20 de Janeiro de 2020, Segunda-feira – São Sebastião: Enquanto o noivo está com eles, os convidados não podem jejuar. Mas vai chegar o tempo em que o noivo será tirado do meio deles; aí, então, eles vão jejuar (vv. 19-20).

2ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: 1Sm 15,16-23

Na semana passada ouvimos da unção do primeiro rei de Israel, Saul, por Samuel, juiz e profeta. A nossa liturgia salta os sucessos do primeiro rei de Israel, Saul e de seu filho Jônatas, nas guerras contra os amonitas e filisteus (caps. 11; 13-14). No combate aos amalecitas (15,1-9), porém, Saul comete um erro: não obedece à ordem do Senhor de punir Amalec por ter atacado Israel no deserto (Ex 17,8-16; Dt 25,17-19), e não poupar nada, “entregarás tudo ao extermínio: homens, mulheres, crianças, recém-nascidos, bois e ovelhas, camelos e jumentos” (v. 3).

Este interdito (anátema) se referia primeiro a consagração de coisas ou pessoas que não podiam ser resgatas por dinheiro (Lv 27,21.28; Nm 18,14; Ez 44,29) e virou uma consagração ao extermínio, ligada à guerra santa (cf. Dt 7,2; 20,16-18; Js 6,17-21; Jz 21,10s; 1Rs 20,42); foi praticado por outros povos além de Israel. Nas guerras, os egípcios e assírios destruíram cidades e populações inteiras e documentaram isso em estelas e murais. Estas imagens e tradições serviam de modelo para o autor bíblico escrever sua narração. Para nós é importante perceber que estes relatos não foram escritos para descrever a essência e o agir de Deus, mas para encorajar pessoas em situações difíceis e desesperadas, na época do autor durante o reinado de Josias (640-609 a.C.), contra a expansão dos assírios que já ocupavam o reino do norte de Israel.

Na conquista da terra (desde Josué) tinha a finalidade de evitar qualquer contaminação com os cultos idolátricos (cf. Ex 22,19; Dt 7,1-6). Depois do exílio, a pena do anátema será substituída pela excomunhão (exclusão da comunidade, Esr 10,8; cf. Mt 18,17; 1Cor 5,1-11; 16,22 etc.).

A Bíblia de Jerusalém (p. 344) explica: “O anátema, em hebraico “herem”, comporta a renúncia a toda presa de guerra e sua atribuição a Deus: os homens e animais são mortos, os objetos preciosos são dados ao santuário. É um ato religioso, uma regra da guerra santa, que cumpre uma ordem divina (Dt 7,1-2; 20,13ss; 1Sm 15,3) ou um voto para garantir a vitória (Nm 21,2). Toda omissão se torna um sacrilégio que severamente é punido (Js 7; 1Sm 15,16-23). A regra absoluta admite, contudo, flexibilidades (Nm 31,15-23; Dt 2,34-35; 3,6-7; 20,13-14; Js 8,26-27). Esta noção primitiva do poder absoluto de Deus será corrigida pela noção da sua paterna misericórdia (cf. Sb 1,13 e especialmente o NT: Mt 5,44-45).

O autor narra que Saul e seus homens pouparam o rei dos amalecitas e os melhores dos bois e ovelhas para sacrificar depois estes animais ao Senhor (vv. 1-9). Deus chama Samuel de volta para destituir Saul (cf. vv. 10-15).

É o drama do reinado de Saul: foi escolhido por Javé e salvou seu povo (cap. 11; 14); todavia é rejeitado por Javé (caps. 13 e 15). Desde a preferência dada ao sacrifício de Abel e não ao de Caim (sem dizer o motivo, cf. Gn 4), ao patriarca Jacó em detrimento do seu irmão Esaú (Gn 25,23; cf. Rm 9,13) e a eleição do povo de Israel (Dt 7,6; Am 3,2), até a vocação dos apóstolos, de Paulo e de cada cristão, a Bíblia toda proclama a gratuidade das escolhas divinas. Mas a manutenção da graça depende da fidelidade do eleito. Saul não foi fiel à Palavra de Deus.

O cap. 15 ignora a primeira rejeição de Saul (por ter oferecido um holocausto não autorizado em 13,8-15; inserção pós-exílica) e condena somente a pessoa Saul, não a instituição real. Mas sublinha a oposição, inerente à monarquia israelita, entre a política profana e as exigências de Javé, oposição que se traduz pela tensão entre rei e profeta, aqui Saul e Samuel, mais tarde Davi e Natã (2Sm 11-12), Acab e Elias (1Rs 17-22), Ezequias e Isaias (2Rs 19-20; Is 37-39), Sedecias e Jeremias (2Rs 24-25; Jr 52).

Samuel disse a Saul: “Basta! Deixa-me dizer-te o que o Senhor me revelou esta noite”. Saul disse: “Fala!” Então Samuel começou: “Por menor que sejas aos teus próprios olhos, acaso não és o chefe das tribos de Israel? O Senhor ungiu-te rei sobre Israel e te enviou em expedição, com a ordem de eliminar os amalecitas, esses malfeitores, combatendo-os até que fossem exterminados. Por que não ouviste a voz do Senhor, e te precipitaste sobre os despojos e fizeste o que desagrada ao Senhor?” (vv. 16-19).

O diálogo segue um esquema conhecido da denuncia profética, com elementos de interrogatório judicial. Aquele que declarou e ungiu Saul rei sobre Israel pode dar-lhe ordens e dele exigir contas. Um rei pela graça de Javé que não obedece a Javé não pode apoiar-se em oferendas a Javé.

A Bíblia de Jerusalém (p. 441) comenta: Saul e o povo não cumpriram o anátema, que devia atingir todos os seres vivos, não, contudo, para subtrair a Javé o melhor despojo, mas para lhe oferecer em sacrifício (v. 15). Saul agiu de boa fé, e aí está o drama: sua falta é ter escolhido, para comprazer o povo, outra maneira de honrar a Deus. Entre Javé que o elegeu e o povo que o aclamou e reconheceu, Saul procurou um compromisso, e não se decidiu exclusivamente por Javé.

Saul respondeu a Samuel: “Mas eu obedeci ao Senhor! Realizei a expedição a que ele me enviou. Trouxe Agag, rei de Amalec, para cá, e exterminei os amalecitas. Quanto aos despojos, o povo reteve, das ovelhas e dos bois, o melhor do que devia ser eliminado, para sacrificar ao Senhor teu Deus em Guilgal” (vv. 20-21).

Saul se sente incomodado no interrogatório e tenta justificar-se. O anátema era uma consagração das vidas ao Senhor, equivalia a um sacrifício no contexto quase litúrgico da guerra santa; portanto, não tinha sentido subtrair o já consagrado para voltar a sacrificá-lo.

Aliás, que Saul não acabou com os amalecitas prova-o a sua presença em tempos posteriores: 1Sm 27,8; 30,1s.17s (cf. 1Cr 4,43); embora seja que Amalec tenha desaparecido como povo autônomo.

Mas Samuel replicou: “O Senhor quer holocaustos e sacrifícios, ou quer a obediência à sua palavra? A obediência vale mais que o sacrifício, a docilidade mais que oferecer gordura de carneiros. A rebelião é um verdadeiro pecado de magia, um crime de idolatria, uma obstinação.” (vv. 22-23a).

O oráculo propõe um princípio geral sobre sentido e valor de sacrifícios; reaparece no AT com variações e pode-se aplicar ao culto (cf. umas passagens clássicas: Sl 50; Is 1; Eclo 34-35; no NT: Mc 7,8-13; 12,32s; Mt 9,13 cita Os 6,6: “Quero misericórdia, mais que sacrifícios”). Do princípio geral flui a sentença condenatória: pode haver um culto que seja contradição, apostasia, uma piedade que rejeita o Senhor (cf. as críticas proféticas ao culto hipócrita: por ex. Am 5,21-27; Is 58; Jr 7; 26 etc.).

Assim, porque rejeitaste a palavra do Senhor, ele te rejeitou: tu não és mais rei” (v. 23b).

Com todo este relato, a redação na época do rei Josias (640-609 a.C.) exalta a casa de Davi (da tribo de Judá) à qual Josias pertence em detrimento da tradição do Norte (Saul da tribo de Benjamim). Como o povo rejeitou Javé Deus (8,7), agora Javé rejeita Saul (vv. 23.26).

A causa é a desobediência a Javé, palavra-chave repetida sete vezes (obedecer/desobedecer) no capítulo. Esta é a ênfase da teologia pós-exílica representada por outra redação, sacerdotal, que promove a obediência a Javé Deus.

A Bíblia do Peregrino (p. 515s) ainda questiona: Neste capítulo se consuma a rejeição de Saul. Ele continuará atuando como rei, mas seu reino começa a dividir-se e não passará a um sucessor da família. É fácil de entender a sentença de Samuel: “Porque rejeitaste o Senhor, o Senhor te rejeita”. É difícil compreender a causa de tão dura condenação. É justo acabar com todo um povo, mulheres e crianças inclusive, e isso por um crime cometido há séculos? Quando as guerras são produtivas, porque terminam em saque e porque dão mulheres e crianças para o trabalho e para a escravidão, um povo pode sentir-se tentado a declarar guerra apenas por interesse: essa guerra seria um ato de banditismo legalizado. Quando está proibida toda espécie de saque, a guerra não será tentação; apenas se empreenderá em legítima defesa. Este resultado secundário da lei do extermínio total é bom; mas justifica tal extermínio? E se a guerra tem por finalidade executar uma sentença, por que os justos hão de pagar pelos pecadores? E, caso admitamos que acidentalmente os inocentes sofram não como membros de um corpo social de cuja sorte participam, por que, concluída a guerra, se há de executar o extermínio total?

Esse é problema que o presente capítulo e outros semelhantes do AT nos colocam. À luz do ensinamento de Cristo, o mandato de Samuel nos desconcerta, nos repugna. Visto como etapa superada na historia da revelação, ainda não o compreendemos plenamente. O que nos ocorre é sobretudo isto: o Senhor escolhe um povo, com seus costumes e instituições, para conduzi-lo lentamente a níveis mais altos e puros. O Senhor da vida, que não anula sem mais a mortalidade infantil, que castiga os pais nos filhos até a quarta geração, que não impede os acidentes mortais nem as catástrofes naturais, aceita provisoriamente uma instituição guerreira que causa a morte de inocentes. O autor sagrado, ao contar a historia, transforma essa aceitação genérica num mandamento concreto e formal… Mas não tentamos dissimular o espanto nem reprimir o protesto. Este capítulo perturba um cristão repetidas vezes; essa perturbação é um componente do seu sentido que nos obriga a perguntar.

Evangelho: Mc 2,18-22 

Nos dias anteriores, ouvimos sobre o perdão na cura do paralítico (vv. 1-12) e o banquete na casa do cobrador de impostos, Levi (vv. 13-21). Hoje apresenta-se a terceira controvérsia em Mc, desta vez sobre o jejum, tradicionalmente praticado por lei ou por devoção, como expressão de arrependimento, humildade ou luto (cf. Zc 7,3-5; Jl 2,12–17 e a crítica em Is 58; Mt 6,16-18).

Nos dias anteriores, ouvimos sobre o perdão e a cura do paralítico (vv. 1-12) e o banquete na casa do cobrador de impostos, Levi (vv. 13-21). Hoje se apresenta a terceira controvérsia em Mc, desta vez sobre o jejum, tradicionalmente praticado por lei ou por devoção, como expressão de arrependimento, humildade ou luto (cf. Zc 7,3-5; Jl 2,12–17 e a crítica em Is 58; Mt 6,16-18).

Os discípulos de João Batista e os fariseus estavam jejuando. Então, vieram dizer a Jesus: “Por que os discípulos de João e os discípulos dos fariseus jejuam, e os teus discípulos não jejuam?” (v. 18).

Não só os fariseus, também os discípulos de João Batista se surpreenderam com o estilo de vida de Jesus e seus discípulos (cf. Mt 11,2s.19p) e querem saber o porquê (v. 18). João Batista já estava preso (1,14), depois morto (6,16-29), mas seus discípulos continuavam a ser um grupo considerável em Palestina e nos países vizinhos (em Éfeso, cf. At 19.1-7), uma certa concorrência aos cristãos que precisava ser esclarecida (cf. 9,13p; 11,30-33p; Mt 11,2-19p; 17,10-13p; Lc 1-2 e o testemunho em Jo 1,6-8.15.19-35; 3,22-30). A ascese do Batista no deserto (1,6) está em contraste com as refeições de Jesus nas cidades (2,15-17; Mt 11,18s; Lc 7,33-36; 14,1; 15,1s etc.).

No judaísmo existiam o jejum público (Jl 2,12-17; Jn 3) e individual (privado, cf. Mt 6,16- 18) e se distinguia o jejum ordenado pela Lei (no dia da expiação: Lv 16,29; 23,26-32) do jejum voluntário do qual se trata aqui. Os escribas tinham discípulos, os fariseus (como partidários) não, mas a maioria dos escribas eram fariseus.

Jesus respondeu: “Os convidados de um casamento poderiam, por acaso, fazer jejum, enquanto o noivo está com eles? Enquanto o noivo está com eles, os convidados não podem jejuar. Mas vai chegar o tempo em que o noivo será tirado do meio deles; aí, então, eles vão jejuar (vv. 19-20).

Bem no estilo dos mestres do judaísmo (rabinos), Jesus responde com outra pergunta comparando-se a um “noivo” na festa de casamento (v. 19; cf. Ct 5,1). No AT, Javé Deus é o esposo de Israel, com quem selou aliança (cf. Os 2,16-25; Is 54 etc.). O messias é noivo, esposo da nova aliança (Mt 22,1-14; 25,1-13; Ap 19,7-9; 21,1.9). João Batista não era o esposo nem o messias (cf. Jo 3,28s). Os discípulos de João ainda estão na velha mentalidade da penitência e não descobrem que a festa já começou pela proximidade do Reino que Jesus representa (1,15).

Mas “vai chegar o tempo” (indica algo escatológico, cf. Lc 17,22; 21,6; Jr 16,14; 19,6; 23,5; 28,52; 38,27 etc.), “em que o noivo será tirado” (v. 20), ou seja, o fim trágico da morte de Jesus (cf. Is 53,8; Gn 5,24). É o primeiro anúncio, ainda indireto, da paixão em Mc (explícito em 8,31; 9,31; 10,33-34). Em Jo 16,16-24, alegria e luto são contrapostos.

“Aí, então, eles vão jejuar” (v. 20). Sabemos pouco sobre o jejum na Igreja primitiva (cf. At 13,2s; 14,23; cf. variações de texto em Mc 9,29; 1Cor 7,5; At 10,30). Em Didaqué 8 (séc. II) introduz-se um jejum na comunidade todas as quartas e sextas-feiras, contrastando o jejum tradicional na sinagoga nas segundas e quintas-feiras. Tertuliano e Hipólito (séc. III) mencionam um tempo de jejum antes da Páscoa (quaresma).

Na Igreja Católica hoje, há dois dias de jejum obrigatório (não para criancinhas, idosos e doentes): a Sexta-feira Santa é o “dia em que o noivo foi tirado”, ou seja, o dia da morte de Jesus é o dia de jejum e abstinência. Outro dia desse é a Quarta-feira de Cinzas que lembra a morte como condição humana, no início da Quaresma. Nas outras sextas-feiras (e também quartas), os católicos são convidados a fazerem sacrifícios, mas o jejum pode ser substituído por esmola, oração etc.

Ninguém põe um remendo de pano novo numa roupa velha; porque o remendo novo repuxa o pano velho e o rasgão fica maior ainda. Ninguém põe vinho novo em odres velhos; porque o vinho novo arrebenta os odres velhos e o vinho e os odres se perdem. Por isso, vinho novo em odres novos” (vv. 21-22).

A resposta ainda apresenta uma comparação dupla no estilo sapiencial. O casamento inaugura uma vida nova, não é um tapa-buraco, por isso “ninguém põe um remendo de pano novo numa roupa velha” e “ninguém põe vinho novo em odres velhos” (cf. Jó 32,19; Js 9,4; cf. a versão no evangelho apócrifo de Tomé 47 e Lc 5,39; Eclo 9,10).

As imagens das vestes e do vinho combinam com o símbolo do casamento. As instituições velhas não podem conter o amor do noivo Jesus, há de começar algo novo, uma família nova, uma aliança nova (cf. Gn 2,24). Jesus não é um profeta ou letrado a mais (cf. 1,22), ele traz algo novo (o reino de Deus, cf. 1,15) que tornará “antiquada” a antiga aliança: “o antigo passou, chegou o no(i)vo” (cf. 2Cor 5,17; Hb 8,13; Ap 21,5).

A conclusão “por isso, vinho novo em odres novos” pode ser um anexo de Mc que quer dizer a seus leitores que precisam de novas formas para a vida religiosa, a dos fariseus não presta mais (cf. 7,3s.19).

O site da CNBB resume: Em todas as épocas, as pessoas sempre valorizaram as práticas religiosas, e, entre essas práticas, o jejum. Na época de Jesus, não era diferente. Por isso, os fariseus procuram Jesus e o questionam sobre a prática do jejum por parte dele e dos seus discípulos. Jesus nos mostra que as práticas religiosas só têm sentido enquanto são manifestações do relacionamento que temos com Deus, e que o Novo Testamento apresenta essa grande novidade em relação ao Antigo. Assim, percebemos que Jesus veio nos trazer algo realmente novo, e não apenas colocar rótulos novos nas coisas velhas que já existiam antes da sua vinda ao mundo.

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