2 de Novembro de 2019, Sábado – Fiéis Defuntos: Quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos.

Missa dos Fieis defuntos (finados)

A nossa liturgia católica deixa um ampla variedade de textos bíblicos para se escolher nas missas neste dia (50 páginas no lecionário, mas no site da CNBB repetem-se apenas os textos de Todos os Santos!). Apresentamos aqui as leituras sugeridas na Liturgia diária da Editora Paulus (Missa 2).

Antes uma observação sobre a origem desta comemoração cuja a data coincide com Samhain, uma festa pagã: antes da chegada do inverno europeu (frio, neve, escuridão), os celtas comemoravam a colheita junto com seus ancestrais (mortos); acreditavam que nessa época as almas dos mortos retornavam a suas casas para visitar os familiares, para buscar alimento (daí o costume Halloween, hoje comercializado). Como em outros casos (por ex. Natal), a festa pagã não foi abolida, mas ganhou um novo sentido cristão.

Em Roma celebrava-se o dia de Todos os Santos (ancestrais espirituais) em 01º de novembro e surgiu a necessidade de um dia próprio para rezar por todos os outros falecidos dos quais não se sabe se estão no céu (a doutrina do purgatório se desenvolveu nesta época, baseando-se em 2Mc 43-45; Mt 12,32; 1Cor 3,13-15). Em 998, o abade Odilo de Cluny introduziu o dia 02 como dia próprio para todos os mosteiros beneditinos de onde se difundiu para toda população no ocidente. O nome oficial é “comemoração de todos os fiéis defuntos”. No oriente se reza pelos falecidos em vários dias durante o ano.

1ª leitura: Is 25,6a.7-9

Os caps. 24-27 são chamados “Grande Apocalipse de Isaías” porque pertencem a um gênero literário tardio (pós-exílio) formando uma escatologia ou descrição de um julgamento seguida da instauração de uma ordem definitiva. Retomando e aplicando concepções universalistas já difundidas nos profetas anteriores (Is 2,2-3; 56,6-8; 60,11-14; Zc 8,20; 14,16, etc.), o autor descreve a afluência dos povos a Jerusalém (cf. 2,1-5) como um imenso festim. A partir deste texto, a ideia de um festim messiânico tornou-se corrente no judaísmo e encontra-se no NT (Mt 22,2-10; Lc 14,14.16-24; Ap 19,9).

O Senhor dos exércitos dará neste monte, para todos os povos, um banquete de ricas iguarias. (v. 6).

O banquete real deve acontecer depois da entronização em 24,23 do “Senhor (Yhwh – Javé) dos exércitos”. Este termo (cf. 6,3.5; 2Sm 6,18; Sl 24,10; 46,8) não só se refere aos exércitos de Israel em ordem de batalha (cf. Jó 10,17; 1Sm 17,45s; Ex 12,51), mas também às constelações das estrelas (cf. Gn 2,1; Is 40,26) e finalmente a todos os elementos e poderes do universo.

O poder de convidar muitos é sinal de poderio e riqueza (Est 1,3-8). O Senhor convida “todos os povos” a um banquete esplêndido, que se celebrará neste “monte” sagrado (no monte Sião em Jerusalém onde fica o templo, cf. 2,3s; 11,9s; 16,1; 18,7; 24,23; 27,13 etc.) dentro da tradição dos banquetes sagrados que acompanham os sacrifícios de comunhão nos dias de festa (cf. Ex 24,11; Dt 16,13-15; 1Sm 9,13; Ne 8,10-12; Is 55,1-5; 60,11.14; Zc 8,20-22; 14,16).

Nossa liturgia de hoje omite a segunda parte dos versículos: “regado com vinho puro, servido de pratos deliciosos e dos mais finos vinhos”. O motivo é que se considera este dia não de festa (como os pagãos ou no México), mas de penitência: como na quaresma, a cor e roxa (ou preta), e não tem canto de glória nem de aleluia.

Ele removerá, neste monte, a ponta da cadeia que ligava todos os povos, a teia em que tinha envolvido todas as nações. O Senhor Deus eliminará para sempre a morte e enxugará as lágrimas de todas as faces e acabará com a desonra do seu povo em toda a terra, o Senhor o disse (vv. 7-8).

No banquete, dá presentes aos comensais. O primeiro é a sua presença e manifestação: antes os povos estavam como cegos, cobertos; agora, “removerá… a coberta (teia)”, podem reconhecer Javé Deus. O véu cobre os rostos (cf. 6,2.5; Ex 3,6; 33,2-23; Lv 16,2; 1Rs 19,13) para impedir de ver e compreender (29,10-12; cf. 2Cor 3,13-18) ou, com mais frequência, como sinal de luto (2Sm 15,30; 19,5; Jr 14,3s; Est 6,12); assim no v. 8, o mesmo verbo “removerá (eliminará)” a “morte”. A palavra grega “apo-calipse” significa precisamente “re-velação, retirada do véu” (cf. v. 7), sendo empregada a propósito da “revelação às nações” no Cântico de Simeão em Lc 2,32.

O segundo presente é extraordinário: “eliminará para sempre a morte”, a maldição original do homem (Gn 3,19), para que os convidados vivam “para sempre” com ele uma vida sem dor e sem lagrimas. O apóstolo Paulo aplica um versículo à vitória de Cristo sobre a morte (1Cor 15,54). O João do Ap 21,4 aplica estes vv. à vida na Nova Jerusalém. O final de v. 8 reforça como assinatura que “o Senhor o disse”.

“Acabará com a desonra do seu povo em toda a terra” pode ser referir a perdão dos pecados e a vergonha da consequência desse pecado, o desterro dos exilados dispersos “em toda a terra”.

Naquele dia, se dirá: “Este é o nosso Deus, esperamos nele, até que nos salvou; este é o Senhor, nele temos confiado: vamos alegrar-nos e exultar por nos ter salvo” (v. 9).

Os vv. 9-12 são um novo hino de vitória (cf. 24,16a; 12,1; 26,1). A batalha foi dura, porque a cidade resistiu com todos os seus meios. A salvação é a esperança cumprida. A aclamação de um novo rei era acompanhada de sacrifícios e banquetes (1Sm 11,15; 1Rs 1,15) e a fórmula “este é nosso Deus” pode se aproximar da aclamação do Senhor como Rei que se encontra em 24,23 (cf. Sl 93,1; 97,1; 99,1).

 

2ª leitura: Rm 8,14-23

O cap. 8 é o ápice da carta aos Rm e e trata da vida no/pelo “Espírito” (palavra-chave repetida 29 vezes neste cap.). A vida no Espírito (e não segundo a carne, cf. vv. 12-13) nos torna filhos e herdeiros de Deus. Por essa filiação divina, podemos chamar Deus de Pai e participamos da família do Espírito e recompondo nossas relações com laços familiares.

Todos aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus (v. 14).

Pela fé (e sua expressão sacramental, o batismo, cf. Gl 3,25-29) recebemos o Espírito como guia, “mestre interior” (cf. o paráclito em Jo 14,16s.25s; 15,26s; 16,7-15) e princípio de uma vida propriamente divina em Cristo (cf. 5,5; Gl 2,20; Jo 1,12s).

De fato, vós não recebestes um espírito de escravos, para recairdes no medo, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, no qual todos nós clamamos: Abá – ó Pai! (v. 15).

O Espírito é o princípio de uma vida propriamente divina em Cristo (cf. Gl 2,20), não é um “espírito de escravidão” (lit.), mas um “espírito de adoção filial” (lit.). O “medo” caracteriza a escravidão; o amor a filiação (cf. 1Jo 4,18).

Já no cap. 6 (cf. leituras de quarta e quinta-feira da semana passada), Paulo usou o tema da escravidão para descrever a situação do ser humano pecador. O apóstolo não convoca para uma revolta de escravos como Spartacus fez em Roma 73 a.C., que terminou com a derrota e a crucificação de 6000 escravos dois anos depois. Paulo quer libertar o homem de dentro, do seu egoísmo (carne), dos vícios pagãos, da rigidez da lei judaica, superando as divisões de nação, raça, gênero e classe para uma vida de fraternidade e partilha (cf. Gl 3,28; 1Cor 11, 17-34; Fm). O lema da revolução francesa (1789) foi “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, são palavras-chaves já nas cartas de Paulo.

“Abá” (Abba: pai, papai) é termo aramaico, umas das poucas palavras apresentadas na língua de Jesus, que mostra sua originalidade (outras são: Amém, Rabi, Hosana). Com esta palavra as crianças dirigiam-se carinhosamente se dirigiam aos pais. Mesmo escrevendo em grego, Paulo e Mc preservam esta expressão filial na língua original, característica da familiaridade e ternura de Jesus e de seu Pai (cf. a própria oração de Cristo no Getsêmani em Mc 14,36; cf. Mt 11,25; Lc 22,42 etc.) da qual, através do Espirito, os cristãos participam (Gl 4,6; cf. Jo 1,12s). Talvez Paulo aluda ao começo do Pai-nosso, na tradição de Lucas (Lc 11,2).

No AT, Deus se mostra como pai do coletivo, do povo de Israel: libertador (Ex 4,23), educador (Dt 8,5), desfraldado (Dt 32,6; Is 1,2; 63,8.16), afetuoso (Jr 31,20; Os 11,1), compreensivo (Sl 103,13); também é pai do rei que representa o povo (Sl 2; 89,27s; 2Sm 7). Só duas vezes, num texto tardio, um indivíduo chama Deus de Pai (Eclo 23,4; 51,10). No NT, porém, a revelação de Deus como Pai é central.

O próprio Espírito se une ao nosso espírito para nos atestar que somos filhos de Deus (v. 16).

Duas testemunhas confirmam nossa filiação divina: nosso instinto filial ou “espírito de filhos”, que nos sugere o apelo afetuoso “Abba”, e o Espírito de Deus (cf. 1Jo 4,18). Assim lembra os dois testemunhos distintos exigidos, segundo Dt 19,15 (citado em Jo 8,17; Mt 18,16; 2Cor 13,1).

E, se somos filhos, somos também herdeiros – herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo -; se realmente sofremos com ele, é para sermos também glorificados com ele (v. 17).

No AT, a herança designa a posse da Terra prometida (Dt 4,21: traduzido às vezes por “patrimônio”), e não supõe evidentemente a morte de ninguém. A Tradução Ecumênica da Bíblia (2186) comenta: No NT, a Terra prometida se torna o conjunto dos bens divinos: o Reino (Mt 25,34), a vida eterna (Mt 19,29). O Pai comunica todos os seus bens ao seu Filho ressuscitado dos mortos e, por ele, aos crentes.

“Somos também herdeiros” (cf. Gl 4,7; 1Pd 1,4). A Bíblia do Peregrino (p. 2720) comenta: É consequência de sermos filhos, sem problemas de exclusão ou preferência: comparar com os problemas de sucessão de Gn 21,10; 27,36-38; Jz 11,2, e a sucessão dinástica (1Rs 1; Sl 45). Para terminar, introduz outra posição que exporá no parágrafo seguinte: sofrimentos presentes/glórias futura. A demora se explica porque o herdeiro não entra imediatamente na posse da herança. Compartilhar com Cristo não exige repartir a herança; exige, sim, partilhar a paixão (Fl 3,10-11).

“Sofremos com ele, é para sermos também glorificados” (cf. Lc 24,26; 1Pd 4,13). A Tradução Ecumênica da Bíblia (2186) comenta: A preposição “para” não marca a intenção que deveria dirigir os cristãos (como se lhe fosse preciso procurar o sofrimento com a finalidade de obter a glória), mas exprime a relação necessária entre os dois aspectos de um mistério único de morte e ressurreição, para o cristão como para o Cristo (cf. Fl 3,10-11).

Eu entendo que os sofrimentos do tempo presente nem merecem ser comparados com a glória que deve ser revelada em nós (v. 18).

Paulo não opõe alegrias a sofrimentos, como poderia se esperar da filosofia corrente, mas opõe a “glória”, uma qualidade divina que irradia e nos atinge (cf. 3,23). Glória no sentido bíblico (cf. Ex 24,16 etc.) é a presença de Deus comunicando-se ao ser humano de modo mais íntimo, bem por excelência dos tempos messiânicos (cf. Sl 85,10; Is 40,5, etc.). “A glória que deve ser revelada em nós” (cf. 2Cor 4,17) existe desde agora no Cristo ressuscitado, e mesmo, de certa maneira, nos cristãos (2Cor 3,18).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2186) comenta: Mas ela ainda não foi manifestada. Paulo não fala somente de manifestação, mas de revelação, porque o homem não pode conceber atualmente uma ideia do esplendor dessa glória futura e porque, através dele, essa manifestação atingirá a criação inteira (vv. seguintes). Cf. 3,23; 8,19-23; Is 40,5; Sl 85,10.

De fato, toda a criação está esperando ansiosamente o momento de se revelarem os filhos de Deus. Pois a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua livre vontade, mas por sua dependência daquele que a sujeitou; também ela espera ser libertada da escravidão da corrupção e, assim, participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus (vv. 19-21).

“A criação ficou sujeita à vaidade” (cf. Ecl 1,2). É o condição da criação após o pecado (original) do ser humano, que dela se serve contra a vontade de Deus, a serviço do seu egoísmo e da sua vontade de domínio. Outra interpretação fala do caráter corruptível e efêmero das realidades criadas.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2133) comenta: O mundo material, criado para o homem, participa do seu destino. Amaldiçoado por causa do pecado do homem (Gn 3,17), ele se encontra atualmente num estado de tensão: “vaidade” (v. 20), qualidade de ordem moral ligada ao pecado do homem, “servidão da corrupção” (v. 21), qualidade de ordem física. Mas como o corpo do homem, destinado à gloria, é também objeto de redenção (vv. 21.23). A filosofia grega queria libertar o espírito da matéria, considerada má; o cristianismo liberta a própria matéria. Mesma extensão da salvação ao mundo não humano (especialmente ao mundo angélico) em Cl 1,20; Ef 1,10; 2Pd 3,13; Ap 21,1-5. Com relação à nova criação, cf. 2Cor 5,17.

“Por sua dependência daquele que a sujeitou (ou “por vontade daquele que a submeteu”); isto é, provavelmente o homem por seu pecado. Ou: Deus por sua autoridade vingadora; ou ainda: Deus como criador (cf. submeter e dominar em Gn 1,28).

“Participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.2186) comenta: O AT já ensinava que o universo material seria associado à glória escatológica do povo de Deus (Is 65,17; Ap 21,1). Aqui esta afirmação aparece com a consequência da glorificação do corpo do cristão (vv.17 e 23), que também é fruto da cruz e da ressurreição de Jesus (cf. Cl 1,18-20). 

A Bíblia do Peregrino (p. 2720s) apresenta duas hipóteses:

A interpretação desses versículos depende do significado atribuído a “ktísis”: criação ou humanidade. A tradição exegética tem optado pelo primeiro. O correlativo “nós” e o contexto sobre escravidão e liberdade, corrupção e gloria, fracasso e esperança favorecem o segundo. Com outras palavras: a nós, os cristãos, se opõe o resto da humanidade; e não a nós, os homens, se opõe o resto da criação.

  1. a) Se o sujeito é a criação inteira, Paulo dá dimensão cósmica à redenção. Isso supõe que, com a queda do homem, a criação inteira (também a sideral?) ficou submetida à desordem e dela participa (o contrário da distinção proposta pelo Salmo 104); ou então supõe que a caducidade da criação (Sl 102,27) vem do pecado de Adão (seria ampliar a sugestão dos cardos de Gn 3). A libertação dessa criação escravizada estaria vinculada à doutrina do céu e de terra novos (Is 65,17; 66,22; 2Pd 3,13).
  2. b) Se o sujeito é a humanidade inteira, fora os cristãos, Paulo formula o anseio de vida e vida plena que todo homem acalenta no íntimo… Nos Sl 96,98, em Is 35; 55,12s etc. podemos encontrar alguma participação da natureza na libertação do povo… A relação que propomos, entre a humanidade e cristãos filhos de Deus, é semelhante à de Jr 31,9s entre pagãos e Israel filho do Senhor (cf. também 1Jo 3,2)… A corrupção ou condição mortal é a última escravidão do homem (cf. 1Cor 15,26). Pois bem, os filhos de Deus são livres por natureza; enquanto tais, não nascem na escravidão. É o argumento de Deus em Ex 4,23 e Jr 2,14. Sua liberdade é gloriosa porque quem os adota lhes comunica sua glória.

Com efeito, sabemos que toda a criação, até ao tempo presente, está gemendo como que em dores de parto. E não somente ela, mas nós também, que temos os primeiros frutos do Espírito, estamos interiormente gemendo, aguardando a adoção filial e a libertação para o nosso corpo (vv. 22-23).

“Sabemos” pela revelação (alusão a Gn 2,17). As “dores de parto” são consequência do pecado de Eva (Gn 3,16) e podem indicar a intensidade da dor e da angustia, outras vezes a dor fecunda (cf. Jr 4,31; 1Sm 4,19-22).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2186) comenta: Essa expressão bíblica (Jr 13,21; Is 66,6-8; Jo 16,20-22) designa, ao mesmo tempo, um doloroso estado atual e a espera de um futuro estado glorioso. Toda esta passagem (vv.19-22) afirma enfaticamente que o mundo material e inanimado será associado à glorificação do corpo do homem no Cristo ressuscitado. Trata-se, em Paulo, de uma afirmação da fé, que não se deve confundir com uma reflexão filosófica sobre o sentido e o devir do cosmo.

Se a corrupção é escravidão, o escravo tornado filho é resgatado para a imortalidade, que é liberdade. Também o corpo pertence à condição filial de filhos de Deus. Há ”gemidos“ da criação/humanidade (v. 22), do cristão (v. 23) e do Espírito (v. 26; leitura de amanhã; cf. 8,15; Gl 4,6; 1Cor 2,10-13).

“Os primeiros frutos do Espírito”, a ideia das primícias implica um dom parcial e antecipado, penhor e garantia do futuro total (cf. 1Cor 15,20; Rm 11,16). A adoção “já” está adquirida (v. 15), o que “ainda não” se realizou, é a plenitude de seus efeitos: a libertação e glorificação do nosso corpo.

A Bíblia do Peregrino (p. 2720s) comenta: Em ambas as hipóteses deve-se manter que os cristãos formam um grupo à parte: sua redenção está realizada, mas não consumada. Falta algo substancial à sua filiação divina: a glorificação também do corpo. Por isso também os cristãos gemem e esperam. Em ambas as hipóteses, a criação/humanidade aparece com “a cabeça voltada e à espera” (etimologia de apo-kara-dokia); com as dores de um parto que, apenas com suas forças, não teria êxito (cf. Is 26,17s; 37,3). Será necessária uma nova ação de Deus (cf. Jo 16,21; Ap 12). É possível que Paulo pense nas clássicas “dores de parto” que anunciam a era messiânica.

Evangelho: Mt 25,31-46

A pergunta “o que será no fim do mundo ou no fim da nossa vida?” sempre preocupava a humanidade. Teremos que prestar conta sobre a nossa conduta ou fará nenhuma diferença, a maneira como tratamos os outros? Haverá um julgamento próprio para os cristãos? Ou Deus tratará todo mundo igual?

No final do discurso sobre a parusia (volta de Cristo no fim do mundo, caps. 24-25), o evangelho de Mt responde a estas perguntas com uma parábola de Jesus, ou melhor, com um discurso imaginado aos discípulos, uma descrição profética do juízo final. Aliás, é a única cena dos quatro evangelhos que mostra qual será o conteúdo do juízo final. Como antecedentes literários pode-se comparar Jr 8,32-35; Dt 27,12-18,14; Is 24,21-22; 65,13-15; Dn 12,2; Sb 4,20; 5,16.

(Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:) Quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda (vv. 31-33).

O “Filho do homem” (cf. Dn 7,13s) chegará “em sua glória” (16,27; 19,28); é Jesus na sua vinda (parusia) no fim do mundo (24,30-31.37.39.44). Nas parábolas do casamento, era o “filho do rei” (22,2; cf. 25,1-12), agora é o “Rei” (vv. 34 etc.) a quem o Deus Pai confiou o julgamento. Na monarquia absoluta, o rei era também juiz supremo (cf. Sl 72,1); não existia ainda a democracia atual com sua divisão dos três poderes (legislativo, executivo e judiciário).

Acompanhado de sua corte “de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso” (v. 31; cf. Dn 7,9-10; Dt 33,2; Zc 14,5; Jd 14-15) para um grande julgamento de “todos os povos da terra” (v. 32). Este juízo final, segundo Jl 4,11-12,16, acontecerá no vale de Josafá perto de Jerusalém.

“Assim como um pastor” (imagem para o rei, líderes políticos ou religiosos, cf. Ez 34 e Davi em 1Sm 16-17) “separa” (cf. Lv 20,25; Is 56,3) “as ovelhas dos cabritos” (cf. Ez 34,17; Ex 12,5). “As ovelhas à sua direita” (lado preferido, cf. 26,64; Sl 110,1; Dt 27,12-13); está preferência é transcultural: a mão direita é considerada a mais hábil, pura e honesta; com ela se come, jura, saúda, escreve e fecha contratos, enquanto com a mão esquerda se fazia as coisas menos nobres. Na linguagem da política atual, porém, os termos “esquerda” e “direita” têm outra origem: na assembleia dos deputados franceses no século XVII, ao lado direito sentavam os conservadores e ao lado esquerdo, os que queriam mudanças.

Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: “Vinde benditos de meu Pai! Recebei como herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome e me destes de comer; eu estava com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me recebestes em casa; eu estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar” (vv. 34-36).

O critério da separação não são coisas excepcionais (cf. 7,22), mas as seis “obras da misericórdia” que se pode ilustrar com textos do AT e do NT (por ex. Is 58,6s; Pr 19,17; Jó 22,6-7; 31,31s; Eclo 7,32-35; Mt 5,7; 9,13; 12,7; 23,23): ajudar os famintos e os sedentos (10,42; Lc 3,11; 14,12-14; At 6,1-3; Rm 12,20; 1 Cor 11,33; cf. Jo 4,7; Sl 42,3), exercer a hospitalidade (10,40-42; Gn 18,2ss; Lv 19,34; Rm 12,13; Cl 4,10; 1Pd 4,9; Hb 13,2; cf. Mt 10,14; Lc 9,53s), vestir pessoas necessitadas (Tb 4,16; Ez 18,16; Lc 3,11; 15,22; At 9,36.39; Tg 2,15-16), cuidar dos doentes (Lc 10,33-35; Mc 6,13; Tg 5,14).

Divergindo do judaísmo, Jesus não fala aqui da assistência à viúva nem da educação dos órfãos (talvez para não confundir o sentido amplo de “menores” em v. 40; cf. 18,1-5; Mc 9,36s; Tg 1,27), nem do sepultamento dos mortos (cf. 26,10; Tb 1,17.19; Mc 15,42-47; At 8,2), mas menciona, em acréscimo, a visita aos prisioneiros (cf. 2Tm 1,16-18; Hb 13,3).

Na tradição cristã das obras da misericórdia, Lactâncio (250-320) acrescentou a sétima: “enterrar os mortos” (cf. Tb 1,17–20), St.º Agostinho (354-431) introduziu o paralelo entre as “obras espirituais” e as corporais; S. Tomás de Aquino (1225-1274) sistematizou-as. As sete obras espirituais da misericórdia (CIC 2447) são: aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, admoestar os pecadores, consolar os aflitos, perdoar as ofensas, suportar com paciência as pessoas molestas, rezar a Deus pelos vivos e defuntos. Na arte cristã, as sete obras da misericórdia foram apresentadas contrastando os sete pecados capitais (orgulho, gula, avareza, luxúria, ira, inveja e preguiça).

O teólogo W. Kasper atualizou as obras da misericórdia (físicas, psíquicas, sociais, culturais). O Papa Francisco declarou um Ano da Misericórdia (08.12.2015-20.11.2016). Como o papa enfatiza: Quando tocamos nas feridas dos pobres e doentes, tocamos nas chagas de Cristo que se fez pobre (cf. 2Cor 8,9).

Então os justos lhe perguntarão: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar?” Então o Rei lhes responderá: “Em verdade eu vos digo, que todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (vv. 37-40).

Jesus identifica-se com os “menores de meus irmãos” (v. 40) e com os “mais pequenos” (superlativo de menores em v. 45), que não são mais os discípulos de 10,40-42, mas todas as pessoas necessitadas.

Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: “Afastai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos. Pois eu estava com fome e não me destes de comer; eu estava com sede e não me destes de beber; eu era estrangeiro e não me recebestes em casa; eu estava nu e não me vestistes; eu estava doente e na prisão e não fostes me visitar”. E responderão também eles: “Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou nu, doente ou preso, e não te servimos?” Então o Rei lhes responderá: “Em verdade eu vos digo, todas as vezes que não fizestes isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizestes!” Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna (vv. 41-46).

Como em Dt 27-28, a sentença é pronunciada em forma de benção e maldição: “benditos” (v. 34; cf. Sl 115,15; Is 65,23) e “malditos” (v. 41; cf. Jr 17,5; Sl 37,22). A sentença é “herdar o Reino” (v. 34; cf. 1Cor 6,9; 15,50; Gl 5,21; cf. Lc 12,82) ou o “castigo eterno” (v. 46), isto é o “fogo eterno” (v. 41; 18,8; cf. 13,40-43; Is 66,24; Dn 7,11; 12,2; Ap 20,10).

A cena nos faz compreender que muitos, mesmo sem conhecer a pessoa de Jesus, se ajustam aos valores dele, no esfera do amor ao próximo.

Então há salvação fora da igreja? O Concilio Vaticano II afirma: quem não conhece Jesus, mas segue a sua própria consciência (reconhecendo a lei natural, por ex. a Regra de Ouro em Mt 7,12) pode ser salvo, sim (cf. LG 16; cf. CIC 846-848). Então a fé não importa no juízo final? Importa, sim (cf. 10,32s), mas fé cristã significa compromisso com a pessoa concreta de Jesus, e onde está Jesus? Só no céu? Através da sua encarnação e sua cruz, ele se identifica com os seres humanos que sofrem, os pobres e necessitados, marginalizados por uma sociedade baseada na riqueza, no poder e no bem-estar egoísta.

Por isso, o julgamento será sobre a realização de uma prática de justiça em favor dos pobres, conforme a vontade do Pai (cf. 5,3; 7,21). Esta prática central da fé, desde o início apresentada por Mt como cerne da atividade de Jesus, é “cumprir toda a justiça” (3,15). A justiça de Deus é a misericórdia em Jesus. Ele será nosso juiz e espera que nós tenhamos a mesma opção preferencial pelos pobres que ele demonstrou por sua vida. “Bem-aventurados os misericordiosos, eles alcançarão misericórdia” (5,7).

O site da CNBB comenta: Jesus nos mostra no Evangelho de hoje que a verdadeira religião não é aquela que é marcada por ritualismos e cumprimento de preceitos meramente espirituais, afinal de contas ele não nos perguntará no dia do julgamento final se nós procuramos cumprir os preceitos religiosos, mas sim se fomos capazes de viver concretamente o amor. É claro que a religiosidade tem sentido, principalmente porque é através do relacionamento com Deus que recebemos as graças que nos são necessárias para a vivência concreta do amor, mas a religiosidade sozinha, desvinculada da prática do amor, é causa de condenação e não de salvação.

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