20 de Novembro de 2019, Quarta-feira: ‘Muito bem, servo bom. Como foste fiel em coisas pequenas, recebe o governo de dez cidades’.

33ª Semana do Tempo Comum  

Leitura: 2Mc 7,1.20-31

Ouvimos hoje mais uma narrativa de um martírio comovente. Depois do martírio do ancião Eleazar (6,18-31; leitura de ontem) vêm outras duas gerações: uma mãe com seus filhos, até o menor; depois do doutor da Lei, personagem oficial, uma mulher anônima representando o povo.

O martírio de uma mãe com seus sete filhos é tema dramático e capaz de comover os leitores. Além disso, é uma figura significativa para ouvintes judeus, porque a mãe do povo é “Sião” (o morro onde foi construído Jerusalém), segundo a tradição profética (cf. Is 49; 54; 60; 62). O anonimato em 2Mc 7 reforça essa função simbólica. Em Jr 15,9, Sião é a mãe de sete filhos. Também há uma mulher e sete irmãos no exemplo fictício que os saduceus dão a Jesus em Mc 12,18-27p.

A perseguição dos judeus pelo rei greco-sírio Antíoco IV Epífanes, cujo meios eram na época assaz cruéis, de fato haviam-se estendido às mulheres e às crianças (cf. 1Mc 1,60s; 2Mc 6,10). O fundo da narrativa é, portanto, histórico, e a elaboração literária se verifica especialmente nos discursos atribuídos aos protagonistas.

Tema comum dos discursos dos mártires é morrer pela Lei, com a esperança da ressurreição. Para cada um deles, o sofrimento e a morte levam à ressurreição (vv. 9.14.23.29.36) que a mãe justifica com poder do Todo-Poderoso que criou do nada e pode criar de novo (v. 28; cf. Rm 4,17).

A Bíblia do Peregrino (p. 1033) comenta: Para todo o povo, esses sentimentos marcam o cume e o fim da cólera. Como haverá um tempo de misericórdia em que voltarão à vida (vv. 23.29), assim chega um momento histórico em que Deus se compadece (v. 6) e se torna propício (v. 37).

A crença na ressurreição só surge aos poucos nos livros mais novos do AT: primeiro se fala simbolicamente da ressurreição do povo (Ex 37,1-14), depois se espera a reabilitação de indivíduos falecidos (Sl 16,9s; 49,16; 73,24), finalmente se expressa explicitamente a imortalidade da alma (Sb 3,1-5) e a ressurreição da carne (Dn 12,1-3 e 2Mc 7, ambos os textos relacionados com a perseguição de Antíoco Epífanes). Em 2Mc não só importa o fim dos tempos (como em Dn 12,1-3), mas a reabilitação dos mártires logo após sua morte. Eles morrem pelos pecados do povo (vv. 32.38).

2Mc menciona também a intercessão dos santos (15,12-16) e a oração pelos falecidos (12,39-45), talvez tenha sido esse o motivo pelo qual o primeiro protestante Martinho Lutero aceitou como AT só a Bíblia Hebraica dos judeus e excluiu 1-2Mc e outros cinco livros do AT que foram transmitidos apenas em grego (Tb, Jt, Sb, Eclo, Br), mas fazem parte da Bíblia católica.

Aconteceu que foram presos sete irmãos, com sua mãe, aos quais o rei, por meio de golpes de chicote e de nervos de boi, quis obrigar a comer carne de porco, que lhes era proibida (v. 1).

 A causa parece ser trivial: um tabu alimentar na lei judaica (Lv 11,7; Dt 14,8) ligado a sacrifícios idolátricos (v. 42; Is 65,4; 66,3). Só que nesse ponto concreto está em jogo toda a fidelidade à Lei de Deus (cf. 6,18-31; só no NT, Jesus declara puros todos os alimentos; cf. Mc 7,19; At 10,4-10).

Mas especialmente admirável e digna de abençoada memória foi a mãe, que, num só dia, viu morrer sete filhos, e tudo suportou valorosamente por causa da esperança que depositou no Senhor. Cheia de nobres sentimentos, ela exortava a cada um na língua de seus pais e, revestindo de coragem varonil sua alma de mulher, dizia-lhes: (vv. 20-21).

O autor se alarga pouco na ação: uns traços para ambientar a cena e para descrever a crueldade do tirano (o livro apócrifo 4 Mc se deleitará na descrição das torturas). Os discursos dominam a cena: é curioso que os antagonistas não falam em estilo direto, as suas palavras se incorporam à narração em estilo indireto, se abreviam ou se resumem. Os sete irmãos e a mãe falam, ou melhor, declamam suas alocuções, em estilo direto.

“Na língua de seus pais”, a língua dessa família já era o aramaico, mas o autor provavelmente entende aqui que era o venerável hebraico, já não mais em uso cotidiano na época do autor (100-63 a.C.), mas falado na liturgia da sinagoga (cf. vv. 21.27; 12,37; 15,29).

“Não sei como aparecestes em minhas entranhas: não fui eu quem vos deu o espírito e a vida nem fui eu quem organizou os elementos dos vossos corpos. Por isso, o Criador do mundo, que formou o homem na sua origem e preside à geração de todas as coisas, ele mesmo, na sua misericórdia, vós dará de novo o espírito e a vida, pois agora vos desprezais a vós mesmos, por amor às suas leis” (vv. 22-23).

Texto clássico é o Salmo 139,13-16 (cf. Jó 10,8) conhecido por qualquer judeu piedoso. O novo aqui é a esperança na ressurreição! O autor atribui um papel decisivo na ressurreição ao espírito, dom de Deus ao mesmo título do que a vida (duas vezes: “espírito e vida”, cf. Gn 2,7; Jo 20,22). Com efeito, aquele que pode dar a vida (e o espírito) pode devolvê-la.

O poder criador é base da “esperança”, porém ainda mais da “misericórdia” de Deus, que atuará plenamente no futuro definitivo: é éleos (piedade, compaixão; cf. kyrie eleison) em grego, que traduz o hésed hebraico (amor, misericórdia).

Na unidade familiar se reflete a unidade do povo fiel. Como cada um “recuperará” seus membros amputados (v. 11), a mãe “recuperará” seus filhos (v. 29).

Antíoco julgou que ela o desprezasse e suspeitou que o estivesse insultando. Como o mais novo dos irmãos ainda estivesse vivo, o rei tentava persuadi-lo. E não só com palavras, mas também com juramento, prometeu fazê-lo rico e feliz, além de torná-lo seu amigo e confiar-lhe altas funções, contanto que abandonasse as leis de seus antepassados. Vendo que o jovem não lhe prestava nenhuma atenção, o rei chamou a mãe e exortou-a a dar conselhos ao rapaz, para que salvasse a sua vida (vv. 24-25).

A fala do rei é apresentada só indiretamente. “Conselhos para que salvasse a sua vida” pode ter uma ressonância irônica: o rei julga oferecer a “salvação”, mas a mãe pensa em outra salvação. “Amigo do rei” é título oficial (cf. 8,9; 1Mc 10,65; 11,27; Jo 19,12). A tentativa de persuadir o fiel com ofertas que parecem razoáveis faz parte das narrativas dos martírios (6,21s; cf. 1Mc 2,17s).

Como ele insistisse com muitas palavras, ela concordou em persuadir o filho. Inclinou-se então para ele e, zombando do cruel tirano, assim falou na língua de seus pais: “Filho, tem compaixão de mim, que te trouxe nove meses em meu seio e por três anos te amamentei; que te criei e eduquei até a idade que tens, sempre cuidando do teu sustento. Eu te peço, meu filho: contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma. Não tenhas medo desse carrasco. Pelo contrário, sê digno de teus irmãos e aceita a morte, a fim de que eu torne a receber-te com eles no tempo da misericórdia” (vv. 26-29).

 

É um momento culminante, cuidadosamente elaborado. O paradoxo dessa salvação é marcado pela repetição da raiz de éleos (misericórdia, compaixão, piedade). O filho, aceitando a morte, terá “compaixão” da mãe (v. 27) – argumento estranho (ela prefere vê-lo morrer com honra do que viver na vergonha de ter negado a fé) – e é o martírio que conduzirá à “misericórdia” de Deus, que o ressuscitará (v. 29). Pela apostasia (desistindo da fé), o menino se tornaria “amigo” do rei (v. 24), e a mãe o perderia; pela fidelidade extrema, a mãe o “recuperará”, a fraternidade estará consumada.

A Bíblia do Peregrino (p. 1034s) comenta: Ouve-se facilmente a exortação do autor à grande família dos judeus: é a matrona quem a pronuncia. Ainda que todo Israel, até o último, morresse pela Lei, podia-se esperar a reconstituição escatológica. A capital de Jerusalém em imagem de matrona (Is 49,21) perguntava ao ver seus filhos voltarem: “Quem gerou estes para mim? Eu, sem filhos e estéril, quem os criou? Tinham-me deixado sozinha; de onde estes vêm?” A mãe anônima nesta leitura dá uma resposta profunda a esta pergunta.

Em v. 28, temos a primeira afirmação da criação ex níhilo (do nada): “não foi de coisas existentes que Deus fez”, modo novo de exprimir a criação, já entrevista em Is 44,24 (cf. Jo 1,3; Cl 1,15s; junto com poder da ressurreição, cf. Rm 4,17). Segundo o filósofo judeu Fílon, “as coisas que não existem” (variação em alguns manuscritos de 2 Mc) designam a matéria não organizada (cf. Gn 1,2; Sb 11,17).

Mal tinha ela acabado de falar, o jovem declarou: “Que esperais? Não obedecerei às ordens do rei, mas aos mandamentos da Lei dada aos nossos pais por Moisés. E tu, que inventaste toda a espécie de maldades contra os hebreus, não escaparás às mãos de Deus” (vv. 30-31).

 

A interpretação do momento salvífico é central. Neste versículo se recoloca a questão: obedecer ao decreto do rei pagão ou aos os decretos da Lei de Moisés (a carne de porco de v. 1 é só uma especificação);

As maldades contra os “hebreus” (termo arcaizante, aqui e em 11,13; 15,37; não em 1Mc; cf. também Jt 10,12; 12,11; 14,18; a tradução grega dos Setenta (LXX) raramente dele se serve fora do Pentateuco) lembram a crueldade do faraó na opressão dos hebreus no Egito (cf. Ex 1,15-22, a coragem das parteiras). Mas é na colônia dos judeus no Egito, na cidade helenista de Alexandria, onde foi escrito 2Mc.

A mãe que morreu em último lugar (v. 41) e seus sete filhos foram exemplares para os cristãos por causa da coragem e valentia no martírio. A retórica de seus desafios e ameaças ao tirano, junto com a profissão de fidelidade, inspiraram muitas narrações de martírios. Nas suas pregações, os padres da Igreja usavam seu exemplo (e o de Eleazar) como mártires pré-cristãos aos quais foi prestado culto. Em diversos lugares se venerava seu túmulo; foram-lhes dedicados louvores.

A Bíblia de Jerusalém (p. 852) comenta: O culto dos “sete irmãos Macabeus” estendeu-se até o Ocidente, onde várias igrejas foram-lhes dedicadas. A narrativa, chamada “Paixão dos santos Macabeus”, teve larga difusão e serviu de modelo a diversas atas de mártires.

Evangelho: Lc 19,11-28

Por dez capítulos estávamos acompanhando no Ev de Lc a viagem de Jesus a Jerusalém (desde 9,51) na qual instruía os discípulos. Antes da entrada de Jesus nesta cidade, Lc apresenta ainda uma parábola, que tem em comum com Mt (em lugar de “minas”, Mt 25,14-30 fala de “talentos”). Nos ensina que os dons não são propriedade, mas depósito encomendado, e que o homem tem de colaborar para que rendam. Deus não “o dá enquanto dormem” (Sl 127,2).

Apesar das divergências consideráveis que separam a parábola das minas da parábola dos talentos, a maioria dos exegetas conclui em favor da identidade, ou seja, ambos os evangelistas copiaram da mesma fonte Q (coleção perdida de palavras de Jesus), tendo cada evangelista livremente modificado e desenvolvido o tema inicial.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2019) comenta as modificações da parábola por Lc: Primeiro, colocando-a logo antes da entrada régia de Jesus em Jerusalém; em seguida, misturando-lhe vários traços régios tomados da história de Arquelau (… vv. 12.14.27); finalmente, tratando-a de modo fortemente alegórico. Neste lugar e sob esta forma, a parábola anuncia o Juízo régio que Jesus exercerá por ocasião da sua volta, no advento definitivo do Reino de Deus.

Outros acham que Lc teria fundido duas parábolas fundidas numa só, a das minas (vv. 12-13. 15-26) e a do pretendente à realeza (vv. 12.14.27). Este último se parece com Arquelau, filho de Herodes. Lc gosta de se referir à história humana (cf. 1,5; 2,1s; 3,1s; 13,1-5; 19,43s; 23,28-31; At 4,6; 5,34-39; 12,1-3.20-23 etc.).

Jesus acrescentou uma parábola, porque estava perto de Jerusalém e eles pensavam que o Reino de Deus ia chegar logo (v. 11).

A introdução é própria de Lc (como o final v. 28) e esclarece a dupla parábola. Jesus vai subindo a Jerusalém (cf. Sl 122,5: “ali estão os tronos da justiça, os tronos da casa de Davi”), mas não para tomar posse como rei, sim para padecer e ser glorificado (cf. 9,22.44; 18,31-33; 24,26.46s).

A Bíblia do Peregrino (p. 2519) comenta o caminho de Jesus: Vai caminhar para receber do Pai o poder real (cf. Sl 72,1-2; 110,1). Os discípulos pensam que vai proclamar imediatamente em Jerusalém, o reinado de Deus prometido e anunciado, sem passar pela paixão “Diante do Senhor, que está chegando, já está chegando para reger a terra” (Sl 96,13; 98,9). Não é assim: para receber o poder real, primeiro terá que morrer. Então voltará com poder, como rei, mas não imediatamente.

Como os judeus da época, os discípulos esperavam o reino de Deus dentro de curto prazo, “que ia chegar logo” (cf. At 1,6). A parábola de Lc é uma alerta contra essa impaciência (cf. 17,23). Ela mostra que os discípulos terão de ocupar-se com as tarefas determinadas (cf. 12,35-48) por um longo período antes da volta do Senhor (cf. 17,23). Se o fizerem devidamente, participarão afinal do governo do rei celeste, ao passo que os que resistiram ativamente à sua missão serão condenados e executados (v. 27).

Então Jesus disse: “Um homem nobre partiu para um país distante, a fim de ser coroado rei e depois voltar” (v. 12).

Um salmo messiânico começa assim: “Ó Deus, confia teu julgamento ao rei, tua justiça a um filho de rei” (Sl 72,1). No Império Romano, toda investidura de um rei vassalo deve ser ratificada por Roma. O v. 14 mostra que esse traço se inspira na viagem de um dos filhos de Herodes, Arquelau, à Roma no ano 4 a.C. para consolidar em seu favor o testamento do seu pai Herodes Magno (o mais filho mais velho que ainda vivia na morte do pai era Arquelau que governaria a Judeia com Jerusalém; seu irmão Antipas apenas a Galileia). Essa narração está particularmente bem situada em Jericó (v. 1), onde Herodes Grande havia morrido e Arquelau tinha reformou o palácio real magnificamente.

Em Lc, a história tornou-se uma alegoria: a viagem “para um país distante” simboliza a despedida de Jesus na morte e na ascensão; a volta depois da entronização designa sua parusia (volta triunfal) para o juízo final com recompensas e castigos. A longa distância explica a demora da parusia.

Chamou então dez dos seus empregados, entregou cem moedas de prata a cada um, e disse: ‘Procurai negociar até que eu volte’ (v. 13).

Lc menciona dez funcionários, Mt não diz o número. Para um homem de realeza não bastam apenas três servos, mas no decorrer da narração só três vão agir (como em Mt), segundo a norma usual das parábolas (cf. 10,33; 14,18-20; 19,16-24; 20,10-12).

Em Mt, a quantia confiada é bem maior (um “talento” corresponde a 34 quilos). Em Lc, o dinheiro entregue se chama “mina” (uma sexagésimo parte de um talento, cerca de 570 gramas): em Atenas equivale a cem dracmas, na Palestina a cinquenta siclos de prata, uma quantidade moderada (50 diárias de um lavrador, cf. Mt 20,2; Lc 7,41; 15,8) que contrasta com a enormidade da recompensa (vv. 17.19: cidades inteiras!). Lc quer sublinhar que a tarefa dos servos é desproporcional à sua recompensa, é um “negócio mínimo” (v. 17; cf. 16,10). Em Lc, cada servo recebe a mesma soma (em Mt não) e só os rendimentos serão diferentes.

Seus concidadãos, porém, o odiavam, e enviaram uma embaixada atrás dele, dizendo: ‘Nós não queremos que esse homem reine sobre nós’. Mas o homem foi coroado rei e voltou (vv. 14-15a).

Supõe-se que os cidadãos o odeiem sem razão e se oponham a um direito. No contexto do evangelho, os conterrâneos ou “concidadãos” são judeus em relação a Jesus (cf. Jo 18,35).

No mesmo ano 4 a.C., uma delegação de cinquenta judeus seguiu a Arquelau, com o fito de fazerem malograr os trâmites. César Augusto, porém, confirmou o testamento de Herodes, mas sem o título rei para Arquelau (somente “etnarca”). Na sua volta, Arquelau exerceu vingança sangrenta. Lc evoca estas lembranças para descrever a rejeição da realeza de Jesus por Israel oficial (cf. a lamentação sobre Jerusalém em 13,34: “não quiseste”).

Em 6 d.C., outra embaixada dos judeus foi a César Augusto em Roma pedindo abolição do governo de Arquelau, mais cruel que seu pai (cf. Mt 2,22). Desta vez, ele foi deposto e exilado na Gália (atual França). Judeia começou a ser administrada por governadores romanos (com sede em Cesareia no litoral), na época da paixão de Jesus era Pôncio Pilatos.

Mandou chamar os empregados, aos quais havia dado o dinheiro, a fim de saber quanto cada um havia lucrado (v. 15b).

Aqui começa a cena de prestação de contas, mais ou menos semelhante em Mt e Lc, que ambos pensam no juízo final. Investido com o poder supremo, o rei estabelece a hora de prestar contas. Em Mt, não é um rei, apenas um homem rico, mas uma alusão ao julgamento na ocasião da parusia. Mas Lc, pelo contexto, alude igualmente à realeza de Jesus e no drama de Israel.

O primeiro chegou e disse: ‘Senhor, as cem moedas renderam dez vezes mais’. O homem disse: ‘Muito bem, servo bom. Como foste fiel em coisas pequenas, recebe o governo de dez cidades’.

“Senhor” aqui é título régio que convém ao pretendente enfim investido, e melhor ainda a Jesus em sua glória escatológica. No texto paralelo de Mt não se trata de rei, e a mesma palavra indica simplesmente o proprietário.

A fórmula é rigorosa: “teu dinheiro”. Um provérbio diz: “Mão diligente mandará, mão negligente servirá” (Pr 12,24; 17,2). Mas o empregado não considera isso como mérito, talvez por ter depositado o dinheiro no banco (cf. v. 23). Para um ouvinte religioso, significa que sem ajuda de Deus, nada rende (cf. 1Cor 3,6s). O servo é elogiado pessoalmente (“servo bom”). O contraste entre o negócio mínimo (“coisas pequenas”, cf. 16,10) e a recompensa enorme (autoridade sobre dez cidades) chama atenção e talvez queira comparar a tarefa humana em relação à recompensa divina (2Cor 4,17; Rm 8,18; cf. Lc 17,7-10 e a situação incomum em que o Senhor serve ao empregado em 12,37; 22,27).

O segundo chegou e disse: ‘Senhor, as cem moedas renderam cinco vezes mais’. O homem disse também a este: ‘Recebe tu também o governo de cinco cidades’ (vv. 18-19).

Também o segundo empregado teve êxito nos seus negócios e recebe a recompensa na mesma proporção. A falta do elogio “servo bom” não significa logo menos reconhecimento, porque o evangelista resume.

Chegou o outro empregado e disse: ‘Senhor, aqui estão as tuas cem moedas que guardei num lenço, pois eu tinha medo de ti, porque és um homem severo. Recebes o que não deste e colhes o que não semeaste’ (vv. 20-21).

O terceiro servo guardou o dinheiro apenas num lenço (em Mt 25,25, o enterrou no chão), quer desviar da sua preguiça e falta de reponsabilidade acusando o patrão de exigente e “severo”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2519) comenta: A ideia que esse empregado tem do patrão é contraria à realidade: o patrão foi razoável ao emprestar e muito generoso ao remunerar. O acomodado é covarde quer descarregar sua culpa no patrão, e a si mesmo se condena (cf. Pr 12,27), e e a si mesmo se condena (cf. Pr 12,27), descreve o rei como déspota implacável, como o Faraó (Ex 5).

O homem disse: ‘Servo mau, eu te julgo pela tua própria boca. Tu sabias que eu sou um homem severo, que recebo o que não dei e colho o que não semeei. Então, porque tu não depositaste meu dinheiro no banco? Ao chegar, eu o retiraria com juros’ (vv. 22-23).

O rei torna as palavras do servo mau como norma do seu julgamento, “severo”. Não foi só opinião ou autodefesa do servo, mas calunia ao patrão, portanto o servo não é só preguiçoso, mas “mau”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2520) comenta: Teoricamente o depositado pode ficar intacto, como uma jóia num banco. O Senhor quer que o depositado funcione como semeado que cresce e se multiplica. O diligente demonstrou sua capacidade de tirar partido do dinheiro confiado.

Depois disse aos que estavam aí presentes: ‘Tirai dele as cem moedas e dai-as àquele que tem mil’. Os presentes disseram: ‘Senhor, esse já tem mil moedas!’ (vv. 24-25).

A única segurança a respeito do reino de Deus não é conservar-se e ficar na inércia ou no medo, mas aceitar o risco e empenhar-se (cf. 9,26p; Fl 2,12s).

Ele respondeu: ‘Eu vos digo: a todo aquele que já possui, será dado mais ainda; mas àquele que nada tem, será tirado até mesmo o que tem (v. 26).

Numa fase anterior da tradição, este aforismo foi transmitido independente da parábola (cf. Mc 4,25; Lc 8,18; Mt 13,12). A Bíblia do Peregrino (p. 2520) comenta: O aforismo é um paradoxo, e como tal deve ser tratado. Ao interpretá-lo cabem diversas aplicações aqui, p.ex. o terceiro servo tem (confiado) e não tem (próprio); tirar-lhe-ão o que se tem sem possuí-lo; outra explicação: os dotes que tem e as realizações que não tem.

Jesus não opina aqui sobre a lógica trágica do capitalismo que pode levar povos inteiros à ruína através da especulação financeira, mas expressa uma experiência sapiencial; cf. Pr 10,4: “A mão preguiçosa empobrece, o braço diligente enriquece”. Mc 4,25 e Mt 13,2 aplicam a mesma sentença ao conhecimento do mistério do reino que é dado aos discípulos. Eles são pobres materialmente (Mt 9,19s; 10,9s; 19,21-29), mas ricos espiritualmente (cf. Mt 5,3-12). O Magnificat e as bem-aventuranças de Lc também garantem aos pobres a posse do reino de Deus, enquanto aos ricos será tirado o que eles têm (1,53; 6,20-26). Não quer dizer que o pobre deve ser preguiçoso (cf. 2Ts 3,10), muito menos na expectativa do reino.

“E quanto a esses inimigos, que não queriam que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e matai-os na minha frente” (v. 27).

Essa palavra final se refere aos “inimigos” de v. 14 que tramitaram contra o rei pretendente. Lc se lembra do ano 70 d.C em que os líderes judeus, que antigamente eram contra o reinado do messias Jesus, depois foram mortos pelos romanos na destruição de Jerusalém (19,41-44; 23,28-31; cf. 1Sm 15,33).

Jesus caminhava à frente dos discípulos, subindo para Jerusalém (v. 28).

Foi o último ensinamento durante a longa caminhada de Jesus a Jerusalém (9,51-19,28) e é pensando para o futuro (parusia). Esta frase já é transição para sua entrada triunfal em Jerusalém (vv. 28-40).

O site da CNBB comenta: Os dons que temos não nos pertencem, mas sim a Deus, que é o Senhor de tudo, de modo que os dons que recebemos de Deus devem ser ordenados para ele. Sendo assim, não podemos usar os nossos dons, nem mesmo os dons naturais, somente em vista da nossa realização e da nossa promoção pessoal, mas devemos colocá-los a serviço de Deus e dos nossos irmãos e irmãs, pois somente quando o dom se transforma em serviço é que ele é capaz de multiplicar e de produzir frutos em abundância, contribuindo, assim, para que o Reino de Deus cresça cada vez mais no meio dos homens.

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