21 de Julho de 2017 – Sexta-Feira 15° Semana

Leitura: Ex 11,10-12,14

Nossa liturgia saltou vários capítulos: o encontro de Moisés com seu irmão Aarão e os anciãos no Egito; sua primeira audiência diante do farão, rei do Egito (Ramsés II, 1290-1224 a.C.) que “endureceu seu coração” e não deixou os hebreus saírem. Então Deus tinha que enviar dez pragas (“sinais e prodígios”) para o faraó mudar sua decisão: água do rio Nilo transformada em sangue (1ª), rãs (2ª), mosquitos (3ª), moscas (4ª), peste nos animais (5ª), úlceras e tumores (6ª), chuva de pedras e de fogo (7ª), gafanhotos (8ª), trevas (9ª). Só a décima praga, a mais trágica, irá trazer a libertação. A morte dos primogênitos egípcios amolecerá o coração do faraó: “Então ele vos deixará partir. Quando vos enviar, estará acabado, e ele até mesmo vos expulsará daqui” (11,1).

Moisés e Aarão realizaram muitos prodígios diante do Faraó; mas o Senhor endureceu o coração do Faraó, e ele não deixou que os filhos de Israel saíssem da sua terra (11,10).

As pragas podem ter sido fenômenos resultantes de catástrofe em Santorin (Thera), uma ilha grega onde surgiu um crátero enorme no mar e causou a maior erupção vulcânica dos últimos 10.000 anos. Um vento pode ter levado a nuvem vulcânica (piroclasto) até o Egito (800 km de distância) onde causou trevas, granizo e chuvas de pedra e fogo. A poluição causada por estes cinzas e materiais tóxicos pode ter transformado o rio Nilo como aconteceu em 1991 com o rio Neuse em New Bern (Carolina do Norte, EUA). Na região há grandes criações de porcos. Com a enchente do rio, os dejetos deles se misturaram com o rio e assim modificaram geneticamente um microrganismo (Pfiesteria piscicida) causando a morte da fauna no rio e dos peixes, transformando o aspecto do rio em vermelho pelo sangue dos peixes. As rãs fogem do líquido tóxico para a terra e morrem lá, atraindo mosquitos e moscas que contaminam animais e homens (úlceras, peste).

A erupção em Santorin aconteceu entre 1600 e 1500 a.C., mas não se conhecem registros egípcios da erupção ao não ser as trevas, barulhos e chuvas torrenciais que devastaram grande parte do Egito e foram descritas na “Estela da tempestade” do faráo Amósis (1539–1528). A ausência de tais registros é por vezes atribuída à desordem geral no Egito em torno do Segundo Período Intermediário. Mas os efeitos da erupção junto com o tsunami por ela causada devem ter ficado na memória da região toda influenciando a tradição do êxodo (junto com outras pragas, por ex. gafanhotos, cf. Sl 78,46; 105,34s; Jl 1,4) como também o desaparecimento de Atlântida descrito por Platão (em Timaios e Critias). O relato platônico originalmente deriva dos relatos do legislador ateniense Sólon (638–558) que, durante sua viagem em Saís, no delta do Nilo, tomou conhecimento, por intermédio de sacerdotes egípcios, do desaparecimento de um grande império insular.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 82) comenta: Certamente no núcleo das antigas narrativas da libertação havia um fenômeno natural (eclipse? chuva de pedras? peste?) atribuído a uma divindade (Am 7,1; 8,8.9; 9,5). Após séculos de atualizações na festa da páscoa e dos Pães Ázimos, na consagração dos primogênitos e nas disputas políticas com os impérios vizinhos, chegou-se a forma atual (cf. Sl 78,43-51; 105,27-36; Sb 11,14-20; 16-18), que reflete a teologia pós-exilica ao enfatizar o poder de Javé como Deus único e universal que vence o faraó e seus deuses (v. 12) e não tanto um Deus libertador dos oprimidos.

O Senhor disse a Moisés e a Aarão no Egito: ”Este mês será para vós o começo dos meses; será o primeiro mês do ano (12,1-2).

A leitura de hoje é lida também na Quinta-feira Santa como início do Tríduo Pascal.

Já na vocação de Moisés (3,18) e nas audiências com o farão (5,1-3 etc.) se falava da festa ou do sacrifício que o povo hebreu devia celebrar em honra a seu Deus Javé. Em seguida apresenta-se o relato sobre a origem da festa maior dos judeus, a páscoa. Nele, dois elementos se fundem: a narrativa histórica e as práticas litúrgicas. A parte narrativa inclui: a morte dos primogênitos (12,12.29-30), comer o cordeiro e o rito de marcar com sangue os batentes, a refeição apressada com pão sem fermento (12,1-14), a fuga precipitada com os presentes ou empréstimo dos egípcios (12,31-42). A parte litúrgica inclui: o rito da páscoa com sua rubricas e cerimônias (vv. 2-24.43-49), os pães ázimos (vv. 15-20), a consagração dos primogênitos (13,1.11-16). Misturam-se práticas específicas de pastores (cordeiro), de agricultores (pães ázimos) e outras sem fronteiras (primogênitos; cf. Gn 22).

A origem da festa da Páscoa deve ser um ritual dos pastores nômades: com o sangue de um cordeiro (ou cabrito), colocado na entrada do curral ou da casa, esperava-se a proteção dos males (demônios? invasores?). Em Israel, pastores nômades e agricultores sedentários misturavam-se (não sem conflitos, cf. Gn 4), assim coincide a festa dos pastores com a festa dos agricultores na primavera, a festa dos “pães ázimos” (pães sem fermento por sete dias; v. 8). De fato, páscoa e ázimos são duas festas originariamente distintas: a festa dos ázimos começou a ser celebrada pelos agricultores somente em Canaã e só foi unida à festa da páscoa depois da reforma de Josias (2Rs 22-23). A origem destas duas festas está em tempos remotos, seu conteúdo natural (rebanho, pães de trigo) ganha depois um sentido histórico: a comemoração da libertação do Egito. Assim, a ligação entre a páscoa, a décima praga e a saída do Egito é apenas ocasional: esta saída aconteceu por ocasião da festa.

Ouvimos hoje a primeira parte das instruções do Senhor. Até o v. 11 se lê como ritual de cerimônia que se deve observar ao celebrar a páscoa: qualidade do animal, os que vão comê-ló, como prepará-lo, data exata e hora do dia.

A origem da palavra “Páscoa” (pesah) é desconhecida; a explicação tradicional é que significa “passagem” (cf. v. 13.23.27; o verbo hebraico pasah significa “passar ou saltar por cima”). A passagem do ano que, na época, começava na primavera (v. 2: “o começo dos meses, … o primeiro mês do ano”) torna-se a “passagem do Senhor” (v. 11). O primeiro mês da primavera no hemisfério norte chamava se Abib no antigo calendário (Dt 16,1), ou Nisan no calendário pós-exílio de origem babilônica. O dado supõe um calendário estabelecido com um ano que começa na primavera (nisa); diferente do que faz o ano começar no outono.

Falai a toda a comunidade dos filhos de Israel, dizendo: ‘No décimo dia deste mês, cada um tome um cordeiro por família, um cordeiro para cada casa. Se a família não for bastante numerosa para comer um cordeiro, convidará também o vizinho mais próximo, de acordo com o número de pessoas. Deveis calcular o número de comensais, conforme o tamanho do cordeiro (vv. 3-4).

O filósofo judaico Martin Buber (1878-1965) comparou a sociedade egípcia com uma pirâmide e a comunidade israelita com uma fogueira de acampamento. Enquanto a sociedade egípcia é hierarquia (pirâmide) e opressão, a “comunidade dos filhos de Israel” é comunitária (fogueira), “convidará também o vizinho” (v. 4) evitando também o desperdício. A festa deve ter caráter familiar. A ceia pascal prepara os israelitas para décima e última praga que resultará na libertação da escravidão.

No calendário de Dt 16,1s, ovelhas e bois são sacrificados no templo de Jerusalém, conforme a concentração do culto em Jerusalém que o rei Josias promoveu (622 a.C.).

O cordeiro será sem defeito, macho, de um ano. Podereis escolher tanto um cordeiro, como um cabrito: e devereis guardá-lo preso até ao dia catorze deste mês. Então toda a comunidade de Israel reunida o imolará ao cair da tarde (vv. 5-6).

O cordeiro será sem defeito, porque para uma festa religiosa se deve oferecer o melhor. “Até ao dia catorze… ao cair da tarde”, ou seja, antes que comece o dia 15 ao pôr-do-sol (em Israel, um novo dia não começa a meia noite, mas na véspera).

Enquanto o Egito desenvolveu o calendário solar de 365 dias (Júlio César introduziu-o no Império Romano), Israel tinha um calendário lunar: um mês corresponde exatamente às quatro fases da lua. No dia primeiro de cada mês é lua nova, e na metade do mês é lua cheia: na noite do dia catorze para quinze. Portanto, a festa pascal coincide com a primeira lua cheia na primavera (do hemisfério norte; no sul, é outono), ou seja, depois de 21 de março (equinócio com que começa a primavera no norte e o outono no sul).

A páscoa foi celebrada na casa dos pastores e camponeses (vv. 3-4.21-22), mas a relação com o êxodo e a minuciosa regulamentação indicam aqui uma redação da época do rei Josias (640-609) ou do pós-exílio, quando o cordeiro pascal só poderá ser imolado no Templo de Jerusalém (cf. v. 14; Dt 16,1-7; 2Rs 23,21-23).

Tomareis um pouco do seu sangue e untareis os marcos e a travessa da porta, nas casas em que o comerdes (v. 7).

O antigo rito de marcar os batentes da porta com sangue de animal pode ter origem mágico para afastar influxos nefastos. O v. 13 o liga com a história: “O sangue servirá de sinal” de marcação, de separação das casas dos egípcios que serão atingidos: “Ao ver o sangue, passarei adiante, e não vos atingirá a praga exterminadora”. Segundo 11,7, o Senhor se encarrega de distinguir entre egípcios e hebreus, sem recurso ao sinal do sangue. Israelitas separados como povo eleito no meio mundo pagão é expressão da teologia pós-exílica.

Comereis a carne nessa mesma noite, assada ao fogo, com pães ázimos e ervas amargas (v. 8).

A festa dos agricultores, a dos pães ázimos que dura sete dias (Ex 23,14s; 34,18), foi juntada à dos pastores e também se comemora a Páscoa, a saída do Egito (cf. Nm 28,16-25; Dt 16,1-8).

Os rabinos reagiram a destruição do templo em 70 d.C. e criaram a seder (ordem) para o povo poder celebrar a páscoa sem o templo (até hoje), como antes já os judeus faziam em parte na diáspora. É bastante simbólica e didática, por ex. mergulha-se karpas (batata, ou outro vegetal), em água salgada. Recita-se a bênção e a karpas é comida em lembrança às lágrimas (água salgada) dos antepassados. Depois divide-se a matzá (“pão ázimo”, sem fermento) do meio em duas partes desiguais. São comidas as “ervas amargas” (raiz forte, escarola, endívia e a alface romana) relembrando a escravidão e o sofrimento dos hebreus no Egito. Depois o chefe da casa fala: “Olhemos, pois, a matzá que está sobre a mesa. Este é pão da pobreza que comeram os nossos antepassados na terra do Egito. Quem tiver fome, e muitos são os que tem fome neste mundo em que vivemos, que venha e coma.”

Não comereis dele nada cru, ou cozido em água, mas assado ao fogo, inteiro, com cabeça, pernas e vísceras. Não deixareis nada para o dia seguinte: o que sobrar, devereis queimá-lo ao fogo (vv. 9-10).

Para evitar a profanação, não se deve comer cru (cf. Gn 9,4), mas “inteiro… sem sobrar nada para o dia seguinte”. O texto grego acrescenta: “Não se quebrará nenhum osso” (cf. v. 46; cf. Jo 19,36).

Assim devereis comê-lo: com os rins cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão. E comereis às pressas, pois é a Páscoa, isto é, a Passagem do Senhor! (v. 11).

Deve-se comer com a roupa da viagem, “com os rins cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão” quer dizer, pronto para marcha para sair em liberdade. Na época de Jesus, as pessoas ficavam deitadas no chão, encostadas em travesseiros.

A etimologia do termo pesah (grego: Páscoa) é desconhecida. A Vulgata (tradição latina de S. Jerônimo) explica: “isto é passagem”, mas isto não encontra apoio no hebraico. Ex 12,13.23.27 explica que Javé “saltou”, ou “omitiu”, ou “protegeu” as casas dos israelitas, mas trata-se de uma explicação secundária.

E naquela noite passarei pela terra do Egito e ferirei na terra do Egito todos os primogênitos, desde os homens até os animais; e infligirei castigos contra todos os deuses do Egito, eu, o Senhor. O sangue servirá de sinal nas casas onde estiverdes. Ao ver o sangue, passarei adiante, e não vos atingirá a praga exterminadora, quando eu ferir a terra do Egito (vv. 12-13).

Os vv. 12-13 funcionam como explicação histórica do rito no relato, funcionam como anúncio do fato iminente.

“Atravessar” ou “passar”: com o verbo da mesma ou da homófona raiz que “páscoa”. Supõe que os hebreus moram misturados com a população, não a parte, na região de Gessen (Gn 46,28-47,6). A confrontação com o rei se eleva ao nível das divindades: Javé julga e condena os deuses do Egito, demonstrando que “não há como ele” (Sl 82); conceito universalista de Javé na redação pós-exílica (cf. 9,14).

O flagelo destruidor ou a praga “exterminadora”: desta expressão do v. 23 saiu a fórmula do “anjo exterminador” (pode se ler: “não haverá contra vós um golpe do exterminador” (cf. v. 23).

Este dia será para vós uma festa memorável em honra do Senhor, que haveis de celebrar por todas as gerações, como instituição perpétua (v. 14).

O dia será o dia 15 que começa na véspera, na tarde precedente.

Atribui-se ao Senhor a instituição da “festa memorável”, que a fundamenta no fato passado e lhe garante validade perpétua. Para os judeus, “memória” significa tornar presente, atualizar. Assim Jesus pede na última ceia: “Fazei isto em minha memória”.

Pela tradição, “Páscoa” significa passagem (vv. 11.27), é a “passagem” do ano que começava na primavera (”será o primeiro mês do ano” v. 1) e torna-se a “passagem do Senhor” (v. 11). O Senhor, ou seja, o anjo exterminador, “passará” por Egito “matando todos os primogênitos “ (v. 12), só poupando as casas dos israelitas, onde o sangue dos cordeiros pascais nos marcos e travessas da porta “servirá de sinal… Passarei adiante e não vos atingirá a praga exterminadora” (v. 13).

Depois desta praga, o faraó deixará sair os escravos em liberdade, mas logo se arrependerá e os perseguirá com seu exército poderoso. Haverá outra “passagem” do povo de Deus: pelo mar Vermelho que salva os israelitas e extermina os egípcios (13,17-15,21; cf. leitura da 2ª-feira da próxima semana e 3ª leitura da vigília pascal).

Os cristãos dão mais outro sentido à Páscoa: A “passagem” de Jesus pela morte a vida (cf. Jo 13,1; evangelho da quinta-feira santa). Ele é verdadeiro Cordeiro pascal imolado (cf. 1Cor 5,7; Jo 1,29.36; Ap 5,6 etc.), cujo sangue na madeira da cruz salva a vida do povo de Deus. Em Jo, Jesus morre na exata hora da imolação dos cordeiros no templo (cf. v. 6 “ao cair da tarde”; Jo 19,31.34.36).

A data da Páscoa judaica continua sendo a primeira lua cheia (noite de dia 14 a 15 no seu calendário lunar) de primavera (no hemisfério norte cai em março ou abril). Para os cristãos, porém, a Páscoa é celebrada no domingo seguinte (por causa da ressurreição “no primeiro dia da semana”). Portanto, na Semana Santa sempre tem lua cheia.

Evangelho: Mt 12,1-8

No cap. 12, Mt conta mais conflitos de Jesus com os fariseus. Aos poucos, Jesus está se retirando do antigo Israel, porque continuam os conflitos que começaram nos capítulos 9 e 11. Mt volta a copiar de Mc duas controvérsias sobre o sábado, aqui a primeira das espigas de Mc 2,23-28 (omitindo Mc 2,27, mas completando a argumentação através dos vv. 5-7).

No contexto anterior de 11,25-30, os fariseus fazem parte dos “sábios” que não reconhecem Jesus e os discípulos representam os “pequenos e humildes”. O “jugo suave” de Jesus, ou seja, sua interpretação da lei e dos profetas, é a “misericórdia” (v. 7; cf. 11,30; 23,23).

Jesus passou no meio de uma plantação num dia de sábado. Seus discípulos tinham fome e começaram a apanhar espigas para comer (v. 1).

Como Davi em v. 4, os discípulos atuam por necessidade e não violam a lei por maldade. Não era permitido fazer trabalhos de colheita no sábado, mas os leitores judeu-cristãos sabem que boa comida faz parte da celebração de sábado.

Vendo isso, os fariseus disseram-lhe: “Olha, os teus discípulos estão fazendo, o que não é permitido fazer em dia de sábado!” (v. 2).

A observância do sábado já foi prescrita pelo decálogo (10 mandamentos; Ex 20,8; Dt 5,12). No AT, o próprio Deus não trabalha após seis dias da criação (Gn 2,2-3). Depois de libertar os hebreus da escravidão, prescreve a folga no sábado, mesmo no deserto (Ex 16). Moisés declara até a pena de morte para quem violar o sábado (Ex 31,15; 32,2; executada em Nm 15,32-36). O sábado era “sinal perpétuo” da “aliança eterna” (Ex 31,16s). Não era permitido qualquer trabalho, nem plantar nem colher (Ex 34,31), nem cozinhar (Ex 16,23), nem colher lenha, nem caminhar mais de um quilômetro (cf. At 1,12). Arrancar espigas no campo alheio era permitido para matar a fome, mas não se devia carregar nada em cesto (Dt 23,25). Numa sociedade fraterna e fecunda na partilha, os bens necessários à vida não são propriedade de ninguém, quando está em jogo a sobrevivência. A jurisprudência dos fariseus permitiu arrancar espigas, mas não debulhá-los no sábado.

Jesus respondeu-lhes: “Nunca lestes o que fez Davi, quando ele e seus companheiros sentiram fome? Como entrou na casa de Deus e todos comeram os pães da oferenda que nem a ele nem aos seus companheiros era permitido comer, mas unicamente aos sacerdotes?  (vv. 3-4).

Jesus responde à acusação em três partes. Na primeira, Mt repete o exemplo bíblico do rei mais ilustre, Davi, que em caso de necessidade (fome) suspendeu a obrigação da lei (1Sm 21,1-7; o erro de Mc 2,26 que confundiu o sumo sacerdote Abiatar com seu pai Aquimelec, não foi corrigido, mas omitido por Mt e Lc).

Se é sagrado o sábado, não eram menos os pães oferecidos a Deus (cf. Lv 24,5-9). Os sacerdotes colaboraram com Davi, e os fariseus não têm coragem de censurar o rei Davi. Fome significa ameaça de vida, em perigo de vida pode se suspender a lei do sábado. Outro exemplo, a suspensão do repouso no sábado para poder defender-se na guerra (1Mc 2,31-38), não é citado, talvez porque os livros dos Macabeus não fazem parte da Bíblia hebraica reconhecida posteriormente pelos fariseus e seus sucessores, os rabinos.

Ou nunca lestes na Lei, que em dia de sábado, no Templo, os sacerdotes violam o sábado sem contrair culpa alguma? (v. 5).

Ao texto modelo de Mc, Mt acrescenta o trabalho cultual dos sacerdotes que continua no dia do sábado (Nm 28,9). Algumas obrigações determinadas no tempo suspendem a lei do sábado, ex. a circuncisão no oitavo dia (Gn 17) ou as festas de páscoa e das tendas (cf. a contradição em Mt 27,62-28,1: a festa da páscoa coincide com o sábado, e os chefes dos sacerdotes e os fariseus vão a Pilatos para conseguir a guarda do túmulo de Jesus).

Ora, eu vos digo: aqui está quem é maior do que o Templo (v. 6).

A tradução se precipitou relacionando o templo logo com Cristo (cf. 12,41-42), mas ainda não está claro “o que” (em vez de quem!) “é maior que o templo”. Porque o próximo v. 7 responde:

Se tivésseis compreendido o que significa: Quero a misericórdia e não o sacrifício, não teríeis condenado os inocentes (v. 7).

A citação retoma os sacrifícios do templo de v. 6; esta citação do profeta Oseias (Os 6,6; cf. Pr 21,3) já conhecemos da vocação de Mateus em 9,13; seria melhor traduzir: “quero misericórdia mais do que sacrifícios”. Em Mt, Jesus não nega os sacrifícios e não quer revogar as leis cultuais (cf. 5,17-20), mas cumpre a lei mais do que os fariseus e mestres, porque vê a misericórdia como centro da vontade de Deus (cf. 23,23; 25,31-46). A fome de Davi e dos discípulos de Jesus não só justificam a transgressão da lei do sábado, mas todos os famintos tornam-se objeto da misericórdia que Deus quer.

De fato, o Filho do Homem é senhor do sábado” (v. 8). 

Nas antíteses do sermão da montanha, Jesus anunciou o amor como centro da vontade de Deus, sem anular a lei de Moisés (cf. 5,17-48). Com a soberania de “Eu, porém, vos digo”, declarou nenhuma anulação da lei de Moisés, mas subordinação sob a vontade de Deus que quer amor e misericórdia.

Com a mesma soberania, declara que o “Filho do Homem é senhor do sábado”. Jesus atribui-se mais uma vez o título de Dn 7,13-14 (cf. 8,20 e o comentário da 13ª semana, segunda-feira): O messias que vem das nuvens (cf. 26,63s), o “Filho do homem”, é maior do que Davi (cf. 22,41-45p).

Provavelmente, os judeu-cristãos da comunidade de Mt guardavam ainda o sábado (cf. 24,20). Sabiam do grande presente que o dia livre do trabalho significa como antecipação do paraíso, mas sabiam que no decálogo de Dt 5,14s, o sábado é para os pobres, famintos e escravos (“lembra-te que foste escravo na terra do Egito…”). Portanto, os cristãos subordinaram a lei do sábado à pratica da misericórdia. Já os apóstolos começaram celebrar a ceia (Eucaristia) “no primeiro dia da semana” (cf. Lc 24,30; Jo 1,19.26; At 20,7); mudou o dia santo com a ressurreição de Jesus (nova criação, cf. 2Cor 5,17)

Na cultura greco-romana, o ócio era para a elite, ao escravo era negado o ócio (ficou apenas com o “neg-ócio”, o trabalho). No séc. IV, quando o Império Romano converteu-se ao cristianismo, o “domingo” (do latim dies domini, o dia do Senhor) tornou-se o feriado oficial. Assim, todos, senhores e escravos, têm o direito do ócio, pelo menos um dia da semana. Aos poucos, a escravidão foi abolida, deu lugar ao feudalismo. Hoje em dia, o domingo está em perigo de se esvaziar por pressões econômicas ameaçando o convívio das famílias trabalhadoras que não podem mais folgar juntas, mas a misericórdia vale mais do que apenas lucro e crescimento econômico. Insistir no valor do domingo é insistir o valor do ser humano contra um sistema que idolatra o dinheiro e o trabalho (cf. Mc 2,27, omitido por Mt e Lc).

O site da CNBB comenta: Existem pessoas que acham que é difícil seguir Jesus por causa da radicalidade das exigências evangélicas, no entanto, essas mesmas pessoas ficam criando uma série de dificuldades a partir de um legalismo ritual, moral e religioso que acabam por fazer do seguimento de Jesus uma causa de sofrimento e de dor e não uma causa de alegria e felicidade de quem descobre os valores que o conduz para a vida eterna. Muitos cristãos vivem colocando proibições e ficam contentes quando podem falar “não” a alguém. De fato, essas pessoas não entenderam o Evangelho de hoje, muito menos o amor que Deus tem para com seus filhos e filhas.

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