21 de Julho 2019, Domingo: O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. Porém uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (vv. 41-42).

16º Domingo – Ano C

 1ª Leitura: Gn 18,1-10a

A 1ª leitura foi escolhida por causa da hospitalidade da qual fala também o evangelho. Um tema comum e apreciado na Antiguidade é um ou mais deuses circulando pelo mundo em figura humana, para pôr à prova a hospitalidade dos mortais e assim premiá-los ou castigá-los (cf. Paulo e Barnabé em Listra, At 14,8-18). Hospitalidade era um dever sagrado na época (Rm 12,13; Hb 13,2). Para que a prova funcione, é indispensável a ignorância do protagonista.

O Senhor apareceu a Abraão junto ao carvalho de Mambré, quando ele estava sentado à entrada da sua tenda, no maior calor do dia. Levantando os olhos, Abraão viu três homens de pé, perto dele. Assim que os viu, correu ao seu encontro e prostrou-se por terra (vv. 1-2).

Abraão, que se estabeleceu em Hebron, “junto ao carvalho de Mambré” (v. 1; cf. 13,18; 14,13) encontra-se primeiro com “três homens” caminhantes que passam por lá quando o calor aumenta. Em Canaã e no início de Israel, os carvalhos marcavam lugares sagrados (v. 1; cf. 12,6; 13,18; 14,13; 21,33; 35,4.8; Dt 16,21; Jz 4,11; 6,11; 9,6.37; 1Sm 10,3; Is 2,13; Os 4,13), onde deuses e deusas interagiam com os seres humanos.

Para o leitor não é necessário a ignorância. A divindade, na forma de “três homens” (vv. 2.4-9.16) ou como um só (vv. 3.10-15), é identificada com Yhwh (Javé = “Senhor”) só nos vv. 1.13-14. No pós-exílio, Deus é concebido como único e altíssimo, aqui o autor imagina Javé como o personagem principal, os outros dois são escolta angélica.

O texto hebraico oscila entre o plural e o singular (como mostram as variantes do grego e do samaritano). Na antiguidade cristã se especulou com esse tema, até imaginá-lo como aparição da Santíssima Trindade (cf. Jo 14,23 e o ícone russo de Andrej Rublev, séc. 15). Pode se comprar com Gn 1,26 em que Deus fala de repente no plural; para os cristãos são as três pessoas divinas, para os judeus (e o autor da época) é o único Deus (plural de majestade) falando aos anjos que executam a obra.

Quando Abraão viu os três homens, correu ao seu encontro e “prostrou-se por terra” (v. 2), aqui um simples sinal de homenagem e respeito, mas é gesto posterior típico de “adoração”.

E disse: “Meu Senhor, se ganhei tua amizade, peço-te que não prossigas viagem, sem parar junto a mim, teu servo. Mandarei trazer um pouco de água para vos lavar os pés, e descansareis debaixo da árvore. Farei servir um pouco de pão para refazerdes vossas forças, antes de continuar a viagem. Pois foi para isso mesmo que vos aproximastes do vosso servo”. Eles responderam: “Faze como disseste”. Abraão entrou logo na tenda, onde estava Sara e lhe disse: “Toma depressa três medidas da mais fina farinha, amassa alguns pães e assa-os”. Depois, Abraão correu até o rebanho, pegou um bezerro dos mais tenros e melhores, e deu-o a um criado, para que o preparasse sem demora. A seguir, foi buscar coalhada, leite e o bezerro assado, e pôs tudo diante deles. Abraão, porém, permaneceu de pé, junto deles, debaixo da árvore, enquanto comiam (vv. 3-8).

Abraão inicialmente só reconhece nos visitantes hóspedes humanos e lhes testemunha a hospitalidade proverbial dos nômades. O caráter divino só se manifestará progressivamente (vv. 2.9.13.14). Abraão saúda com respeito humildemente aquele que parece ser o chefe: “Meu Senhor, se ganhei tua amizade, peço-te que não prossigas viagem sem parar junto de mim, teu servo” (v. 3). Abraão é considerado “amigo de Deus” em 2Cr 20,7; Is 41,8; Dn 3,35; Tg 2,23 e no Alcorão IV,25. Oferece água para “lavar os pés” (cf. Jo 13) e “um pouco de pão” que na verdade é um grande banquete (vv. 4-8). “Permaneceu de pé, … enquanto comiam” Segundo o costume original, quem convida serve e não come (cf. Mt 22,11; Lc 12,37).

E eles lhe perguntaram: “Onde está Sara, tua mulher?” – “Está na tenda”, respondeu ele. E um deles disse: “Voltarei, sem falta, no ano que vem, por este tempo, e Sara, tua mulher, já terá um filho” (vv. 9-10a).

Quando eles falam, começa a descerrar-se o véu (re-velação), como prêmio trazem uma promessa da descendência que confirma outras anteriores (12,2-3; 13,15-16; 15,4-5.18; 17,3-10.15-20; cf. Rm 9,9).

Nossa liturgia omite o riso incrédulo de Sara que daria o nome ao filho: Isaac, do raiz „rir“ (v. 15; cf. 17,17; 21,9). Sara era estéril e, como Abraão, de idade avançada. Ao narrador isto serve para salientar a esterilidade dos cônjuges e a fecundidade milagrosa: “Existe alguma coisa impossível para o Senhor?” (v. 14; cf. Jr 32,17; Mc 9,29). O anjo Gabriel vai repetir esta frase a respeito da concepção virginal de Maria (cf. Lc 1,37).

Esta explicação do nome de Isaac a partir do riso de Abraão (17,7) e de Sara (18,10-15) serviu aos autores para integrar e subordinar politica e religiosamente as tradições das tribos de Bersabeia e do Negueb, que tinham Isaac como seu patriarca, às tradições de Abraão.

Abraão e Isaac eram venerados como ancestrais do sul (Negueb: 12,9; 20,1; 24,62; Mambré-Hebron: 13,18; 14,13; 18,1; 23,2.19; 35,27; Bersabeia: 21,33; 22,19; 26,33), enquanto Jacó-Israel (Betel: 28,19; 35,1; Siquem: 33,18; 34,2) e José (Efraim e Manassés: Gn 48; Nm 26,28; Js 14,1; 2Sm 19,20; 1Rs 11,28; Am 5,6; Ez 37,19) eram venerados como ancestrais do norte. As bênçãos e promessas foram utilizados pelos redatores para interligar estas tradições e criar a unidade do povo através da unidade da narrativa. Como os redatores eram do reino de Judá, as tradições de Isaac e Jacó-Israel eram subordinadas ás tradições de Abraão, apresentado como patriarca de todo o povo.

Os peritos da Bíblia consideram Abraão um personagem que serviu aos redatores do exílio e pós-exílio para ser ponto de unidade entre os diversos grupos que formaram o povo de Israel (nômades vindo pelo deserto do oriente, escravos fugidos do Egito, tribos do norte (Israel) e outras do sul (Judá), exilados e remanescentes na terra). Na narrativa dos patriarcas, a história complicada dos povos et tribos é reduzida a uma história de família.

Esta narrativa no cap. 18 prepara a do cap. 19. Neste se recolheu e transformou uma velha lenda sobre a destruição de Sodoma: Enquanto Abraão fica com o Senhor intercedendo (18,16-33), os dois anjos descem para a cidade, onde recebem a hospitalidade de Ló, sobrinho de Abraão. Os habitantes de Sodoma, porém, querem violar os hóspedes. Mas os anjos salvam Ló e sua família, enquanto uma chuva de fogo e enxofre destroí Sodoma e Gomorra (19,1-29).

2ª Leitura: Cl 1,24-2,3

Na 2ª leitura de hoje, o autor da carta, um discípulo que escreve em nome de Paulo (talvez Epafras, cf. v. 7), comenta a natureza, o conteúdo e os perigos do ministério do evangelho. Ele se alegra, porque o seu sofrimento confirma que ele está anunciando o verdadeiro Evangelho (cf. Mc 13,5-10) que é um mistério divino.

Alegro-me de tudo o que já sofri por vós e procuro completar na minha própria carne o que falta das tribulações de Cristo, em solidariedade com o seu corpo, isto é, a Igreja (v. 24).

Falando como Paulo, o autor apresenta uma imagem idealizada no cenário histórico do ministério do apóstolo. Assim, ministros que sofrem pela comunidade fazem-no com alegria, seguindo o exemplo de Paulo que se alegrava nas perseguições porque provam a autenticidade do Evangelho (Fl 1,18; 2,17; 2Cor 7,4; 12,10; cf. At 5,41; 14,22 etc.).

O que ainda “falta nas tribulações de Cristo”? Não se trata dos sofrimentos expiatórios da cruz, mas das provações ligadas ao fim do tempo e à pregação do evangelho (cf. Mc 13,5-10; At 14,22; Rm 5,3; 2Cor 1,5; Fl 1,20), que o apóstolo/discípulo/ministro completa em sua carne e completa com sua palavra.

O sacrifício da cruz de Jesus foi único (cf. Rm 6,10; Hb 7,27; 9,12.25-27; 10,10.12.14; 1Pd 3,18), mas o discípulo (no qual é Jesus que vive; cf. Gl 2,20; 2Cor 4,10-12) partilha a sorte do seu mestre (Jo 15,20). Seguir Jesus significa tomar o mesmo caminho e o mesmo destino. Jesus sofreu pelo reino, Paulo pela Igreja. A Igreja é o corpo de Cristo (cf. v. 18; Rm 12,4s; 1Cor 12). Uma interpretação antiga (Agostinho) estende a todos os cristãos essa vocação de sofrer em comunhão com o Senhor e em benefício da comunidade eclesial. Neste sentido, “Jesus está em agonia até o fim do mundo” (Pascal), mas na perspectiva da ressurreição (cf. Mt 28,20; Rm 8,18-23).

A ela eu sirvo, exercendo o cargo que Deus me confiou de vos transmitir a palavra de Deus em sua plenitude: o mistério escondido por séculos e gerações, mas agora revelado aos seus santos. A este Deus quis manifestar como é rico e glorioso entre as nações este mistério: a presença de Cristo em vós, a esperança da glória. Nós o anunciamos, admoestando a todos e ensinando a todos, com toda sabedoria, para a todos tornar perfeitos em sua união com Cristo.

Para isso eu me esforço com todo o empenho, sustentado pela sua força que em mim opera (vv. 25-29).

Paulo, ativado pela força de Cristo, tinha que trabalhar e se esforçar (v. 29 omitido; cf. luta em 2,1), e também sofrer (v. 24; cf. At 9,16) para dar cumprimento ao plano de Deus. Ele é confidente de um segredo que é o cerne da missão do apóstolo Paulo: anunciar o “mistério” do projeto de Deus, outrora “escondido por séculos, mas agora revelado aos seus santos (cristãos)” e confiado especialmente a “cargo” de Paulo (Gl 2,7). Deus quer que não só os judeus, mas também os pagãos (“as nações”) participem da redenção realizada mediante Cristo (Ef 1,9-10; 3,3-7; já em Rm 16,25-26; 1Cor 2,7-9). A conversão dos colossenses, que antes eram pagãos, manifesta visivelmente esse projeto de Deus, “a presença de Cristo em vós”.

Como Paulo se esforçou, também o fazem os ministros (“nós”, v. 28): “anunciamos, admoestando a todos e ensinando a todos, com toda sabedoria, para a todos tornar perfeitos”. A perfeição em Cristo é o objetivo do ministério, mas vem somente “em (sua união com) Cristo”, i. é, dentro do seu corpo (da Igreja), não separado dele (cf. Fl 3,12-15a).

Evangelho: Lc 10,38-42

Este evangelho é próprio de Lc que valoriza a participação das mulheres (cf. Lc 1-2; 7,11-16.36-50; 8,1-3; 13,10-17; 15,8-10; 18,1-8; 24,10-11; At 1,14; 9,36-42; 16,14s; 18,2 etc.). No episódio de Marta e Maria, tudo está concentrado na palavra que o conclui. Nas sinagogas e no templo, as mulheres não podiam participar plenamente. Jesus dá a mulher o direito de escutar a Palavra de Deus e não só o dever de servir aos homens.

Paulo valorizava as mulheres (cf. Gl 3,28) e deu a elas o direito de falar na assembleia (1Cor 11,2-16), o qual foi revogado pela terceira geração (que escreveu as cartas pastorais, cf. 1Tm 2,11-12, e criou o ministério das viúvas, cf. 1Tm 5,2-16). Paulo chama uma mulher de “diaconisa”, outra de “apóstola” (Rm 16,1.7). Lc menciona um casal colaborador na missão de Paulo, em que o nome da mulher Priscila/Prisca geralmente é citado antes do seu marido, porque era a parte mais ativa (cf. At 18,2.18.26; Rm 16,3; 1Cor 16,19; 2Tm 4,19). Todos os evangelistas reconhecem o papel das mulheres no pé da cruz e no primeiro anúncio da ressurreição. St.º Agostinho chamou Madalena “a apóstola dos apóstolos”. Recentemente (2016), a festa litúrgica dela foi igualada à dos apóstolos.

Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa. Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra. Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres. Ela aproximou-se e disse: “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar!” (vv. 38-40).

As duas irmãs são provavelmente as mesmas que em Jo 11,1-40 e 12,1-3, pois elas são descritas com os mesmo traços: Marta empenhada no serviço (Jo 11,20; 12,2), Maria prostrada aos pés de Jesus (11,32; 12,3). Marta faz uma bela profissão de fé em Jo 11,27 (comparável a de Simão Pedro em Mt 16,16!). A preferência em Lc é de Maria, sentada aos pés de Jesus escutando a Palavra (atitude de discípulo: os alunos sentavam-se no chão aos pés do mestre, cf. 8,35; 10,39; At 22,3)

O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. Porém uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (vv. 41-42).

Lc prefere chamar Jesus de “Senhor” (cf. 7,13.19; 10,1.39.41; 12,42; 13,15; 17,5s; 18,6; 19,8; 22,61; 24,34). Chamar o nome da mulher duas vezes, indica que uma atitude precisa ser corrigida. A preocupação central deve ser a do reino de Deus (cf. 12,31p). Jesus passa da perspectiva da refeição (“pouca coisa é necessária”) a do único necessário (em 10,42 tem variação do texto: “no entanto, uma só coisa é necessária”, ou “no entanto, pouca coisa é necessária”).

Jesus não quer desvalorizar o serviço e a hospitalidade de Marta, mas ele não veio só para comer e beber, sim para nos ensinar o caminho da salvação (cf. Rm 14,17). Portanto, acolher a palavra de Jesus tem preferência, acolher sua palavra é acolher sua pessoa (ou seja, Deus, cf. Jo 1).

A palavra de Jesus passa adiante de toda preocupação temporal (cf. 12,31p), e na obra de Lc, o texto é comparável ao de At 6,2 (a instituição dos diáconos para os apóstolos poderem servir melhor a Palavra).

No contexto do “amor a Deus e ao próximo” (vv. 25-37), nosso episódio seja talvez uma correção para valorizar a contemplação (meditação da Palavra), e não só o ativismo (do serviço social, do bom samaritano; cf. Papa Francisco: „A Igreja não é uma ONG“). São duas atitudes humanas que devem estar em equilíbrio. Assim S. Bento deu sua regra “Ora et labora” (reze e trabalhe; que poderia se completado por “e estude“). O fundador da comunidade de Taizé, Frei Roger Schütz, falava de “luta e contemplação”.

A escuta precede e acompanha o serviço. Não se trata de contrapor Marta e Maria como ação e contemplação. O desejo de escutar a palavra de Deus não pode ser cancelado por outras atividades sociais. Devemos dar tempo e espaço para estarmos com Deus e receber dele todo o amor para depois dedicarmos aos outros.

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