20 de janeiro de 2019, Domingo: Há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Há diversidade de ministérios, mas um mesmo é o Senhor. Há diferentes atividades, mas um mesmo Deus que realiza todas as coisas em todos (vv. 4-6).

1ª Leitura: Is 62,1-5

A primeira leitura foi escolhida em vista do casamento de Caná no evangelho de hoje e apresenta a população de Jerusalém como esposa amada por Deus que se alegra com ela. Como uma resposta às acusações de que Javé Deus não age em favor de seu povo, este poema celebra a transformação de Jerusalém, com a promessa de refazer a aliança e recomeçar o relacionamento amoroso entre a cidade e seu esposo Javé.

Os caps. de Is 56-66 pertencem ao Trito-Isaías (terceiro Isaías) que escreveu no pós-exílio, mas nossa leitura tem tantos pontos de contato com poemas dos capítulos 49, 51, 52 e 54, que alguns o consideram obra do mesmo autor, Deutero-Isaías (segundo Isaías) que escreveu os caps. 40-55 no exílio babilônico (cerca de 550 a.C.). É uma retomada dos temas e sua atualização por um discípulo no período persa (cerca de 520 a.C.), quando Jerusalém estava sendo reconstruída e o templo a ser reconstruído (cf. 66,1-4). Trito-Isaías, porém, insiste na transformação radical pela justiça e crítica um ritual sem a prática da misericórdia com os humildes (cap. 58).

A Bíblia do Peregrino (p. 1828) comenta nossa leitura: Temos a conhecida imagem da cidade como esposa do Senhor. O original é que, exceto uma referência em surdina, “Abandonada” não fala de reconciliação de casal maduro, mas de casamento juvenil. Até a alusão ao passado serve para realçar o frescor e a novidade do acontecimento. Não se pode expressar com mais vigor a força do amor, sua capacidade de rejuvenescer, sua novidade inesgotável.

Por amor de Sião não me calarei, por amor de Jerusalém não descansarei, enquanto não surgir nela, como um luzeiro, a justiça e não se acender nela, como uma tocha, a salvação. As nações verão a tua justiça, todos os reis verão a tua glória; serás chamada com um nome novo, que a boca do Senhor há de designar. E serás uma coroa de glória na mão do Senhor, um diadema real nas mãos de teu Deus (vv. 1-3).

Como em 60,1-8 (leitura da epifania; cf. Sl 130,5-8), as nações e seus reis veem uma luz que surgirá em Sião (morro onde foi construído Jerusalém), mas aqui está aurora (“luzeiro”) é identificada não apenas com a “glória” do Senhor, mas com a “justiça” (v. 2).  O sol era também símbolo da justiça (por ex. na Babilônia, o deus solar Shemesh retratado na estela do código do rei Hamurabi, 1750 a.C.). Aqui, neste poema, sobressai a linguagem matrimonial do “amor” que os profetas anteriores já usavam para designar a aliança de Deus com seu povo (50,1; 54,6-7; cf. 1,21; Ez 16; 23; Jr 2,2; 3,6s; Os 1-3).

A Bíblia do Peregrino (p. 1828) comenta os vv. 1-5:

No poema se sobrepõem e se fundem a imagem solar e a do rei vitorioso no dia de seu casamento; em termos conceituais, o rei é o sol. Uma sentinela aguarda impaciente o despontar da aurora (Sl 103,5s), a anuncia e a invoca (Sl 57,9); ou espera uma tocha que arde iluminando um cortejo. Com seu canto desperta a cidade (52,1s). A aurora ilumina a cidade (60,1s), que com a sua muralha com ameias parece uma coroa refulgente sobre o monte (28,4), visível de longe e magnífica.

É o amanhecer de um dia festivo de casamento (Ct 3,11). O rei tinha saído para defender o direito ou “justiça” da cidade, e volta “vencedor”. Toma a cidade-noiva como uma coroa (Pr 12,4). Dá seu nome à esposa (60,14; 61,3.6). Terminado os festejos, começa a alegria do marido com a esposa. Entrou sutilmente um terceiro elemento: a terra fértil, em imagem também matrimonial. Não regada por Baal, mas por quem controla a chuva (Os 2,23-24).

Não mais te chamarão Abandonada, e tua terra não mais será chamada Deserta; teu nome será Minha Predileta e tua terra será a Bem-Casada, pois o Senhor agradou-se de ti e tua terra será desposada. Assim como o jovem desposa a donzela, assim teus filhos te desposam; e como a noiva é a alegria do noivo, assim também tu és a alegria de teu Deus (vv. 4-5).

Em Isaías a transformação radical vem manifestada pela mudança de nome (cf. Ez 48,35): “Como se transformou em uma prostituta, a cidade fiel? Sião, onde prevalecia o direito, onde habitava a justiça, mas agora, povoada de assassinos … todos são ávidos por subornos … não fazem justiça ao órfão, a causa doas viúvas não os atinge…. Voltarei a minha mão contra ti … Farei que os teus juízes voltem a ser como foram no princípio… Quando isso se der, então sim, te chamarão Cidade da Justiça e Cidade Fiel. Sião será redimida pelo direito, e os seus retornantes, pela justiça” (1,21-27).

Jerusalém se afastou do direito e ficou “devastada e abandonada” (49,8; 14; 54,1.4; 60,15), mas depois do retorno do exílio “não mais te chamarão Abandonada, e tua terra não mais será chamada Deserta; teu nome será Minha Predileta e tua terra será a Bem-Casada”. A Bíblia de Jerusalém (p.1464) comenta: “Abandonada” (Azubah), “Meu prazer está nela [Minha predileta]” (Hepçibah): estes nomes aqui dados a Jerusalém e ao país de Judá por causa de sua significação são nomes próprios atestados noutros passos da Bíblia (cf. 1Rs 22,42; 2Rs 21,1). Nesta atribuição de nomes próprios, reconhece-se o uso profético por Os 2,25; Is 1,26, cf. 60,14; 62,12.

A tradução da nossa liturgia segue o hebraico cuja vocalização posterior yib ‘alûk banayk introduz um contrassenso (incesto): “os teus filhos te desposam”. Com outra vocalização yib’alek bonek seria “te desposará o teu construtor” (assim a Bíblia do Peregrino e a Bíblia de Jerusalém), segundo o contexto (cf. 54,50 e o mesmo verbo para a formação de Eva em Gn 2,22). Para a alegria dos esposos, cf. Isaac e Rebeca (Gn 24,67), Sl 45 e Ct.

 

2ª Leitura: 1Cor 12,4-11

Durante o Tempo Comum, a 2ª leitura não está ligada ao conteúdo do evangelho ou da 1ª leitura, mas apresenta, em leitura contínua, trechos importantes das cartas apostólicas. Assim, até o 8º domingo do Ano C, ouviremos trechos da terceira parte da 1ª Carta aos Coríntios (a primeira e segunda parte são lidas nos Anos A e B). Paulo retoma a agenda dos assuntos consultados, agora “a respeito dos dons espirituais”, aqui compreendidos como carismas em si, ou como pessoas com carismas. O assunto é o mais desenvolvido na carta, ocupando três capítulos (12-14). Nessa comunidade, a efervescência dos carismas era muito forte.

Na sua segunda viagem missionária, o apóstolo Paulo passou pela Grécia e fundou uma comunidade cristã em Corinto (cf. At 18). Depois foi a Éfeso na Ásia Menor (atual Turquia), de onde escreve no ano 56 e 57 umas cartas aos coríntios (cf. 5,9; as duas cartas na Bíblia reúnem várias correspondências) para manter contato e esclarecer dúvidas.

Corinto era cidade portuária com meio milhão de habitantes, mas sua riqueza se baseava no trabalho escravo. A Nova Bíblia Pastoral (p.1387) comenta: “A cidade reunia gente de todas as proveniências, com culturas e religiões diversificadas. A ganância e a imoralidade tomava conta da população. Nesse meio social é que se se inseria a comunidade cristã, formada de pessoas simples e pobres, entre os quais não havia “nem muitos sábios, nem muitos poderosos, nem muitos da alta sociedade” (1,26). No entanto, todos formavam um só corpo de Cristo, “judeus ou gregos, escravos ou livres”” (12,13).

Nos caps. 12-14, Paulo escreve sobre o bom uso dos dons do Espírito (carismas), concedidos à comunidade como testemunho visível da presença do Espírito. Os coríntios eram tentados a apreciar principalmente os carismas mais vistosos e a utilizá-los em ambientes anárquico, como acontecia com frequência nas outras religiões (cf. v. 2). Um primeiro critério para discernir os dons do Espírito é a proclamação do senhorio de Jesus (vv. 1-4).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2220) comenta: 1Cor 12-14 são a resposta a Paulo às questões suscitadas pela existência, em Corinto, de fenômenos espirituais (pneumatiká, cf. 14,1.37). Na assembleia cristã, certos coríntios e coríntias eram arrebatados pela inspiração e tomavam a palavra para louvar a Deus ou exortar os outros, quer no idioma dos participantes (profecia), quer em idiomas desconhecidos ou compostos de sílabas sem nexo inelegível (glossolalia).

Antes de reconhecer nesses fenômenos um cunho positivo (cap. 14). Paulo procede a uma reordenação: o que é mais útil à comunidade, são os dons-da-graça (ou carisma, cf. vv. 4 e 31), que são muito mais numerosos e diversificados que as manifestações espetaculares a que os coríntios atribuíam tanto valor. Enfim, todo este pulular de vida inspirado pelo Espírito precisa ser informado pelo amor (ágape) que, em meio a esta diversidade, manterá unida a comunidade (cap. 13).

A Bíblia do Peregrino (p. 2257) comenta o cap. 12: Em Corínto, ao que parece, os dons espirituais ou “carismas” davam origem a divisões por inveja ou competição, por vaidade comparativa. Paulo responde desenvolvendo duplo argumento: origem e função. A origem é única e mantém um controle unificado: o Espírito. A função é plural, mas de forma orgânica, ou seja, existe uma diferenciação a serviço da unidade do organismo [como os membros diversos de um único corpo; cf. leitura do próximo domingo]

Há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Há diversidade de ministérios, mas um mesmo é o Senhor. Há diferentes atividades, mas um mesmo Deus que realiza todas as coisas em todos (vv. 4-6).

Há diversidade de “dons”, lit. os “carismas”. Paulo estabelece um paralelo entre os “ministérios” (serviços) e as “atividades”, e atribui o conjunto desta animação eclesial não só ao Espírito, mas também ao Senhor (Jesus) e a Deus (Pai).

A Bíblia do Peregrino (p. 2257) comenta: O primeiro é afirmar a unidade de origem e a variedade de manifestação. Sem usar a terminologia trinitária evoluída, é claro o pensamento trinitário: Espírito (Santo), Senhor (Jesus), Deus (Pai). O trio correlativo não se deve atribuir membro a membro, mas é cumulativo: carismas, ministérios e atividades têm sua origem comum em Deus (cf. Os 14,9). Não são qualidades naturais, nem fruto do esforço humano; não são méritos nem privilégios; uma vez recebidos, não ficam à disposição autônoma do homem.

Desde já, prenuncia os grandes temas da parábola do corpo (vv. 12-27, leitura do próximo domingo): a diversidade e a unidade (cf. a oposto entre “diversidade de” e “o mesmo…”).

A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum (v. 7).

Todo carisma pessoal e individual visa ao bem da comunidade. Somos plurais em nossas relações e em outros aspectos, portanto a multiplicidade deve sempre ser vista como algo salutar. Não podemos viver sob a ditadura do que é singular e absoluto. Aos colaboradores de Moisés foi dada uma parte igual de “espírito” para alívio do chefe, a serviço da comunidade (Nm 11).

Na Vida Pastoral (jan./fev. 2016), Luiz Alexandre Solano Rossi comenta: O olhar de Paulo, sem dúvida, é sempre para o comunitário em detrimento do individual. Paulo poderia muito bem fazer a seguinte pergunta: como os dons e ministérios que tenho ajudam a construir minha comunidade? Carisma e serviço, a partir dessa concepção, completam-se. Tudo o que somos e temos pertence à comunidade. Deus jamais concede algo para favorecer o império do individualismo. Na verdade, Deus pensa de forma comunitária e relacional.

A um é dada pelo Espírito a palavra da sabedoria. A outro, a palavra da ciência segundo o mesmo Espírito. A outro, a fé no mesmo Espírito. A outro, o dom de curas no mesmo Espírito. A outro, o poder de fazer milagres. A outro, profecia.  A outro, discernimento de espíritos. A outro, falar línguas estranhas. A outro, interpretação de línguas (vv. 8-10).

A Bíblia do Peregrino (p. 2257) comenta: Elenca a seguir nove dons, sem preocupação de ser completo ou exato. Pertencem à ordem da doutrina (em sentido amplo) e dos milagres; faltam por ora os carismas de organização e beneficência. Como antecedente, é obrigatório citar os quatro “ventos = espíritos” do Messias futuro (Is 11,2): “sensatez e inteligência, força e prudência, conhecimento e respeito de Yhwh”; e para as manifestações orgíacas ou extáticas, a história de Saul (1Sm 10,11; 12,19.24) e várias experiências de Ezequiel.

Estes nove dons são: “sabedoria” e “ciência/conhecimento”, transferidos ao contexto cristão (cf. 2Sm 23,2, de Davi; Jó 32,8), não designam uma qualidade estável e permanente, mas um dom transitório do Espírito. A sabedoria se refere sem dúvida, como em 2,6, ao conhecimento aprofundado do desígnio de Deus, o dom de expor as mais altas verdades cristãs, as que dizem respeito à vida de Deus e à vida divina em nós (“o ensinamento perfeito” de Hb 6,1, cf. 1Cor 2,6-16). É difícil precisar o dom do conhecimento/ciência, talvez o dom de expor as verdades elementares do cristianismo (“o ensinamento elementar sobre Cristo” de Hb 6,1).

“Fé” em seu caráter particular (em grau extraordinário, cf. 13,2) para fazer “milagres” (Mc 9,23) ou para o testemunho. Junto a “curas”, o “poder” poderia referir-se a exorcismos. A “profecia” serve para comunicar instruções particulares e complementa-se com o “discernimento de espíritos” (cf. 1Rs 22,24), uma aptidão que todo fiel deve possuir (14,29; cf. 1Ts 5,21), determinar a origem dos fenômenos carismáticos: vêm de Deus, da natureza, do Maligno?

O dom das “línguas estranhas” (glossolalia) se complementa com sua “interpretação”. A Bíblia de Jerusalém (p. 2163) comenta: O carisma das “línguas”, ou “glossolalia”, é o dom de louvar a Deus, proferindo, sob a ação do Espirito Santo e em estado mais ou menos extático, sons ininteligíveis. É o que Paulo chama “falar em línguas” (1Cor 14,5.6.18.23.39) ou, segundo o texto grego, “falar em língua” (1Cor 14,2.4.9.13.14.19.26.27). Esse carisma acompanhou a Igreja nascente, sendo o primeiro efeito sensível da comunicação do Espírito aos homens (ver At 2,3-4; 10,44-46 e 11,15; 19,6).

Todas estas coisas as realiza um e o mesmo Espírito, que distribui a cada um conforme quer (v. 11).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2220) comenta: O emprego de preposição diferentes (pelo Espírito … segundo … no) bem mostra que, de todos os meios possíveis, o Espírito Santo é o meio graças ao qual são outorgados os carismas aos membros da comunidade. Nenhum desse carismas, entretanto, é o Espírito em pessoa. O único dom que poderá ser identificado com o Espírito é o do Amor.

É o dinamismo e a soberania do Espírito que decide (“conforme quer”), “distribui” e ativa (“realiza”).

Na Vida Pastoral (2016), Luiz Alexandre Solano Rossi comenta: A criatividade teológica de Paulo é chave para entender que Deus, em sua infinita sabedoria, distribuiu dons, ministérios e serviços a diferentes pessoas a fim de que elas, ao se encontrarem, completassem umas às outras. Na lógica de Paulo, se vivermos separados, sucumbimos no isolamento. E se nos aproximarmos, complementaremos o que falta a fim de que o corpo cresça em unidade. Mas não podemos deixar de perceber a crítica sutil que Paulo faz àqueles, na comunidade de Corinto, que desejavam ser proprietários do Espírito Santo. A ambição desses levava à divisão da comunidade; orgulhavam-se de ter determinados dons e, portanto, achavam-se superiores. A esses, Paulo afirmava de forma categórica que era o Espírito de Deus quem dava e fazia agir.

 

Evangelho: Jo 2,1-11

Antes de continuar com o evangelho do ano (neste ano C, Lucas), nossa liturgia nos apresenta um episódio do evangelho de João, o casamento em Caná. Na origem da festa da epifania (manifestação do Divino) estavam três conteúdos juntos: os três reis magos que adoram o menino Deus, o batismo de Jesus que o revela o Filho de Deus e o casamento de Caná como primeiro milagre que “manifestou sua glória” (v. 11). As igrejas orientais (ortodoxas e outras) ainda celebram estes três temas juntos, enquanto na Igreja Católica é uma sequência: Epifania (reis magos), Batismo do Senhor (encerra o tempo do Natal e, ao mesmo tempo, já conta como 1º Domingo do Tempo Comum) e o 2º Domingo do Tempo Comum do Ano C, dia de hoje, com o milagre em Caná. O evangelho de hoje é lido também na festa de Nossa Senhora Aparecida como exemplo da intercessão da mãe de Jesus.

Uma festa de casamento na aldeia é o episódio que sustenta um sistema de símbolos. O casamento é um momento festivo que costuma congregar muitas pessoas. No evangelho como livro, o relato se dirige ao grande círculo de discípulos fieis. Na transformação da água em vinho acontecida em Caná simboliza provavelmente a passagem da Antiga à Nova Aliança (um salto de qualidade, cf. Mc 2,18-22p).

(Naquele tempo) houve um casamento em Caná da Galileia. A mãe de Jesus estava presente. Também Jesus e seus discípulos tinham sido convidados para o casamento (vv. 1-2).

Nossa introdução costumeira na liturgia “Naquele tempo” substituiu o texto original: “No terceiro dia houve um casamento…”. No contexto são três dias depois do encontro com Filipe e Natanael (1,43), e contando desde o chamado de André (1,35ss) já é o sexto dia, que é o dia da criação do homem e da mulher (Gn 1,26-31). O evangelho abre-se desse modo com uma semana completa contada quase dia por dia (1,29.35.43; 2,1) e conclui-se com a manifestação da glória de Jesus. A “festa” pode ser também uma alusão à eucaristia (vinho) e o “terceiro dia” à ressurreição de Jesus (cf. Mc 14,25p).

A festa de casamento sustenta e unifica os símbolos. No AT, o matrimônio é símbolo frequente do amor de Javé pela comunidade, muitas vezes personificada na capital de Jerusalém: “Como um jovem se casa com uma donzela, assim te desposa aquele que te construiu”, lemos na 1ª leitura de hoje (Is 62,5; cf. Os 2-3; Is 1,21-26; 5,1-7; 49; 54; 62,1-9; Ez 16; Br 4-5). No NT, o casamento é símbolo da união do Messias com seu povo, a Igreja: “Esse mistério (símbolo/sacramento) é magnífico, e eu o aplico a Cristo e a Igreja… Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5,32-33.25; cf. Mt 22,1-14; 25,1-13; 2Cor 11,1-4; Ap 12; 19,7-9; 21,2).

Como o vinho veio a faltar, a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm mais vinho”. Jesus respondeu-lhe: “Mulher, por que dizes isto a mim? Minha hora ainda não chegou.” Sua mãe disse aos que estavam servindo: “Fazei o que ele vos disser” (vv. 3-5).

O vinho era a bebida comum em refeições especiais e simboliza a alegria da festa. O símbolo de Israel era a vinha e a videira (cf. Os 10,1; Is 5,1-7; 27,2-5; Jr 2,21; 5,10; 6,9; 12,10; Ez 15,1-8; 17,3-10; 19,10-14; Sl 80,9-19; Mc 12,1-12p; Mt 21,28-32; Jo 15,1-6).

No império romano, o vinho destronou a cerveja como bebida alcoólica preferida (a cerveja ainda não tinha o sabor atual, faltava o lúpulo que os mosteiros acrescentaram no séc. VIII d.C.). O vinho é símbolo da alegria e também do amor: “Tua boca é um vinho generoso” (Ct 1,2.4; 2,4; 4,10; 7,10; 8,2), e se anuncia como dom messiânico: “Plantarão vinhedos e beberão seu vinho” (Am 9,13-14; Os 14,7; Jr 31,12; Is 25,6; 62,9). É além disso símbolo do Espírito (At 2,15s). Acabar o vinho é sinal trágico: “Já não bebem vinho entre canções, e o licor tem sabor amargo para quem o bebe” (Is 16,9-10; 24,9; Jl 1,10).

O Evangelho apresenta o primeiro milagre de Jesus a partir de uma situação de carência; é o mesmo gênero de milagres na multiplicação dos pães e dos peixes que termina na abundância (6,1-15; 21,1-14; Mc 6,30-44p; cf. Jo 10,10).

Qual é o papel de Maria? Não é ela que faz o milagre (este só Deus pode fazer), mas intercede (roga por nós) na situação de carência e indica a solução (fazer a vontade de Deus obedecendo à palavra de Jesus).

Em Jo, Maria está presente ao primeiro milagre, que revela a glória de Jesus, e encontra-se novamente no pé da cruz (19,25-27). Vários dados se correspondem nas duas cenas: O narrador a chamou “mãe de Jesus”; Jesus a chama “mulher”. Este tratamento insólito de um filho para com sua mãe repete-se em 19,26, onde o seu significado se esclarece como reminiscência de Gn 3,15.20 (Maria é a nova Eva, “a mãe dos viventes”).

“Mulher, por que dizes isto a mim?” lit. “que há entre mim e ti?”; é um semitismo bem frequente no AT (Jz 11,12; 2Sm 16,10; 19,23; 1Rs 17,18; etc.) e no NT (Mt 8,29; Mc 1,24; 5,7; Lc 4,34; 8,28), empregado para rejeitar uma intervenção que se julga inoportuna, ou então para demonstrar a alguém que não se deseja relacionamento algum com ele. Somente o contexto poderá indicar o sentido mais exato. Aqui Jesus objeta a sua mãe que “a hora ainda não chegou” (palavra-chave em João, sobretudo apontando para a paixão e glorificação: 4,21; 5,25; 7,30; 8,20; 12,23.27; 13,1; 16,2.32; 17,1). Mais que repreensão, a frase parece um convite a não intrometer-se no assunto. Não cabe a Maria definir os tempos nem as ações de Jesus. Fixada pelo Pai, a hora de Jesus não deveria ser antecipada. O milagre conseguido com a intercessão de Maria será, no entanto, seu anúncio simbólico.

No casamento, ela é uma convidada importante com autoridade, traslada os criados ao serviço de Jesus (como o faraó a propósito de José em Gn 41,55). No casamento prefigurado deste e segundo a tradição bíblica, ela é a mãe do noivo: “com a coroa que lhe cingiu sua mãe, no dia do seu casamento, dia de festa de seu coração” (Ct 3,11; Sl 45,10; 1Rs 1,16.28; Jr 22,26). Podemos entendê-la como mãe do noivo (messias) da Nova Aliança. Com ela e seus discípulos, Jesus se retirará no final a Cafarnaum (v. 12).

Na Vida Pastoral (2016), Luiz Alexandre Solano Rossi comenta: Maria é a mãe de Jesus, mas também se apresenta como sua discípula. Maria vive para Jesus não apenas porque ele é seu filho, mas porque é sabedora de que ele é o Filho de Deus e o Salvador do mundo. Dessa forma, a primeira das discípulas dá o tom do que vem a ser o verdadeiro discipulado: fazer a vontade de Jesus.

Muitos cristãos desejam a vida de Cristo sem o discipulado. Querem tudo quanto Jesus pode dar, desde que não haja o seguimento e o compromisso. Na verdade, amamos Jesus e tudo quanto ele fez por nós, porém nos incomodamos com aquilo que ele nos manda fazer.

A expressão de Maria revela-nos uma verdade singular: Jesus sempre se apresenta na relação conosco como Senhor e, consequentemente, deveríamos fazer tudo quanto ele nos ordena. Às vezes temos a tendência, e em muitos casos a pretensão, de inverter essa situação e, dessa forma, apresentar-nos como aqueles que determinam o que Jesus pode ou não fazer em relação a nós. Às vezes, observando o comportamento de muitos cristãos, temos a vívida impressão de que Jesus foi transformado num servo requintado que está à disposição deles.

Estavam seis talhas de pedra colocadas aí para a purificação que os judeus costumam fazer. Em cada uma delas cabiam mais ou menos cem litros. Jesus disse aos que estavam servindo: “Enchei as talhas de água”. Encheram-nas até a boca. Jesus disse: “Agora tirai e levai ao mestre-sala”. E eles levaram. O mestre-sala experimentou a água, que se tinha transformado em vinho. Ele não sabia de onde vinha, mas os que estavam servindo sabiam, pois eram eles que tinham tirado a água (vv. 6-9).

“Mais ou menos cem litros”, lit. “duas a três medidas”, cerca de 40 litros por medida. O mestre-sala faz o papel de testemunha involuntária do prodígio: a água das abluções (Mc 7,3-4) não traz o amor e a fecundidade. Ele não sabia “de onde”: aponta ao ministério da origem de Jesus e de seus dons (4,11; 7,27; 8,14).

O que significa esta enorme quantia de vinho que dá para embriagar muita gente (cerca de 600 litros de vinho)? Nos casamentos da roça, muitas pessoas participam (a aldeia inteira). Mas além disso, Jesus veio “para que tenham vida e a tenham em abundância”. Como o vinho é símbolo de alegria e amor, pode-se dizer que Jesus e Maria trazem de volta a alegria que começou a faltar num casamento e na vida das pessoas (não só na hora da celebração), e será uma alegria infinita e de melhor qualidade.

O mestre-sala chamou então o noivo e lhe disse: “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (v. 10).

A mudança de água em vinho simboliza a passagem da velha à nova economia. O vinho novo é o vinho melhor (cf. Lc 5,39 que reflete a resistência dos judeus), o amor de Deus “melhor que o amor” dos dois humanos (Ct 1,2.4).

Este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galileia e manifestou a sua glória, e seus discípulos creram nele (v. 11).

O versículo final define o fato: é o “primeiro sinal”, portanto deve ser lido como cabeça de uma serie; é manifestação da glória de Jesus (glória do Filho único do Pai, segundo 1,14), como gesto de poder e de “bondade”; pelo sinal, os discípulos “creem” em Jesus. Em Caná, ele fará também o segundo sinal (cura à distância), encerrando um ciclo (4,54).

Os evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) tinham reservado o uso da palavra “sinal” (semeia) aos grandes pródigos que deviam caracterizar a inauguração do tempo messiânico (Mc 8,11s; Mt 12,38; 16,1-4; Lc 11,16.29), por contraste designavam os milagres como atos de “poder”  (dynamis). Jo retoma uma concepção do AT (Is 66,19) e considera os milagres como gestos simbólicos que devem indicar que em Jesus se realiza o acontecimento escatológico e divino.

Todo profeta devia provar a autenticidade de sua missão por meio de “sinais”, isto é prodígios realizados em nome de Deus (Is 7,11; cf. Jo 3,2; 6,29.30; 7,3.31; 9,16.33); esperava-se especialmente do Messias que ele renovasse os prodígios de Moisés (1,21). Jesus realizou, pois, ”sinais” para incitar os homens a crerem em sua missão divina (2,11.23; 4,48-54; 11,15.42; 12,37; cf. 3,11), porque essas obras testemunham que Deus o enviou (5,36; 10,25.37), que o Pai está nele (10,30), com o poder de sua gloria (1,14). O pai é quem realiza essas obras (10,38; 14,10). Muitos, no entanto, recusam a crer (3,12; 5,38-47; 6,36.64; 7,5; 8,45; 10,25; 12,37). O pecado deles permanece (9,41; 15,24; cf. Mt 8,3). No evangelho de João contamos sete “sinais”, ou seja, Jesus realiza sete milagres (cada vez maiores; o sétimo é a ressurreição de Lázaro quatro dias após a morte).

O maior sinal de Jesus, porém, será quando “chegar sua hora” de dar sua própria vida (seu sangue, sacramento do vinho) na cruz e ressuscitar “no terceiro dia” para vida em abundância e alegria sem limites.

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