20 de fevereiro de 2017 – Segunda-feira, 7ª semana

Leitura: Eclo 1,1-10

Por duas semanas vamos ouvir uns textos do livro sapiencial “Eclesiástico” (Eclo). Foi escrito em hebraico entre 190-164 a.C. por Jesus Ben Sirac (50,27; 51,30), mas chegou até nós graças à tradução grega (chamada “Sirácida”) feita pelo seu neto em 132 a.C., que escreveu o prólogo deste livro.

O nome provém do uso oficial que a Igreja (em latim Eclésia) faz desse livro, em contraposição à Sinagoga judaica que o rejeitou quando formou seu cânone (regra, norma) dos livros sagrados em 90 d.C.  Como consequência, o texto original se perdeu, mas partes (dois terços) do texto hebraico foram encontrados, no Egito em 1894 e em Israel em 1964. Na Bíblia protestante falta Eclo, porque Lutero aceitou como AT apenas a Bíblia Hebraica dos judeus. Não devemos confundir Eclo com Ecl, ou seja, o livro Eclesiastes cujo texto inteiro é hebraico e assim aceito por todos.

No Novo Comentário Bíblico São Jerônimo (p. 981), Alexander A. Di Lella comenta: Um livro deuterocanônico, Eclo, embora escrito em hebraico e publicado em Jerusalém antes de Daniel (ca. de 165 a.C.), não foi incluído na cânone judaico provavelmente porque os fariseus que definiram este cânon perto do fim do sec. I d.C. discordaram em algumas teologias e Ben Sirac (por exemplo, o fato de negar retribuir aqui por diante)… A igreja primitiva … considerou Eclesiástico canônico. Há muitas alusões ao livro no NT, especialmente em Tiago.

Ben Sirac pertenceu ao “grupo dos assideus, que eram israelitas fortes, corajosos e fiéis à Lei” (1Mc 2,42) e viveu nas vésperas da revolta dos macabeus contra o helenismo, ou seja, a cultura grega que se impunha depois das conquistas de Alexandre Magno no Oriente Médio. No início do século II a.C., a Palestina passou do domínio dos Ptolomeus (Egito) para o dos Selêucidas (Síria) que promoveram uma política de assimilação e procuraram impor a cultura e a religião gregas – um imperialismo cultural que ameaçava destruir a identidade cultural e religiosa dos dominados (comparável à globalização).

Ben Sirac escreveu então este livro, uma longa meditação no estilo sapiencial sobre a fidelidade hebraica, a consciência histórica do seu povo e o valor perene de suas tradições. O autor, porém, não é intransigente, pois em seu livro mostra ter já assimilado diversos aspectos da cultura grega (iniciando o caminho de uma síntese que culminará no Livro da Sabedoria, escrito em grego em Alexandria em 50 a.C.).

A Bíblia do Peregrino (p. 1576) comenta: O livro começa com uma exposição programática, vinculando a sabedoria/sensatez com o respeito/reverência de Deus.

Toda sabedoria vem do Senhor Deus. Ela esteve e está sempre com Ele. Quem pode contar a areia do mar, as gotas de chuva, os dias do tempo? Quem poderá medir a altura do céu, a extensão da terra, a profundeza do abismo? Antes de todas as coisas foi criada a sabedoria, a inteligência prudente vem da eternidade. Fonte da sabedoria é a palavra de Deus no mais alto dos céus e seus caminhos são os mandamentos eternos (vv. 1-5).

“Sabedoria” para a filosofia grega é um saber à disposição dos homens para entenderem do mundo. Para Ben Sirac, porém, “toda sabedoria vem do Senhor Deus”. Nossa liturgia acrescentou “Deus”; o neto e tradutor de Ben Sirac emprega geralmente “Senhor” (kyrios) para traduzir os nomes divinos em hebraico Yhwh (Javé), Elohim (Deus), Elyon (Altíssimo), raramente usa o vocábulo grego Deus (theos).

A sabedoria é imensa em número e extensão, “vem da eternidade”. Um ser humano não pode compreendê-la, somente admirar o tamanho e a grandeza do universo (cf. vv. 2s. 6s; Jó 28,12-28; exemplos de números indefinidos e dimensões ilimitadas: Sl 139,8s; Is 40,12s).

A sabedoria já existe antes da criação do mundo, “antes de todas as coisas”, porém, é criada pela Palavra de Deus que é sua “fonte” (cf. vv. 1.4; 24,3.8-9; Pr 2,6; 8,22-31). “Seus caminhos são os mandamentos eternos” são as leis imutáveis da natureza criadas por Deus? No cap. 24, o autor personifica a Sabedoria pré-existente e a identifica com a Lei de Moisés (24,23). Os cristãos vão identificar esta sabedoria pré-existente com Jesus Cristo e o Espírito Santo (cf. Jo 1,1.14; 1Cor 1,30; 2,6-16; Ef 3,18s): “Ela esteve e está sempre com Ele” (v. 1b; cf. Jo 1,1s.18). Nas cartas paulinas, Cristo é a “sabedoria de Deus” (1Cor 1,24), ele encerra “os tesouros da sabedoria” (Cl 2,3).

A quem foi revelada a raiz da sabedoria? Quem conheceu as capacidades do seu engenho? A ciência da sabedoria, a quem foi revelada? E quem compreendeu sua grande experiência? Só um é o altíssimo, criador onipotente, rei poderoso e a quem muito se deve temer, assentado em seu trono e dominando tudo, Deus. Ele é quem a criou no espírito santo: Ele a viu, a enumerou e mediu; ele a derramou sobre todas as suas obras e em cada ser humano, segundo a sua bondade. Ele a concede àqueles que o temem (vv. 6-10).

A sabedoria é um dom (cf. Sb 8,21; 9,4), mas pode ser concedida (v. 10) a quem se abre à Palavra de Deus; sua “raiz” e “revelada” (a raiz se alimenta da fonte, a Palavra divina, cf. v. 5). A Bíblia do Peregrino (p. 1576) comenta: A sabedoria não é um dom estático, dado de uma vez para sempre em estado perfeito, mas é dinâmica, como alo de vegetal. Parte de uma base rumo a uma plenitude, de uma raíz a uma coroa. Embora o homem não a possa abranger, porque é anterior e superior a ele, pode trabalhar por ela e com ela, tenho sempre presente o respeito a Deus. 

Os gregos, os egípcios e todos os outros povos adoraram muitos deuses (politeísmo). Para os gregos, o deus mais poderoso é Zeus (para os romanos: Júpiter) que matou seu pai, uma das suas filhas é Athenas (Minerva) que representa a sabedoria. Contra o politeísmo, o autor bíblico afirma: “Só um é o altíssimo (lit. sábio), criador onipotente, rei poderoso (lit. sentado no trono)”. Javé Deus é o único Deus verdadeiro, criador do universo e dominando tudo como um rei que se deve temer (Sl 76), sentado no trono como rei a quem compete de modo especial a sabedoria (Pr 25,1-3). Só Deus pode ser chamado de sábio, por isso impõe respeito (temor).

Ele criou a sabedoria e a derrama sobre todas (!) as suas obras e cada (!) ser humano (vv. 8-10; cf. Sb 7,27). Esta distribuição da sabedoria lembra a difusão do Espírito Santo em Joel (Jl 3,1s) e no dia de Pentecostes (At 2).

A tradução latina (Vulgata por S. Jerônimo) e uma versão grega (248) têm mais versículos do que o livro original, aqui acrescentaram os vv. 5.7 (ciência, experiência) e em latim “no Espírito Santo” (v. 9).

“Ele a concede àqueles que o temem” (a maioria traduz: “que o amam”). Única condição para recebê-la é o temor a Deus (cf. Is 11,2), isto é, àqueles que o levem a sério e buscam a fonte: “a palavra de Deus … os mandamentos eternos” (v. 5). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1718) comenta: O temor do Senhor resume a atitude do crente diante do seu Deu, atitude ao mesmo tempo de amor e obediência. Essa atitude tem um lugar considerável na teologia de Ben Sirac e permanece estreitamente ligada à sabedoria.

Em seguida (vv. 11-21), o autor elogia este temor a Deus: “O princípio da sabedoria é temer ao Senhor” (v. 14; cf. Sl 111,10; Pr 1,7; 9,10; 15,33).

 

Evangelho: Mc 9,14-29

Em Mc, é o terceiro exorcismo (cf. 1,12-28; 5,1-20, além dos sumários 1,34.39; 3,11) e aqui relatado parecido à uma ressurreição de um morto (vv. 26-27; cf. 5,35-42). Como no caso do endemoninhado de Gerasa (5,1-20), Marcos demonstra aqui seu talento narrativo e compõe uma cena de grande vivacidade, a serviço de um ensinamento superior. Também um bom relato pode ser uma boa notícia (“evangelho”, cf. 1,1). É importante considerar o contexto deste relato após a transfiguração (vv. 2,2-13) e entre anúncios da paixão: O messias glorioso e paciente é também o messias compassivo, que empregará seu poder para salvar a outros, não a si mesmo (cf. 15,31). Jesus presta ajuda ao menino doente, à fé vacilante do pai, à ignorância dos discípulos.

Jesus e os três discípulos mais íntimos, Pedro, Tiago e João estavam “descendo do monte” (v. 9a). Neste monte, Jesus havia se transfigurado em luz, demonstrando sua origem divina, falando com Moisés e Elias. E como voz de uma nuvem, o Pai do céu havia declarado: “Este é meu filho amado, escutai-o” (v. 7). Mas não podiam ficar no monte, como Pedro queria (v. 5). Precisam descer de novo no meio da miséria e da confusão do mundo onde se encontra outro pai com seu filho atormentado e quase morto.

Descendo Jesus do monte com Pedro, Tiago e João e chegando perto dos outros discípulos, viram que estavam rodeados por uma grande multidão. Alguns mestres da Lei estavam discutindo com eles. Logo que a multidão viu Jesus, ficou surpresa e correu para saudá-lo. Jesus perguntou aos discípulos: “O que discutis com eles?” (vv. 9a.14-16).

Jesus com os três discípulos desceu da montanha (v. 9a) e se aproxima do resto dos discípulos. Encontra-os discutindo com uns mestres da lei e cercados pela multidão que acorre surpresa e alvoroçada (vv. 14s). Mc não diz sobre o que estavam discutindo (cf. a pergunta de Jesus em v. 33). Talvez sobre a pessoa e missão de Jesus; ou então sobre exorcismos, se as palavras do pai (v. 17) são a resposta à pergunta de Jesus. Pelo visto, os discípulos ensaiaram um exorcismo sem resultado (vv. 18.28), apesar de terem recebido poder sobre espíritos imundos (3,15; 6,7).

Alguém da multidão respondeu: “Mestre, eu trouxe a ti meu filho que tem um espírito mudo. Cada vez que o espírito o ataca, joga-o no chão e ele começa a espumar, range os dentes e fica completamente rijo. Eu pedi aos teus discípulos para expulsarem o espírito. Mas eles não conseguiram” (vv. 17-18).

Esta enfermidade causada por um espírito (“mudo”) ainda é mencionada no v. 25 (“mudo e surdo”), sem que se possa ver a sua relação com a doença descrita nos vv. 22-26. É bom notar que Mt 12,22 se refere a cura de um homem cego e mudo e Lc 11,14, a de um mudo, às quais Mc não faz menção (Mt e Lc a copiaram da fonte Q). Mc já relatou a cura de um surdo-gago em 7,31-37 (sem mencionar um demônio).

Em seguida (v. 18), a doença do menino é descrita primeiramente pelo pai e a seguir em ação (vv. 20-22). Os sintomas relatados são claramente de uma doença hoje conhecida por epilepsia, uma deficiência no cérebro que se consegue controlar com remédios. Mas naquela época, as causas desconhecidas de doenças foram atribuídas aos demônios. Quando Jesus curava tal pessoa, para as testemunhas (e os evangelistas) era óbvio que “expulsava o espírito impuro, o demônio” (cf. vv. 17-18.25-26).

O pai recorria a Jesus e tropeçou na impotência dos discípulos (cf. o fracasso de Giezi, servo do profeta Eliseu em 2Rs 4,31). Os discípulos “não conseguiram”, ou “não tiveram força” (talvez uma alusão a Mc 3,27 (o homem forte).

Jesus disse: “Ó geração incrédula! Até quando estarei convosco? Até quando terei que suportar-vos? Trazei aqui o menino” (v. 19).

Aqui já entra a questão da fé. Para além da multidão e dos discípulos, Jesus parece dirigir-se a seus contemporâneos ou qualquer descrente chamando-os “geração incrédula” (cf. 8,12), porque busca só milagre e não chega a crer na pessoa (cf. Dt 32,5.20; Mt 11,16; 12,39-45; 16,4; 17,17). Jesus tem de agir no meio da incompreensão, sem deixar-se vencer por ela.

E levaram-lhe o menino. Quando o espírito viu Jesus, sacudiu violentamente o menino, que caiu no chão e começou a rolar e a espumar pela boca (v. 20).

Conforme o gênero literário, o exorcismo é apresentado de forma dramática (cf. 1,23-26; 5,2-13). Ao apresentar-se Jesus, o “espírito” provoca uma reação violenta e agrava os sintomas.

Jesus perguntou ao pai: “Desde quando ele está assim?” O pai respondeu: “Desde criança. E muitas vezes, o espírito já o lançou no fogo e na água para matá-lo. Se podes fazer alguma coisa, tem piedade de nós e ajuda-nos.” Jesus disse: “Se podes! … Tudo é possível para quem tem fé.” O pai do menino disse em alta voz: “Eu tenho fé, mas ajuda a minha falta de fé.” (vv. 21-24).

A cena detalhada dos vv. 21-26 é peculiar a Mc. Uma série de detalhes ressalta a grandeza do milagre, como a duração da doença, seus efeitos aterradores, a resistência.

No diálogo com o pai, mais uma vez a questão da fé. Mc nos oferece um exemplo. O pai apela cambaleando à compaixão: “Se podes…, tem piedade de nós e ajuda-nos” (cf. 1,40). Jesus responde apelando à fé como condição para cura. Consciente de seu desamparo, o pai pede mais fé e procura apoio em Jesus. O poder do crente é o de Deus (cf. 5,36; 10,27, 11,22-24), ao qual ele se abre pela fé. “Tudo é possível…” (cf. 11,22-24; Gn 18,14; Jr 32,27; Lc 1,37; Fl 4,13).

As curas de Jesus se diferenciam por duas coisas das curas de curandeiros da época. Às vezes, Jesus cura apenas com sua palavra e, muitas vezes, frisa a importância da fé (e não da magia).

Jesus viu que a multidão acorria para junto dele. Então ordenou ao espírito impuro: “Espírito mudo e surdo, eu te ordeno que saias do menino e nunca mais entres nele.” O espírito sacudiu o menino com violência, deu um grito e saiu. O menino ficou como morto, e por isso todos diziam: “Ele morreu!” (vv. 25-26).

O exorcismo de Jesus consiste numa palavra soberana, eficaz (cf. 1,25) e duradoura (“nunca mais”). A constatação costumeira da cura é adiada. O povo, ao ver o menino “como morto”, duvida: Quem venceu no exorcismo, o demônio ou Jesus, a morte ou a vida?

Mas Jesus pegou a mão do menino, levantou-o e o menino ficou de pé (v. 27).

Jesus acrescenta à palavra um gesto; o toque de sua mão que ergue como se ressuscitasse um morto. Repete os gestos com que ressuscitou a filha de Jairo (5,41s). Os dois verbos gregos, aqui traduzidos por “fazer levantar, acordar” (egéirein) e “pôr-se de pé” (anistánai), são empregados em outro lugar para falar da ressurreição (cf. 5,41). Por meio destes traços, Mc quer estabelecer um vínculo entre os episódios de sua narração e a ressurreição, cujo sentido é preparado desta forma através de todo o evangelho (cf. 1,31; 8,31; 9,1.7.9-10; 10,34).

Depois que Jesus entrou em casa, os discípulos lhe perguntaram a sós: “Por que nós não conseguimos expulsar o espírito?” Jesus respondeu: “Essa espécie de demônios não pode ser expulsa de nenhum modo, a não ser pela oração” (vv. 28-29).

A instrução aos discípulos à parte, “em casa” (vv. 28s.33; 10,10) ou “no caminho” (v. 30s; 10,32; cf. 8,27) já é um motivo típico em Mc (cf. 4,10 etc.). Entende-se a “oração” com fé e por mais fé. Alguns manuscritos acrescentam “e pelo jejum” (cf. Mt 17,21), como prática que acompanha a oração.

É preciso refletir sobre a reação dos diversos personagens. O poder soberano de Jesus, “eu te ordeno” (em nome próprio), a fé trabalhosa do pai, o estupor e a incompreensão do povo, a frustração dos discípulos. Lembramos o contexto: em cima, no alto do monte da transfiguração, Jesus se mostrou Filho de Deus antecipando sua ressurreição (cf. vv. 9s), embaixo um pai que tem um filho (“único”, Lc 9,38), quase morto. Por isso a questão da fé! Jesus já tinha dado aos apóstolos o poder de expulsar demônios (3,15; 6,7) e eles fizeram (6,13), mas “essa espécie de demônios não pode ser expulsa de nenhum modo, a não ser pela oração” (v. 29).

Oração é praticar a fé, responder a Deus que se revela. Os discípulos não conseguiram realizar a cura (expulsar o demônio) pela sua “fraqueza de fé” (Mt 17,19-20). Jesus lamenta: “Ó geração incrédula!” (v. 19) e afirma: “Tudo é possível para quem tem fé” (v. 23; 11,11,22-25; cf. Fl 4,13). O pai do menino reza o que nosso povo gosta de repetir: “Eu creio, mas aumentai a minha fé” (v. 24).

O site da CNBB comenta: Todos nós queremos dar soluções rápidas para todos os problemas e, por isso, podemos ser surpreendidos porque não conseguimos revolvê-los de forma satisfatória ou eles voltam a acontecer. Isso acontece principalmente porque não paramos para refletir sobre o problema e não buscamos todos os meios necessários para a sua superação. Jesus, antes de realizar o exorcismo, conversou com o pai da criança e exigiu dele uma postura de fé. Depois, chamou a atenção dos discípulos sobre a necessidade da oração. Devemos conhecer profundamente os desafios que nos são colocados no trabalho evangelizador e nos preparar em todos os sentidos para a sua superação.

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