21 de fevereiro de 2017 – Terça-feira, 7ª semana

 

Leitura: Eclo 2,1-13 (grego 1-11)

O livro Eclo foi escrito por Jesus Ben Sirac entre 190 e 165 a.C., em hebraico, mas chegou a nós através da tradução em grego (Sirácida) realizada por seu neto em 132. A.C. no Egito. Partes do texto hebraico foram encontrados só em 1894 no Egito e em 1964 em Israel. A contagem dos versículos de Eclo difere nas edições da Bíblia por causa das traduções gregas e latinas (cf. comentário de ontem).

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 1719) comenta: Os preceitos contidos neste cap. enquadravam-se nas circunstâncias do início do séc. II a. C., em vésperas da perseguição de Antíoco Epífanes (2Mc 1,2-4.12-15). Mas cabem em qualquer época e se encontram frequentemente no AT (Sl 3; 5; 6 etc.).

O temor de Deus nas provações é tema frequente no AT. Ben Sirac dá conselhos aos que servem a Deus, para enfrentarem as provações (cf. Hb 12,4-13; Tg 1,2-4.12-15) e resistirem à profanação e humilhação. Precisam ser fiéis a lei de Deus e confiar na sua misericórdia (cf. v. 16).

Filho, se decidires servir o Senhor, permanece na justiça e no temor e prepara a tua alma para a provação. Mantém o teu coração firme e sê constante, inclina teu ouvido e acolhe as palavras de inteligência, e não te assustes no momento da contrariedade. Suporta as demoras de Deus, agarra-te a ele e não o deixes, para que sejas sábio em teus caminhos. Tudo o que te acontecer, aceita-o, e sê constante na dor; e nas contrariedades de tua pobre condição, sê paciente. Pois é no fogo que o ouro e a prata são provados e, no cadinho da humilhação, os homens agradáveis a Deus. Crê em Deus, e ele cuidará de ti; endireita os teus caminhos e espera nele. Conserva o seu temor, e nele envelhecerás (vv. 1-6).

Como é costume na literatura sapiencial, a primeira lição começa com “Filho”. Também o autor Ben Sirac chama seus discípulos e leitores de “filho(s)” (vv. 1.11; cf. 3,11.19; 4,1; 23,7; Pr 1,8; 2,1; 3,1; 4,1…). Uma das caraterísticas de Ben Sirac é apresentar seu ensinamento em longas poesias (cf. vv. 1-22), principalmente quando havia um assunto importante como o problema do sofrimento.

Muitos outros mestres da sabedoria já trataram do assunto e tentaram respostas, p. ex. a teoria da retribuição, ou seja: aos justos Deus dá o bem, aos ímpios o mal (cf. Sl 1; Jr 17,5-8). O problema se agrava quando também o justo é atingido pelo sofrimento. Ainda não se acreditava numa vida e recompensa após a morte (surgiu na época dos macabeus; cf. Dn 12,2s; 2Mc 7, mas ainda no tempo de Jesus, os saduceus negaram a ressurreição, cf. Mc 12,18). Se existe apenas esta vida aqui na terra, a experiência do sofrimento injusto questiona a teoria da retribuição (cf. Jó e Ecl).

Contra outras opiniões, Ben Sirac insiste que também aquele que decide “servir o Senhor” tem que se preparar “para a provação” (v. 1). “Não te assustes no momento da contrariedade” (v. 2). Ben Sirac não duvida da justiça de Deus e exorta para ser paciente, constante e firme na fé (vv. 2-6; cf. Rm 5,3-4; Tg 1,2-4.12; 1Pd 4,12; Ap 2,10). O coração do homem “se apega” (agarra ou adere; palavra típica do Dt) a Deus, estará firme e corajoso (Sl 27,14; 112,7). A teoria deuteronômica da retribuição permitiu o sofrimento probatório como uma prova da fidelidade.

A Bíblia do Peregrina (p. 1578) comenta: Deus é pedagogo exigente que ensina os seus na vida e para a vida, com experiências e provas: Tb 12,13; Dt 8,2. O discípulo deve ir com firme convicção pessoal e disposto à prova, que é necessária e sinal de que Deus o ama: Pr 3,12.

O sofrimento é como uma prova, por ex. na educação: “Javé repreende os que ele ama como um pai ao filho preferido” (Pr 3,12; cf. Dt 8,5; Hb 12,5s; Ap 3,19). O ser humano é provado como um metal precioso é selecionado, “pois é no fogo que o ouro e a prata são provados” (v. 5; cf. Is 48,10; Jr 9,6; Zc 13,19; Pr 17,3; Sb 3,6). John Rybolt (Comentário Bíblico II, p. 417) comenta: Assim como as impurezas podem ser removidas até do ouro, também os justos podem ser purificados. Então será visto seu verdadeiro valor.

No final de v. 5, alguns manuscritos gregos acrescentam: “nas doenças e na pobreza confia nele”.

Vós que temeis o Senhor, contai com a sua misericórdia e não vos desvieis, para não cair. Vós, que temeis o Senhor, confiai nele, e a recompensa não vos faltará. Vós, que temeis o Senhor, esperai coisas boas: alegria duradoura e misericórdia. Vós, que temeis o Senhor, amai-o, e vossos corações ficarão iluminados (vv. 7-10).

Uma segunda resposta está nos vv. 7-9 (v. 10 falta na maioria das Bíblias) para “Vós que temeis o Senhor” (três ou quatro vezes com v. 10; cf. cap. 1; agora o autor se dirige a um plural). Para os que confiam e esperam nele há uma “recompensa” (v. 8, lit. salário, cf. Gn 15,1; Jr 31,16), que “não faltará” (Lv 19,13: o salário não deve ficar retido até amanhã), “coisas boas: alegria duradoura e misericórdia”. Alegria eterna, ou seja, duradoura para toda a vida (cf. Is 35,10; 51,11; 61,7). O autor permanece numa perspectiva terrestre, não na pós-morte (cf. 1,12: vida longa).

Considerai, filhos, as gerações passadas e vede: Quem confiou no Senhor e ficou desiludido? Quem permaneceu nos seus mandamentos e foi abandonado? Quem o invocou e foi por ele desprezado? Pois o Senhor é compassivo e misericordioso, perdoa os pecados no tempo da tribulação, e protege a todos os que o procuram com sinceridade (vv. 11-13).

Como Ben Sirac sabe destas recompensas? Sabe a partir das experiências de “gerações passadas”, e aconselha o estudo da história, principalmente da Escritura. O judeu aprende das tradições históricas do seu povo, medita nelas (Sl 78), apela a elas na súplica (cf. Sl 22,5s; 37,25; 44,2-9; Jó 4,7; Is 51,1-3).

As perguntas retóricas requerem a resposta “Não”: a experiência dos ancestrais de Israel prova que Deus não ilude nem abandona nem despreza (mas o conselho de Ben Sirac não dá razão do sofrimento, aparentemente sem sentido, de alguns heróis bíblicos, com Josias em 2Rs 23,29).

Das manifestações históricas o autor pode subir ao principal motivo para ser fiel a Deus: às qualidades de Deus, como se revelou diante de Moisés: “Javé passou diante de Moisés, proclamando: ‘Javé, Javé! Deus de compaixão e piedade, lento para a cólera e cheio de amor e fidelidade. Ele conserva o seu amor por milhares de gerações, tolerando a falta, a transgressão e o pecado, mas não deixa ninguém impune: castiga a falta dos pais nos filhos, netos e bisnetos’” (Ex 34,6s; cf. Sl 103,8-14; 145,8-9).

Assim Ben Sirac conclui: “Pois o Senhor é compassivo e misericordioso, perdoa os pecados no tempo da tribulação e protege a todos que o procuram com sinceridade… Cada um de nós se coloque nas mãos do Senhor, e não nas mãos dos homens, pois a misericórdia dele é como a sua grandeza” (vv. 13.18; cf. 2Sm 24,14).

Evangelho: Mc 9,30-37

Ouvimos hoje o segundo anúncio da paixão em Mc seguido por um gesto exemplar.

Jesus e seus discípulos atravessavam a Galileia. Ele não queria que ninguém soubesse disso, pois estava ensinando a seus discípulos (vv. 30-31a).

A instrução aos discípulos à parte da multidão, “em casa” (vv. 28s.33; 10,10) ou como aqui “no caminho” (10,32; cf. 8,27) já é um motivo típico em Mc (cf. 4,10 etc.). Tem a ver com o segredo do messias e a incompreensão dos discípulos, outras características deste evangelho.

E dizia-lhes: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará” (vv. 31b-32).

Em Mc, Jesus anuncia três vezes sua paixão, mas cada vez os discípulos reagem mal e Jesus precisa corrigi-los (8,31-33; 9,30-37; 10,32-45). É a expectativa de um messias guerreiro e triunfante que causa o mau entendimento no povo e nos discípulos. Lembramo-nos de que Mc escreveu durante a guerra Judaica (judeus contra romanos em 66-70 d.C.; cf. 13,1-23) e não queria alimentar esta expectativa. Por isso o segredo do messias Jesus: “Ele não queria que ninguém soubesse disso … O Filho do homem vai ser entregue nas mãos dos homens e eles o matarão…” (vv. 30-31). O conceito de um messias aparentemente perdedor e sofredor (cf. o servo sofredor em Is 53) estava na contramão da mentalidade guerreira.

Os discípulos, porém, não compreendiam estas palavras e tinham medo de perguntar (v. 32).

Só quem pergunta, pode entender e aprender. O ser humano é o ser que pergunta e quer entender. Fé e entendimento (razão) não se contrariam, mas complementam.

Eles chegaram a Cafarnaum. Estando em casa, Jesus perguntou-lhes: “O que discutíeis pelo caminho?” Eles, porém, ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior (vv. 33-34).

Mc é duro com sua descrição dos discípulos: eles não perguntam e também não respondem à pergunta de Jesus, “ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior”. Brigam pelos melhores lugares no reino de Deus que Jesus anuncia (1,15; cf. 10,37.41).

Jesus sentou-se, chamou os doze e lhes disse: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!” (v. 35).

No reino de Deus não é grande, quem quer ser o primeiro para mandar, mas aquele que se coloca no último lugar e “serve a todos” (v. 35; 10,43s). Quem quer seguir Jesus, não deve olhar para os ricos e poderosos, mas olhar para os pequenos e excluídos (cf. Is 61,1; 66,1s), para aqueles que a sociedade costuma colocar no último lugar ou na margem.

Em seguida, pegou uma criança, colocou-a no meio deles, e abraçando-a disse: “Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim que estará acolhendo. E quem me acolher, está acolhendo, não a mim, mas àquele que me enviou” (vv. 36-37).

Com um gesto significativo, Jesus reforça seu ensinamento, “pegou uma criança, colocou-a no meio deles, abraçando-a” (cf. 10,13-16). Na sociedade antiga, crianças não estavam no centro das atenções, tinham pouco valor porque não podiam ainda contribuir como os adultos. Os romanos costumavam jogar crianças indesejadas no lixo! Jesus, porém, coloca a criança no meio, dá carinho e ainda se identifica com ela: “Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim que estará acolhendo. E quem me acolher está acolhendo não a mim, mas aquele que me enviou” (v. 37; cf. Mt 18,1-5; 25,40.45; Jo 12,44; 13,20).

Nas outras religiões, é o ancião que é valorizado por sua sabedoria. Mas na religião cristã também a criança ganha valor, porque o próprio Deus, em Jesus, se fez pequeno e servo e apresentou a humildade de crianças como exemplo de fé (10,13-16). Daí também o empenho da Igreja pela vida (contra aborto) e suas instituições como orfanatos, creches, Pastoral da Criança, Pastoral do Menor, catequese e batismos de crianças etc. Daí um escândalo maior quando acontece abuso de crianças nas instituições da Igreja (cf. Mt 18,5-7).

O site da CNBB resume: O que faz com que na maioria das vezes não compreendamos corretamente a mensagem de Jesus geralmente são as diferenças que existem entre os nossos interesses e os dele. Enquanto Jesus estava pensando na necessidade da cruz para a realização do Reino de Deus, seus discípulos estavam pensando em um reino com critérios humanos, fundamentado principalmente nas diferenças, nas relações de poder e na hierarquia social, econômica e política. Sempre que não nos colocamos em sintonia com o projeto de Jesus e não colocamos o amor como o critério último das nossas vidas, podemos nos equivocar na compreensão do Evangelho e buscar interpretações que existem muito mais para legitimar os nossos interesses do que para nos conduzir à verdade e ao Reino.

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