-6; 2Tm 2,11.14) e os escritos joaninos (Jo 1,29; 6,51; 11,52; 1Jo 2,2) salientam a universalidade: Cristo morreu para salvar a “todos”. Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados; e não só dos nossos, mas também os pecados do mundo inteiro (cf. Mt 1,21; Jo 1,29).

A expressão desta síntese do quarto canto lembra a função do “bode expiatório”: Aarão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode e confessará sobre ele todas as faltas dos filhos de Israel, todos seus crimes todos os seus pecados. E depois de tê-los assim posto sobre a cabeça do bode enviá-lo-á ao deserto, conduzido por um homem preparado para isso e o bode carregará sobre si todas as faltas deles para uma região desolada” (Lv 16,21s).

O servo de Deus é o verdadeiro bode expiatório que tira do mundo o pecado de todos (cf. Jo 1,29), o conjunto de pecado-desgraça que pesa sobre a comunidade. A expressão hebraica het “pecado” designa uma situação de culpa pesada, que é maior do que os atos isolados e leva à morte (cf. Sl 51,7).

No texto hebraico (M, contra Q e LXX), o servo ainda tem uma atividade: a intercessão na vida e ainda depois da morte. Ele “intercede em favor dos pecadores (lit. transgressores)”. A palavra hebraica tem o sentido de “intervir” (cf. Jr 36,25) Jeremias confessa de ter feito intercedido a Javé também por seus inimigos (Jr 15,11). O servo de Javé não só “intercedia em favor dos pecadores” (53,12), como Moisés fez (Ex 32,11-14), mas “derramou a sua vida até a morte” (53,12).

Para os primeiros cristãos, este canto foi um texto-chave para a evangelização (cf. At 8,30-35), porque em muitos detalhes se assemelha à paixão, morte e ressurreição de Cristo. Ao que parece, foi o próprio Jesus que combinou os conceitos de Messias (2Sm 7; Sl 2) e de Filho do Homem (Dn 7,13s) com o sofrimento do Servo de Deus (cf. Mc 8,29-31 etc.); não é um messias belo e guerreiro (cf. Sl 45), mas um “homem coberto de dores” (v. 3) que “veio para servir e dar a sua vida em resgate de muitos” (Mc 10,45) e derramar seu próprio sangue (não o dos outros) “para remissão dos pecados” (Mt 26,28).

(Literatura: Werner Grimm/Kurt Dittert. Deuterojesaja, Deutung – Wirkung – Gegenwart, Stuttgart 1990)

2ª leitura: Hb 4,14-16; 5,7-9

Na 2ª leitura, o autor anônimo da carta aos Hebreus chama Jesus de “sumo sacerdote” (v. 14; 2,17). É o início da exposição do seu tema central: o sacerdócio de Cristo (4,14-7,28). Nenhum outro escrito do NT chama Jesus de sacerdote, porque o sacerdócio era hereditário (descendentes de Aarão), e Jesus não era de uma tribo sacerdotal (Levi) era da tribo de Judá.

Temos um sumo sacerdote eminente, que entrou no céu, Jesus, o Filho de Deus. Por isso, permaneçamos firmes na fé que professamos (4,14).

Jesus, “na sua vida terrestre” (5,7), não pertencia à classe dos sacerdotes, era operário e depois visto como profeta e mestre (cf. Mc 6,4.15) ou messias-Cristo (Mc 8,29p). Ao final foi condenado pelo sumo sacerdote em ofício, Caifás, chefe do sinédrio (Suprema Tribunal) em Jerusalém (Lc 3,2; Mc 14,60-64p; Jo 18,13.24).

Na época da redação de Hb (cerca de 90 d.C.), não havia mais um culto no templo de Jerusalém nem mais sacerdotes para oferecer sacrifícios. O templo foi destruído pelos romanos em 70 d.C. e nunca mais reconstruído (hoje, um santuário muçulmano está neste exato lugar).

O autor da carta, porém, sustenta que “temos um sumo sacerdote eminente, que entrou no céu, Jesus, o Filho de Deus” (4,14). Jesus nunca entrou no espaço mais sagrado (“santíssimo”) do interior do templo, onde só o sumo sacerdote entrava uma vez por ano, com sangue alheio (de animais) no dia da expiação (9,7; cf. Lv 16), mas Jesus entrou no céu com seu próprio sangue (9,11-12.24). Por isso, estando mais na presença de Deus, seu sacrifício e sua intercessão são muito mais eficazes do que os antigos sacrifícios no templo, e nós “permaneçamos firmes na fé que professamos” (v. 14).

Com efeito, temos um sumo sacerdote capaz de se compadecer de nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado. Aproximemo-nos então, com toda a confiança, do trono da graça, para conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de um auxílio no momento oportuno (4,15-16).

O autor quer nós dar esperança: com a vinda de Jesus, a palavra de Deus se revela como amor e não como condenação (cf. Jo 3,15-16; 1Jo 4,8.16-18). Em Jesus, a Palavra de Deus tornou-se uma palavra de misericórdia, “capaz de compadecer das nossas fraquezas, por ele mesmo foi provado em tudo como nós com exceção do pecado” (v. 15). O medo do juízo final, o temor do poder daquele que está sentado no trono de onde sai um rio de fogo (cf. Dn 7,9-10; Ap 20,11-15), transforma-se em confiança de conseguir “misericórdia … e auxílio no momento oportuno”.

No AT, desde a teofania (aparição de Deus) de Ex 34,6, a compaixão (misericórdia) é um dos atributos clássicos de Deus (cf. Sl 103; Jr 31,20 etc.). Como homem, Jesus encarna a compaixão divina. Jesus conheceu as fraquezas humanas na própria pele. Como qualquer outro ser humano, ele foi tentado, mas não pecou. “Foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (v.15b; cf. Jo 8,46 em contraste com 1Rs 8,46). Na doutrina católica, só existem duas pessoas que nunca pecaram: Jesus e Maria.

“Aproximemo-nos então, com toda confiança do trono da graça” (cf. 7,25; 10,22; 12,22). O “tribunal da graça” é um que não condena, mas absolve e indulta. Depois que Cristo sentou-se no trono de Deus, este não constitui mais para os crentes um lugar do qual seria perigoso se aproximar (cf. Is 6,1-5; Ex 19,21): aliás, tronou-se “trono da graça” (Hb 4,16), pois Cristo é nosso irmão, que conhece por experiência própria a nossa situação de fraqueza e está aí para nos ajudar (Vanhoye, p. 62).

Cristo, nos dias de sua vida terrestre, dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte. E foi atendido, por causa de sua entrega a Deus. Mesmo sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que ele sofreu (5,7-8).

Aqui o autor descreve de forma mais precisa o caminho da humildade e solidariedade humana que conduziu Jesus ao sacerdócio. Evoca a paixão de Cristo. Apesar de Jesus ser o messias, “Filho” (v. 8) de Deus, “dirigiu (lit.: ofereceu, apresentou) preces e súplicas com forte clamor e lágrimas” (cf. sua agonia no monte das Oliveiras em Lc 22,44p e seus gritos na cruz em Mc 15,34.37). Nesta situação, realmente estava “cercado de fraqueza” (v. 2), situação que todo sumo sacerdote deve aceitar para tornar-se capaz de verdadeira compaixão.

Mas o papel do sumo sacerdote não consiste simplesmente em assumir sua parte da miséria humana. Consiste sobretudo em transformar essa situação por meio de uma oferenda de sacrifício. Esse aspecto de oferenda não falta no caso de Cristo, da mesma forma que a transformação operada: Cristo “apresentou” e “foi atendido” (Vanhoye, p. 63).

O que Jesus apresentou? Suas “preces e súplicas com forte clamor e lágrimas”, todos os dramáticos acontecimentos no Calvário que colocavam em jogo a sua vida e sua obra (cf. Mt 27,40) transformaram-se em matéria de oferenda. Sem nos dizer o conteúdo dessas preces, o autor de Hb as apresenta como autêntica oração dirigida “àquele que era capaz de salvá-lo da morte”. A oferenda do Filho agradou ao Pai e o curso dos acontecimentos foi transformado, mas de forma paradoxal: foi morrendo que Cristo triunfou sobre a morte (cf. 2,9.14; At 2,24s; Jo 12,27s; 13,31s; 17,5; Fl 2,9-11). O acontecimento não foi transformado por fora por uma intervenção divina e miraculosa, mas por dentro, devido a “obediência” e “entrega” (lit. submissão, ou seja, temor de Deus) de Cristo à ação transformadora de Deus.

A prece de Jesus em agonia desembocou na união das duas vontades (Mt 26,42p; cf. Hb 10,9-10) e resultou numa obra comum: o Pai atende o Filho, ao mesmo tempo que o Filho cumpre a vontade do Pai. Assim o autor de Hb descreve a Paixão de dois modos aparentemente contraditórios, mas na verdade complementares: como uma súplica atendida e como dolorosa obediência. Cristo apresentou “súplicas… e foi atendido” e, ao mesmo tempo, “apreendeu… a obediência pelo que sofreu”. Mesmo sendo Filho, agiu como Servo obediente.

Assim o autor revela o mistério de Cristo, que é fonte e luz para nossa oração também. Fé é confiança e obediência a Deus, à sua palavra, e “entrega a Deus”.

Mas, na consumação de sua vida, tornou-se causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem (5,9).

A paixão, vista como sublime prece e mais sublime ato de obediência, ou seja, a “entrega” da sua vida é o sacrifício redentor. Aqui temos o resultado da oferenda obediente de Jesus: ele faz dele um “sumo sacerdote na ordem de Melquisedec” (v. 10, omitido pela liturgia de hoje). Pela sua solidariedade humilde, Cristo chegou ao sacerdócio.

Não houve somente transformação do acontecimento (em vez do escândalo da cruz, o triunfo da ressurreição), mas, no seio do acontecimento, a própria humanidade de Jesus foi transformada também. Cristo, “na consumação de sua vida” (lit. levado a perfeição, cf. 2,10; Jo 19,30), “tornou-se causa de salvação eterna para todos que lhe obedecem”, ou seja, tornou-se o mediador perfeito.

Cristo levou além de qualquer limite sua obediência ao Pai e sua solidariedade para com seus irmãos; assim, ele levou sua relação com Deus e sua relação com os homens a uma perfeição insuperável, selando a união dessas duas relações no mais profundo do seu ser (Vanhoye, p. 64).

Evangelho: Jo 18,1-19,42

Enquanto no Domingo de Ramos o relato da paixão é lido conforme o evangelho de cada ano (Mt, Mc ou Lc), na Sexta-feira Santa é sempre a Paixão segundo João. Cada um dos evangelistas apresenta um ângulo diferente, dependendo de sua comunidade e dos desafios da sua época. Assim, os evangelhos se completam e enriquecem nosso conhecimento de Jesus. A paixão narrada no quarto evangelho destaca o lado divino de Jesus. O evangelista usava um relato mais antigo da paixão, mas bastante independente dos outros evangelhos.

O primeiro que escreveu um evangelho foi Mc cerca de 70 d.C. (40 anos depois da morte de Jesus). Foi durante da Guerra Judaica (judeus contra romanos), por isso não queria apresentar um messias guerreiro, nacionalista e triunfalista, como os judeus esperavam. Em Mc, Jesus assume o sofrimento humano e morre abandonado na cruz; suas últimas palavras são do Sl 22,2 (Salmo responsorial do domingo de Ramos): “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Mt 26,46 segue Mc. Lc, porem, mostra que Jesus continua ser o salvador misericordioso na cruz rezando pelos inimigos (Lc 23,34; cf. 6,28), prometendo o paraíso ao pecador arrependido na cruz (Lc 23, 43), e morre com palavras mais confiantes de outro salmo: “Pai, em tuas mãos, entrego meu espírito” (Lc 23,46; citando Sl 31,6, o Salmo responsorial de hoje).

O evangelho de Jo foi escrito por último, no final do século I, quando “os judeus” (as autoridades dos judeus do ano 90 d.C.) excluíram os cristãos da sua religião (cf. Jo 9,22; 12,42; 16,2; antes os cristãos ainda faziam parte como um ramo do judaísmo). Jo quer mostrar que Jesus não é apenas homem, mas também divino e existe desde sempre unido ao Pai (cf. Jo 1,1-18; em 10,30 afirma: “Eu e o Pai somos um”; cf. 20,28). Esta visão influi no relato da paixão: ela não é um acidente da história, mas o desígnio de Deus, o caminho para glória, em que Jesus é soberano, não vítima inconsciente e passiva. Enquanto Mc mostrou o lado humano de Jesus, Jo apresenta o lado divino.

Jesus saiu com os discípulos para o outro lado da torrente do Cedron. Havia aí um jardim, onde ele entrou com os discípulos. Também Judas, o traidor, conhecia o lugar, porque Jesus costumava reunir-se aí com os seus discípulos. Judas levou consigo um destacamento de soldados e alguns guardas dos sumos sacerdotes e fariseus, e chegou ali com lanternas, tochas e armas. Então Jesus, consciente de tudo o que ia acontecer, saiu ao encontro deles e disse: “A quem procurais?” Responderam: “A Jesus, o nazareno”. Ele disse: “Sou eu”. Judas, o traidor, estava junto com eles. Quando Jesus disse: “Sou eu”, eles recuaram e caíram por terra (18,1-6).

Depois do seu longo discurso de despedida na ceia (caps. 13-17), Jesus sai da cidade e vai a um “jardim” que fica noutro lado da torrente do Cedron, isto é no monte das Oliveiras. Judas, que se tinha afastado da ceia em 13,30, conhece o lugar e leva os “destacamento de soldados” (=  500 homens!) e alguns guardas dos sumos sacerdotes e fariseus” para prender Jesus. Tudo isso para mostrar o poder do mundo. Mas o verdadeiro dono da história é Jesus.

Em Jo, não é Judas quem precisa indicar o mestre com o beijo, mas o próprio Jesus, “consciente de tudo o que ia acontecer, saiu ao encontro deles” (18,4). Jesus mesmo se identifica e quando diz “Sou eu”, os soldados e guardas “caíram por terra” (18,6; cf. Sl 35,4; 27,2). É por que “Eu sou” (cf. 8,24.57) alude ao significado do nome divino, Javé (Yhwh, traduzido em Ex 3,14: “EU SOU aquele que sou”). Diante da divindade de Jesus, os soldados caem involuntariamente por terra (como que num gesto de adoração, a prostração). O motivo que a palavra do rei faz os inimigos caírem no chão é conhecido no Antiguidade (Ramsés, Nero) e caracteriza o rei como ser divino (cf. Tomé em 20,28).

De novo lhes perguntou: “A quem procurais?” Eles responderam: “A Jesus, o nazareno”. Jesus respondeu: “Já vos disse que sou eu. Se é a mim que procurais, então deixai que estes se retirem”. Assim se realizava a palavra que Jesus tinha dito: “Não perdi nenhum daqueles que me confiaste” (18,7-9).

Toda tropa dos soldados não podia prender Jesus, se ele não deixasse (cf. 10,17s). Mostrando-se bom pastor (cap. 10) que não perde ninguém que o Pai lhe deu, Jesus cuida ainda que os outros discípulos possam sair ilesos (18,9; cf. 6,39; 10,28; 17,12).

Simão Pedro, que trazia uma espada consigo, puxou dela e feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha direita. O nome do servo era Malco. Então Jesus disse a Pedro: “Guarda a tua espada na bainha. Não vou beber o cálice que o Pai me deu?” (18,10-11)

Jo acrescenta uns detalhes aos outros evangelhos: o discípulo que quer defender Jesus (Mc 14,47p) é “Pedro”; o nome do servo do sumo sacerdote a quem ele cortou a orelha direita é “Malco” (18,10; cf. Lc 23,50p). A mensagem da cena, porém, é que Jesus renuncia a todos os meios de poder e entrega-se voluntariamente. Por isso, repreende Pedro (cf. Mt 26,51-53; Lc 22,51; Mc 8,32-33p). Jo menciona ainda o “cálice” que faltou na oração de 12,27s (cf. Mc 14,36p).

Então, os soldados, o comandante e os guardas dos judeus prenderam Jesus e o amarraram. Conduziram-no primeiro a Anás, que era o sogro de Caifás, o sumo sacerdote naquele ano. Foi Caifás que deu aos judeus o conselho: “É preferível que um só morra pelo povo” (18,12-14).

Para destacar o sentido da morte de Jesus, Jo lembra o que Caifás havia dito ao conselho supremo (sinédrio) em 11,50-52: “É preferível que um só morra pelo povo” (cf. evangelho de sábado passado). Caifás era sumo sacerdote em ofício de 18 a 36 d.C.

Mas em Jo, Jesus é interrogado primeiro por Anás, o sogro poderoso de Caifás. Anás tinha sido o sumo sacerdote de 6 a 15 d.C. e conservava o título honorífico (cf. vv. 15-22) e toda influência pessoal e familiar.

Simão Pedro e um outro discípulo seguiam Jesus. Esse discípulo era conhecido do sumo sacerdote e entrou com Jesus no pátio do sumo sacerdote. Pedro ficou fora, perto da porta. Então o outro discípulo, que era conhecido do sumo sacerdote, saiu, conversou com a encarregada da porta e levou Pedro para dentro. A criada que guardava a porta disse a Pedro: “Não pertences também tu aos discípulos desse homem?” Ele respondeu: “Não”. Os empregados e os guardas fizeram uma fogueira e estavam-se aquecendo, pois fazia frio. Pedro ficou com eles, aquecendo-se (18,15-18).

Pedro é introduzido ao pátio através de “outro discípulo” (talvez “aquele que Jesus amava”, o autor anônimo e fundador da comunidade, cf. 1,35-40; 13,23-25;19,26s.35; 20,2-10; 21,7.10.20-24; cf. comentário de terça-feira). Lá, no pátio, Pedro nega pela primeira vez ser discípulo de Jesus (18,15-17.26s), sua coragem de antes (13,36-38; 18,10) já não é a mesma diante de uma mulher.

Entretanto, o sumo sacerdote interrogou Jesus a respeito de seus discípulos e de seu ensinamento. Jesus lhe respondeu: “Eu falei às claras ao mundo. Ensinei sempre na sinagoga e no Templo, onde todos os judeus se reúnem. Nada falei às escondidas. Por que me interrogas? Pergunta aos que ouviram o que falei; eles sabem o que eu disse.” Quando Jesus falou isso, um dos guardas que ali estava deu-lhe uma bofetada, dizendo: “É assim que respondes ao sumo sacerdote?” Respondeu-lhe Jesus: “Se respondi mal, mostra em quê; mas, se falei bem, por que me bates?” (18,12-23).

Entretanto, Jesus não ficou calado no interrogatório. Ele questiona esse tribunal extraordinário e escondido à noite (cf. Mc 14,48s): “Eu falei às claras ao mundo … Porque me interrogas?” (18,20s), e desafia o guarda que bateu nele: “Porque me bates?” (18,23). Não mostrou outra face (Mt 5,39p), mas questiona levando o conflito a outro nível; quem usa de violência demostra que não tem argumento.

Então, Anás enviou Jesus amarrado para Caifás, o sumo sacerdote. Não és tu também um dos discípulos dele? Pedro negou: “Não!” Simão Pedro continuava lá, em pé, aquecendo-se. Disseram-lhe: “Não és tu, também, um dos discípulos dele?” Pedro negou: “Não!” Então um dos empregados do sumo sacerdote, parente daquele a quem Pedro tinha cortado a orelha, disse: “Será que não te vi no jardim com ele?” Novamente Pedro negou. E na mesma hora, o galo cantou (18,24-27).

Nos evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc), a tríplice negação de Pedro é relatada de uma só vez. Em Jo está dividida (vv. 17.25-27). A lembrança da ação bélica de Pedro no jardim parece agora ironia. Suas palavras de “dar a vida” por Jesus se revelam vazias (13,37s).

O quarto evangelista inseriu a interrogação por Anás (vv. 19-24), porque não pode cancelar o interrogatório esperado diante dos judeus. Segundo 12,37, Jesus nem queria mais falar a eles, porque já falou tudo. Mas o interesse do evangelista está no diálogo com Pilatos.

De Caifás, levaram Jesus ao palácio do governador. Era de manhã cedo. Eles mesmos não entraram no palácio, para não ficarem impuros e poderem comer a páscoa. Então Pilatos saiu ao encontro deles e disse: “Que acusação apresentais contra este homem?” Eles responderam: “Se não fosse malfeitor, não o teríamos entregue a ti!” Pilatos disse: “Tomai-o vós mesmos e julgai-o de acordo com a vossa lei.” Os judeus lhe responderam: “Nós não podemos condenar ninguém à morte”. Assim se realizava o que Jesus tinha dito, significando de que morte havia de morrer (18,28-32).

Jesus é levado de Anás para Caifás (18,23), e depois sem mais ao “palácio do governador Pilatos … de manhã cedo”. Os judeus não entravam na casa de um pagão (18,28; cf. Mt 8,8; At 11,3), então Pilatos “saiu ao encontro deles”. Não queria julgar Jesus, mas os judeus não podiam condenar ninguém à morte. Isto era privilégio reservado ao governador romano. A crucificação era considerada a pena típica dos romanos. Herodes a evitava para não provocar os judeus, mas os romanos a aplicaram para escravos e subversivos. Se Jesus é condenado pelos romanos, então significa sua crucificação. Em 3,14 e 12,32s, ele já falava disso, mas em outros termos: “ser elevado, glorificado”. Justamente por este suplício mais miserável, Jesus voltará na glória do Pai.

Então Pilatos entrou de novo no palácio, chamou Jesus e perguntou-lhe: “Tu és o rei dos judeus?” Jesus respondeu: “Estás dizendo isto por ti mesmo, ou outros te disseram isto de mim?” Pilatos falou: “Por acaso, sou judeu? O teu povo e os sumos sacerdotes te entregaram a mim. Que fizeste?”. Jesus respondeu: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui. “Pilatos disse a Jesus: “Então tu és rei?” Jesus respondeu: “Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz.” Pilatos disse a Jesus: “O que é a verdade?”

Ao dizer isso, Pilatos saiu ao encontro dos judeus, e disse-lhes: “Eu não encontro nenhuma culpa nele. Mas existe entre vós um costume, que pela Páscoa eu vos solte um preso. Quereis que vos solte o rei dos Judeus?” Então, começaram a gritar de novo: “Este não, mas Barrabás!” Barrabás era um bandido.

Então Pilatos mandou flagelar Jesus. Os soldados teceram uma coroa de espinhos e colocaram-na na cabeça de Jesus. Vestiram-no com um manto vermelho, aproximavam-se dele e diziam: “Viva o rei dos judeus!” E davam-lhe bofetadas.

Pilatos saiu de novo e disse aos judeus: “Olhai, eu o trago aqui fora, diante de vós, para que saibais que não encontro nele crime algum.” Então Jesus veio para fora, trazendo a coroa de espinhos e o manto vermelho. Pilatos disse-lhes: “Eis o homem!”

Quando viram Jesus, os sumos sacerdotes e os guardas começaram a gritar: “Crucifica-o! Crucifica-o!” Pilatos respondeu: “Levai-o vós mesmos para o crucificar, pois eu não encontro nele crime algum.” Os judeus responderam: “Nós temos uma Lei, e, segundo esta Lei, ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus”. Ao ouvir estas palavras, Pilatos ficou com mais medo ainda. Entrou outra vez no palácio e perguntou a Jesus: “De onde és tu?” Jesus ficou calado. Então Pilatos disse: “Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar?” Jesus respondeu: “Tu não terias autoridade alguma sobre mim, se ela não te fosse dada do alto. Quem me entregou a ti, portanto, tem culpa maior.”

Por causa disso, Pilatos procurava soltar Jesus. Mas os judeus gritavam: “Se soltas este homem, não és amigo de César. Todo aquele que se faz rei, declara-se contra César”. Ouvindo estas palavras, Pilatos trouxe Jesus para fora e sentou-se no tribunal, no lugar chamado “Pavimento”, em hebraico “Gábata”. Era o dia da preparação da Páscoa, por volta do meio-dia. Pilatos disse aos judeus: “Eis o vosso rei!” Eles, porém, gritavam: “Fora! Fora! Crucifica-o!” Pilatos disse: “Hei de crucificar o vosso rei?” Os sumos sacerdotes responderam: “Não temos outro rei senão César” (18,33-19,15).

Em Jo, várias vezes Pilatos “entrou” (para falar com Jesus) e “saiu” (para falar com os judeus). Jo revela a farsa: os “judeus”, ou seja, as autoridades judaicas, negam cada vez mais sua própria identidade para conseguir seu objetivo de matar Jesus (cf. 5,18), até eles disserem: “Não temos outro rei senão César” (19,15; na verdade, Javé Deus é o rei de Israel (cf. 1Sm 8,7; Sl 93,95; 96-99), enquanto em 1,47, o “verdadeiro israelita (não diz: judeu)” acredita em Jesus.

Jo usa o termo “judeus” de várias maneiras, pode designar o povo em geral, no sentido positivo (cf. 4,22; 11,45 etc.), por outro lado designa os adversários de Jesus que são identificados com os “fariseus” (é o mesmo grupo no cap. 9). Depois da destruição do templo de Jerusalém em 70.d.C., não havia mais sacerdotes para realizar os sacrifícios e os fariseus permaneceram como grupo dominante que impuseram sua versão do judaísmo agora a outros grupos divergentes, entre eles os cristãos. O evangelista não é antissemita, quando ele usa “judeus” de forma negativa, é para designar as lideranças fariseus da época do evangelho que excluíram os cristãos (por decreto no sínodo de Jâmnia em 90 d.C.; cf. 9,22.34; 12,42). Jesus, sua família e seus discípulos, o próprio evangelista e a maioria da sua comunidade, todos eram judeus. Trata-se, pois, de um conflito da época no interior do próprio judaísmo e não pode ser usado para uma posição racista contra os judeus (como fez o nazismo alemão). A culpa na morte de Jesus “não pode ser indistintamente ser imputada a todos os judeus que então viviam nem aos de hoje” (Concílio Vaticano II, NA 4, § 1591).

Nos evangelhos sinóticos, Jesus se nega a falar com Pilatos (Mc 15,2-5p; cf. Is 53,7), mas em Jo há vários diálogos com o governador. Neles, Jesus se mostra superior, ele é o “rei” de “verdade”, testemunha da verdade que é de Deus (cf. 14,6). Com sua pergunta, Pilatos mostra não conhecer a verdade (cf. 18,37s); agora tem medo (19,8), apesar de declarar três vezes a inocência de Jesus, deixa-se pressionar. Solta Barrabás, um “ladrão” (pode significar também que lutava contra os romanos de forma violenta, cf. Mc 15,7), e condena Jesus.

Na sua teologia dualista, Jo quer distinguir dois níveis de reinados: o reino exterior deste mundo que se alimenta do poder político, econômico e militar, e o reino verdadeiro cuja fonte é a verdade divina, motivo pelo qual se deve obedecer e segui-lo. O poder de Deus não se impõe através de violência, opressão e submissão, mas surge através da verdade, luz, vida e amor.

Os presos não tinham direito de nada. Quem tinha direitos como cidadão romano, não foi crucificado (cf. Paulo em At 22,22-29). Os soldados fazem reverência a realeza de Jesus com “coroa … manto vermelho”, mas de maneira falsa e sádica. A flagelação era comum antes da crucificação. Pilatos a antecipa, talvez apelando à misericórdia dos judeus. Apresenta Jesus não como rei, mas como ser humano sofrido: “Eis o homem”, uma alusão ao Servo de Javé, “homem de dores” (cf. Is 52,14; 53,3) ou a Adão (= “homem, ser humano” em hebraico; já que Jesus carrega o pecado do mundo, da humanidade; cf. 1,29) ou ao “Filho de homem” (cf. Dn 7,13s)?

“Era o dia da preparação da Páscoa por volta do meio dia” (19,14). Em Mc 15,25, Jesus foi crucificado às nove horas da manhã; mas em Jo, Jesus é sacrificado na mesma hora em que os cordeiros estão sendo imolados no templo (cf. 1,29), ao cair da tarde (cf. Ex 12,6; Jo 19,14.42).

Então Pilatos entregou Jesus para ser crucificado, e eles o levaram. Ali o crucificaram, com outros dois. Jesus tomou a cruz sobre sie saiu para o lugar chamado “Calvário”, em hebraico “Gólgota”. Ali o crucificaram, com outros dois: um de cada lado, e Jesus no meio. Pilatos mandou ainda escrever um letreiro e colocá-lo na cruz; nele estava escrito: “Jesus o Nazareno, o Rei dos Judeus”. Muitos judeus puderam ver o letreiro, porque o lugar em que Jesus foi crucificado ficava perto da cidade. O letreiro estava escrito em hebraico, latim e grego. Então os sumos sacerdotes dos judeus disseram a Pilatos: “Não escrevas: O Rei dos Judeus, mas sim o que ele disse: Eu sou o Rei dos judeus.” Pilatos respondeu: “O que escrevi, está escrito”.

Depois que crucificaram Jesus, os soldados repartiram a sua roupa em quatro partes, uma parte para cada soldado. Quanto à túnica, esta era tecida sem costura, em peça única de alto a baixo. Disseram então entre si: “Não vamos dividir a túnica. Tiremos a sorte para ver de quem será”. Assim se cumpria a Escritura que diz: “Repartiram entre si as minhas veste se lançaram sorte sobre a minha túnica”. Assim procederam os soldados (19,16-24).

Em Jo, “Pilatos entregou Jesus para ser crucificado, e eles o levaram”, quem são eles? Parece que são os judeus, mas a execução era assunto exclusivo dos romanos. Os autores do NT querem atenuar a culpa dos romanos e de Pilatos, e atribuem “a culpa maior” aos judeus (19,11). Devemos entender o texto pelo contexto histórico: no início, os cristãos sofreram perseguição por parte dos judeus (p. ex. Saulo) e foram excluídos da sinagoga (cf. 9,22; 12,42; 16,2), enquanto gregos, romanos e outros pagãos se converteram ao cristianismo. Mas a história não isenta Pilatos que era um homem cruel (segundo outras fontes) e também não isenta os cristãos de épocas posteriores por terem perseguidos o povo judeu. A culpa na morte de Jesus não é do povo judeu, mas de algumas autoridades da época e também de nós (!), porque Jesus morreu por nossos pecados (cf. CIC 598).

Em Jo, não se menciona Simão de Cireneu. Jesus carrega a cruz sozinho! Como nos outros evangelhos, a crueldade da crucificação não se descreve em detalhes. Era a pena de morte mais horrível da época. Cidadãos romanos não podiam ser crucificados, somente escravos e inimigos de estado. Mc 15,27p chama os outros dois “ladrões”, Lc 23,33 “malfeitores” (cf. Is 53,12); eram provavelmente terroristas zelotas como Barrabás; Jo é neutro, só fala de “outros dois” (v. 18), mas destaca “um de cada lado, e Jesus no meio” (v. 18), alusão ao lugar de honra para o “rei” (cf. os próximos vv. e 18,33-38a; 19,6.14s).

No letreiro da cruz “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus” (I.N.R.I.), Pilatos diz a verdade, mais do que a acusação dos “judeus” (19,19-22). Pilatos queria humilhar os judeus (como fez outras vezes) e amedrontar qualquer pensamento subversivo contra os romanos. Mas inconscientemente (cf. 11,51), Pilatos proclama o condenado “rei”, ainda em alcance internacional de três línguas (cf. 4,42: “salvador do mundo”).

Como nos outros evangelhos, os soldados cumprem a profecia de Sl 22,8, repartindo as vestes do condenado conforme o costume. Jo descreve a túnica, “esta era tecida sem costura, em peça única de alto a baixo” (v. 24). Há interpretações simbólicas desta túnica, p. ex. Jesus como verdadeiro sumo sacerdote (cf. Ex 28; 39), ou a unidade da Igreja que não devia sofrer divisão (cf. 17,21-23), mas são suposições.

Perto da cruz de Jesus, estavam de pé a sua mãe, a irmã da sua mãe, Maria de Cléofas, e Maria Madalena. Jesus, ao ver sua mãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava, disse à mãe: “Mulher, este é o teu filho”. Depois disse ao discípulo: “Esta é a tua mãe”. Daquela hora em diante, o discípulo a acolheu consigo (19,25-27).

Além de mulheres da Galileia “olhando de longe” (Mc 15,40-41p), só em Jo há parentes e discípulos perto da cruz de Jesus, as três Marias: “sua mãe” (sem nome como em 2,1-12), “a irmã da sua mãe, Maria de Cléofas” (poderiam ser duas pessoas distintas; cf. Lc 24,18) e “Maria Madalena” (v. 25). Como nas bodas de Caná (2,4), Jesus trata Maria como “mulher”, mas desta vez sua “hora” tinha chegado.

Em termos sociais, o filho mais velho assumiu os negócios da família, quando o pai morreu. José já faltou em Jo 2. Agora, antes de morrer, Jesus assegura o destino da mãe (viúva), recomenda-a a um amigo leal. Pode ser um indício de que Maria não teve outros filhos que poderiam cuidar da mãe após a morte de Jesus (cf. os “irmãos de Jesus” em 7,3.5.10 que podem ser outros parentes). Maria e o “discípulo amado” representam a Igreja, a nova família fecunda que virá novo povo de Deus (cf. 19,25-27), baseada não no parentesco do sangue, mas na palavra de Deus (cf. 1,12s). Com isso, o discípulo amado torna-se herdeiro-sucessor de Jesus! Mas o que significa isso, só se esclarece em 21,20-24.

Depois disso, Jesus, sabendo que tudo estava consumado, e para que a Escritura se cumprisse até o fim, disse: “Tenho sede”. Havia ali uma jarra cheia de vinagre. Amarraram numa vara uma esponja embebida de vinagre e levaram-na à boca de Jesus. Ele tomou o vinagre e disse: “Tudo está consumado”. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito (19,28-30).

Jo quer mostrar o lado divino de Jesus. Neste, Jesus é soberano, não tem medo, nem está abandonado e nem parece sentir todas essas dores. O vinagre misturado com água era bebida barata para matar a sede. Jesus diz: “Tenho sede”, mas só “para que a Escritura se cumprisse até o fim” (19,28; Sl 22,16; 69,22). Não sentiu sede de verdade, era só como um ator que finge o sofrimento? Assim se pensava no século II numa heresia (doutrina errada) chamada de “docetismo” (doutrino de aparência), segundo a qual o Filho de Deus não podia sofrer de fato, porque Deus não sofre (não morre, não muda, é eterno); o sofrimento na cruz seria só ilusão, “aparência”. Jo, porém, não nega o sofrimento da carne de Jesus (cf. 1Jo 4,1-3; 5,6-8); ele quer dizer que Jesus sabe (como em 13,1; 18,4) que é cumprimento da Escritura e por isso o provoca. O último cumprimento da sua obra é morrer (3,16). Sua morte não é um acidente, mas dom (cf. 10,18), vontade do Pai e corresponde à Palavra de Deus.

“Jesus, sabendo que tudo estava consumado” (cf. 13,1; 18,4), sabe que está completando sua obra, a missão, para a qual o Pai o enviou (cf. 14,31). Como o trabalho da criação terminou em Gn 2,1-3, é agora que termina o trabalho da redenção (cf. 5,17): “Tudo está consumado”. Jesus não morre desesperado com um grito (Mc 15,34.37 citando Sl 22,2), mas descansa da obra, “inclinando a cabeça, entregou o espírito” (19,30; cf. Is 53,12; At 15,26). Depois, em 20,22, o Espirito Santo será dado aos apóstolos.

A última palavra tem semelhança com Lc 23,46 (Sl 31,6), mas lembra o fim da obra da criação (Gn 2,1-2). Seu trabalho (cf. 5,17) agora terminou, pode descansar (no sábado) em paz. As últimas palavras de Jesus em cada evangelho não são reportagem histórica, mas uma síntese da meditação e reflexão sobre o Cristo (cristologia) conforme o conceito de cada evangelista.

Jo não sabe nada (ou não conta) de circunstâncias sobrenaturais (Mc 15,33p.38p; Mt 27,51-53) que acompanham a hora da morte de Jesus, nem da profissão de fé do centurião (cf. Mc 15,39p).

Era o dia da preparação para a Páscoa. Os judeus queriam evitar que os corpos ficassem na cruz durante o sábado, porque aquele sábado era dia de festa solene. Então pediram a Pilatos que mandasse quebrar as pernas aos crucificados e os tirasse da cruz. Os soldados foram e quebraram as pernas de um e depois do outro que foram crucificados com Jesus. Ao se aproximarem de Jesus, e vendo que já estava morto, não lhe quebraram as pernas; mas um soldado abriu-lhe o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água. Aquele que viu, dá testemunho e seu testemunho é verdadeiro; e ele sabe que fala a verdade, para que vós também acrediteis. Isso aconteceu para que se cumprisse a Escritura, que diz: “Não quebrarão nenhum dos seus ossos”. E outra Escritura ainda diz: “Olharão para aquele que transpassaram” (19,31-37).

Frequentemente, os corpos dos condenados ficavam expostos na cruz por vários dias. Mas para evitar escândalos (cf. Dt 21,22s) ou tumultos na festa da Páscoa que se aproximava, os soldados aceleraram a morte dos outros dois crucificados quebrando suas pernas para morrerem logo de asfixia. Jesus, porém, enfraquecido pela flagelação anterior (19,1), já tinha morrido; então um soldado verificou a morte com uma lança. Do lado de Jesus “saiu logo sangue e água” (19,34). Isto quer dizer que de fato morreu (contra os docetistas, cf. 1,14; 1Jo 5,6) e pode ser correta observação médica (sangue e um líquido claro dos pulmões). O discípulo amado, antes mencionado em v. 26s, testemunhou tudo isso.

De certo modo, Jo deve ter pensado na dupla natureza de Jesus: o sangue testemunha sua humanidade (a carne, cf. 1,14), a água significa o Espirito Santo, dom de Deus (4,14; 7,37-39). Mas também podemos ver neste detalhe uma alusão aos sacramentos da Igreja: água = batismo (3,5; 7,39); sangue = eucaristia (6,53-56). O Corpo de Cristo é o novo Templo, a Igreja (cf. 2,19-21; Cl 1,18; Ef 1,22s; 5,23; cf. 1Cor 3,16s; 6,19). Assim a água saindo do lado desse novo templo é a fonte da salvação (Ez 47; cf. Jo 2,21). A Igreja (com seus sacramentos) é a nova Eva saindo do lado do novo Adão adormecido (cf. Gn 2,21s), de Cristo morto. A citação da “outra escritura”, Zc 12,10, combina com isso: “Olharão para aquele que transpassaram.”

Também se cumpre a Escritura sobre o cordeiro pascal: “Não se quebrarão nenhum dos seus ossos” (19,36; Ex 12,46; cf. Sl 34,20s). Já bem no início da narração, Jesus foi declarado “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (1,29.36). Jesus é o verdadeiro Cordeiro pascal (cf. 1Cor 5,7), assim em Jo, a morte de Jesus coincide com a hora exata da imolação dos cordeiros no templo “ao cair da tarde” (Ex 12,6; Jo 19,14.42).

Depois disso, José de Arimateia, que era discípulo de Jesus – mas às escondidas, por medo dos judeus – pediu a Pilatos para tirar o corpo de Jesus. Pilatos consentiu. Então José veio tirar o corpo de Jesus. Chegou também Nicodemos, o mesmo que antes tinha ido a Jesus de noite. Trouxe uns trinta quilos de perfume feito de mirra e aloés. Então tomaram o corpo de Jesus e envolveram-no, com os aromas, em faixas de linho, como os judeus costumam sepultar. No lugar onde Jesus foi crucificado, havia um jardim e, no jardim, um túmulo novo, onde ainda ninguém tinha sido sepultado. Por causa da preparação da Páscoa, e como o túmulo estava perto, foi ali que colocaram Jesus (vv. 38-42).

Os romanos costumavam deixar os cadáveres dos condenados na cruz a mercê dos urubus, cachorros e da decomposição. Se precisavam respeitar a religião da população, jogaram-nos em valas comuns. Mas em casos especiais, os corpos foram entregues a parentes ou conhecidos (como demostra um achado arqueológico de um crucificado enterrado no túmulo da família em Jerusalém).

Em Jo, José de Arimateia é “discípulo”, porém, “às escondidas, por medo dos judeus” (cf. 7,13; 9,22; 20,19), mas ele se arrisca. Tem acesso a Pilatos que concede o corpo de Jesus para receber uma sepultura digna num “túmulo novo no qual ninguém tinha sido colocado” (cf. Lc 23,53). Para isso, José recebe a ajuda de Nicodemos (cf. 3,1-21) que vem com 30 (!) quilos de perfume, quantidade digna de um rei dos judeus, rei ungido de Israel (cf. 12,3-8; 1,41.49). Envolvem-no em faixas de linho que serão deixadas atrás na ressurreição (cf. 20,5.7).

A paixão de Jesus começou e terminou num “jardim” (18,1; e o lugar do túmulo em 19,41). Pode ser uma alusão ao jardim Éden (Gn 3)? Maria Madalena confundirá o ressuscitado com um jardineiro (20,15), porque Jesus é o novo Adão (cf. 1Cor 15,21-22; Rm 5,12-20) de cujo lado adormecido saiu a esposa (igreja; cf. 19,34). Pilatos apresentou Jesus flagelado: “Eis o homem” (19,5), Adão significa homem, Jesus é “homem de dores” (Is 53,3), mas é assim que ele recupera o paraíso (cf. Is 53,10-12; Jo 1,29).

O site da CNBB comenta: Conhecer Jesus significa conhecer também o mistério da cruz e a grande mensagem que esse mistério nos traz: Deus amou tanto o mundo que lhe enviou seu Filho Unigênito, não para condenar o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele, e ele derramou o seu próprio sangue derramado na cruz, fazendo-se oferenda perfeita para expiação dos nossos pecados. Conhecer Jesus através do mistério da cruz significa tornar-se capaz de fazer-se também oferenda a Deus, amando até o fim, tornar-se uma perfeita oblação a Deus pela salvação da humanidade e, hoje, tornar-se oblação é antes de tudo tornar-se um missionário da vitória do Cristo sobre o pecado e a morte.

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