21 de julho de 2018, sábado: E ordenou-lhes que não dissessem quem ele era, para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías

Leitura: Mq 2,1-5

Em 1Rs 22,13-28, um profeta de nome Miqueias (o nome significa: quem é como Javé?) anuncia a morte do rei Acab de Israel na batalha (853 a.C.). Mas não é o mesmo Miqueias cujos oráculos são conservados na coleção dos Doze Profetas Menores (de onde é tirada nossa leitura) e que viveu um século e meio mais tarde (cerca de 750 a 700), como contemporâneo de Isaías na roça no reino do sul (Judá). Com sua mensagem que se limita a denunciar a injustiça social, ele está mais próximo dos profetas do reino do norte, Amós e Oseias.

A Bíblia Sagrada Edição Pastoral introduz este profeta:

O profeta Miquéias nasceu em Morasti, uma vila no interior do reino de Judá. Sua origem camponesa se manifesta na linguagem concreta e franca, nas comparações breves e nos jogos de palavras. Ele exerceu sua atividade em fins do século VIII a.C., quando sua região estava sendo devastada pelos assírios.

Miquéias, entretanto, denuncia uma situação mais perversa do que a própria guerra em andamento: a cobiça e injustiças sociais, onde ele vê a causa principal da ira de Deus (2,8). Após descrever os estragos da guerra (1,8-16), o profeta nos conduz à capital, onde ele se defronta com os ricos e com os dirigentes políticos e religiosos. Vindo da roça, Miquéias acusa-os de roubar casas e campos para se tornarem latifundiários (2,1-2) e os condena por mandar matar até mulheres e crianças para se apoderarem das terras (2,9). Com o poder nas mãos, eles dançam ao ritmo do dinheiro, falseando o peso das mercadorias (6,10-12). Miquéias mostra que a riqueza deles se baseia na miséria de muitos e tem como alicerce a carne e o sangue do povo (7,1-4).

Eles, porém, insistem, com a Bíblia na mão, em provar que são justos (2,6-7) e que Deus está com eles (3,11); procuram combinar religião com opressão aos fracos. Miquéias denuncia tal perversão como atitude idolátrica (1,5); por isso, é taxativo: eles, juntamente com a luxuosa capital e o próprio Templo, serão destruídos (3,9-12).

No livro atual de Miquéias existem também promessas e esperanças. Entre elas se destaca o anúncio do surgimento do Messias na pequena cidade de Belém (5,1-3). O Novo Testamento retomará esse oráculo e o atribuirá ao nascimento de Jesus Cristo (cf. Mt 2,6).

A construção da nossa leitura de hoje segue o modelo clássico: denúncia do pecado (vv. 1-2), ameaça do castigo (v. 3), conseqüências (vv. 4-5). Original é utilizar um “ai” para a primeira parte e uma “alegoria” (sátira, panfleto) para a terceira.

Ai dos que tramam a iniquidade e se ocupam de maldades ainda em seus leitos! Ao amanhecer do dia, executam tudo o que está em poder de suas mãos. Cobiçam campos, e tomam-nos com violência, cobiçam casas, e roubam-nas. Oprimem o dono e sua casa, o proprietário e seus bens (vv. 1-2)

Em dois versículos admiráveis por sua concisão, o profeta concentra a perversão dos poderosos (compare-se com a magistral fórmula de Sb 2,11). A noite (“em seus leitos”) poderia ser tempo de penitencia (Sl 4) e o “amanhecer” tempo de graça (Sl 57; 90,14), mas os malvados fazem contrário: “Cobiçar, roubar, tomar e oprimir a herança (terra e casa)” é a expressão forte de quem presencia e experimenta na pele a exploração da elite agrária contra os pobres do campo, com espoliações e desapropriações injustas da herança (cf. Is 5,8-10). “Cobiçar” é o verbo usado no decálogo, e a “casa” inclui família e empregados (Ex 20,17). Os “bens”, lit. “herança”, acentua o caráter sagrado e ancestral da propriedade (Nm 27,1-11 e 36,1-12). Trata-se da prisão por dívidas, do que os credores aproveitam para aumentarem as suas posses.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 934) comenta: A estrutura estatal, imposta pela implantação da realeza, suplantou a antiga disposição da liga sacral das tribos, mas não soube conservar os valores de igualdade e de fraternidade que se ligavam à antiga situação. Ele deu origem à divisão em classes, uma oposição sempre mais evidente entre uma elite atraída pela isca do ganho e a massa popular. Cada vez mais esmagados por pesados encargos, esses trabalhadores eram progressivamente reduzidos a servos, ou mesmo a escravos.

Isto diz o Senhor: ”Eis que tenciono enviar sobre esta geração perversa uma desgraça de onde não livrareis vossos pescoços; não podereis andar de cabeça erguida, porque serão tempos desastrosos (v. 3).

“Tenciono”: o hebraico emprega o mesmo verbo dito antes dos poderosos (“tramam”, v. 1). Deus trama o desastre para os malvados do qual não se poderão livrar. O “pescoço” parece aludir ao jugo dos escravos transportado cargas.

Naquele dia, sereis assunto de uma alegoria, de uma canção triste que diz: Fomos inteiramente devastados; a parte de meu povo que passou a outro, por ninguém lhe será restituída; os nossos campos são repartidos entre infiéis (v. 4).

A alegoria irônica (sátira) toma a forma de lamentação, para tornar-se mais pungente. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 934) comenta: As censuras de Miquéias de modo algum provêm de demagogia. Aquilo que aqui é denunciado é principalmente e antes de tudo, a infidelidade aos compromissos da Aliança. Esta representa o ideal de comunhão e de fraternidade religiosa comprometido pela despudorada exploração dos pobres, logicamente segue-se a sanção: o pecado acarreta a ruptura da Aliança e a repartição da Terra Santa “entre os infiéis” constitui seu mais evidente sinal.

Refere-se à concepção da terra como dom de Deus, no início repartido por sorte. Quem cobiçar a terra de outros, perderá os próprios campos para outros. O castigo, obra de um invasor estrangeiro (rebeldes, infiéis), cai sobre os injustos. Mq não menciona nomes (só títulos), apenas alude a uma futura invasão e deportação (1,10-16) pelos assírios (cf. 5,4s). Os assírios já conquistaram Damasco (732), e Samaria (722-721) e sitiarão Jerusalém por três meses (701).

O texto hebraico está corrompido; há diversas traduções, segue-se a versão grega. “A parte de meu povo” (v. 4) é medida a “cordel” (v. 5). As terras eram periodicamente redistribuídas por sorteio, no curso de uma cerimônia cultual (cf. v. 5).

Por isso, não terás na assembléia do Senhor quem meça com cordel as porções consignadas por sorte” (v. 5).

O v. 5 retoma de maneira concisa a condenação dos vv. 3-4. Dirige-se tanto ao povo visto como unidade, como a cada individuo que o integra. Um dia, a assembléia repartirá de novo a terra, e nenhuma “porção” caberá aos exploradores, lit. “tu não terás ninguém para lançar o cordel sobre uma porção na assembléia do Senhor” Os usurários serão excluídos da nova divisão de terras no reino restaurado. Possivelmente, a perspectiva escatológica presente nos vv. 4-5 é obra do redator pós-exílico (cf. Dt 28,30-33).

 

Evangelho: Mt 12,14-21

Ouvimos hoje uma interpretação das curas de Jesus pelo evangelista Mt.

Os fariseus saíram e fizeram um plano para matar Jesus. Ao saber disso, Jesus retirou-se dali (vv. 14-15a).

Com a cura do homem com a mão atrofiada, numa sinagoga num dia de sábado, Jesus havia desafiado mais uma vez os fariseus (vv. 9-13, copiado de Mc 3,1-6). No evangelho, é a primeira vez que se fala da paixão e explicitamente da decisão de matar Jesus. O leitor já sabe que os adversários conseguirão este objetivo. Jesus não foge por covardia, mais se retira por prudência como ele recomendou no discurso da missão (cf. 10,13-16).

Grandes multidões o seguiram, e ele curou a todos (v. 15b).

As multidões vão atrás de Jesus e não atrás dos fariseus. É um contraste, as autoridades querem matar Jesus, e as multidões marginalizadas vão atrás do grande profeta. Acontece muitas vezes que os excluídos não encontram o apoio das autoridades e vão procurar alternativas. Jesus tem compaixão, as acolhe (cf. 9,36) e cura a “todos”, como já foi mencionado em 8,16 (cf. Mc 3,7-12).

E ordenou-lhes que não dissessem quem ele era, para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías (vv. 16-17).

Como esta ordem ao silêncio, Mt copia uma característica de Mc, mas para Mt não se refere mais ao segredo de ser o messias, nem é mais ordenado aos demônios (cf. Mc 3,11-12), mas prepara a citação de Is 42,1-4 que apresenta o servo de Javé que não grita nem faz propaganda ruidosa (cf. v. 19).

Mt gosta de citar do AT para mostrar aos seus leitores judeu-cristãos que em Jesus “se cumpre o que foi dito pelo profeta”, ou seja, a escritura (cf. esta a fórmula em 1,22; 2,15.17.23; 8,17; 12,17; 13,35; 21,4; 26,54.56; 27,9; cf. 3,3; 11,10; 13,14). Mt costuma usar mais a tradução grega do AT, chamada Setenta (LXX), por ex.: Mt 1,23 cita Is 7,14 grego: virgem (em Is 7,14 hebraico é mulher jovem). Aqui Mt traduz mais livremente do texto hebraico.

”Eis o meu servo, que escolhi; o meu amado, no qual coloco a minha afeição; porei sobre ele o meu Espírito, e ele anunciará às nações o direito. Ele não discutirá, nem gritará, e ninguém ouvirá a sua voz nas praças. Não quebrará o caniço rachado, nem apagará o pavio que ainda fumega, até que faça triunfar o direito. Em seu nome as nações depositarão a sua esperança” (vv. 18-21).

Para entender melhor a intenção de Mt, analisamos primeiro o texto original (hebraico) de Is 42,1-4. Na Semana Santa ouvimos os quatro cânticos do “servo” de Deus (2ª, 3ª, 4ª e 6ª feira santa; cf. os comentários). O primeiro canto (ou poesia) caracteriza o “eleito” de Javé (Is 42,1) de maneira aberta a várias interpretações: É uma pessoa ou uma figura coletiva? Deus elegeu Israel, mas também Davi, “em que pus o meu espírito” (v. 1; cf. 1Sm 16,13). Mas a figura deste servo é um contraste grande a um rei poderoso ou a um povo guerreiro (cf. Jz 7,23-25; 8,4-21). Ele só se apóia no Senhor que o “tomou pela mão” (v. 6a). Para “estabelecer a justiça (direito) na terra” (v. 4), ele “promoverá o julgamento (direito) das nações” (v. 1b), ou seja, dos pagãos, mas não o direito do mais forte. Ele não submeterá os mais fracos ao seu domínio, mas seu agir acabará produzindo uma transformação radical. Os cegos enxergarão e os presos serão libertados (v. 7; cf. 61,1). O servo foi constituído pelo Senhor “como o centro da aliança, luz das nações“ (v. 6b), mas evita barulho e violência: “Ele nem clama nem levanta a voz,… não quebra uma cana rachada nem apaga um pavio que ainda fumega” (vv. 2-3). Ele tem discrição e firmeza, sua atitude de cuidado coincide com sua perseverança, “não esmorecerá nem se deixará abater, enquanto não estabelecer a justiça da terra” (v. 4).

Os evangelhos aplicam a Jesus esta figura do servo. “Este é meu filho (yiós) amado em que me comprazo”, diz a voz do céu no batismo (cf. 3,17; Sl 2,7). O Espírito do messias em forma de pomba simboliza paz e amor, não violência (Mt 3,16p; cf. 17,5p; 12,17-21). Na leitura de hoje, Mt utiliza da tradução grega LXX uma palavra grega (“païs”, cf. paidagogia, em português: pedagogia) que geralmente significa “menino“ (e não “servo”; cf. 8,5-13; At 3,13.26; 4,25-27; Sb 2,18.5,5), reforçando a lembrança do batismo de Jesus no início da sua vida pública. Com suas curas, Jesus prova aos fariseus que ele tem o Espírito (cf. 12,28.32). O “menino” (filho) não grita nem briga, porque é um messias “manso e humilde de coração” (11,29; cf. 21,5). Ele promove a paz não através de guerras, nem faz uso da violência (cf. 26,52s). Jesus ainda não anunciou o evangelho aos pagãos (cf. 10,5s), mas como o conflito com Israel representado pelos fariseus se agrava, no futuro anunciará o julgamento (direito) através dos apóstolos “a todas as nações” (28,19). Em Mt, este “direito” que se anuncia é o juízo final que o menino-filho “faz triunfar” (lit. levará à “vitória”, tradução própria de Mt).

A citação de Is 42,1-4 é a mais longa em Mt, porque, no meio do evangelho, quando o caminho de Jesus parece se obscurecer, Mt quer deixar claro para seus leitores: aquele Jesus que é hostilizado pelos fariseus e será condenado à cruz, é mesmo o messias predito pelos profetas e o Filho amado de Deus. É com ele que o projeto de Deus vencerá e se estenderá às nações.

O site da CNBB comenta: Jesus não veio à terra para buscar a sua glória ou a sua promoção pessoal. Ele veio como o servo de Deus para garantir, por uma vida de serviço e, principalmente, pela sua paixão e morte de cruz, a salvação para todas as pessoas. Com isso, Jesus é aquele que cumpre todas as promessas feitas por Deus durante todo o antigo Testamento. Ele vai, não pela glória, pela arrogância e pelo poder, mas pelo amor, pela misericórdia e pelo serviço, realizar o projeto de Deus e nos mostrar novos valores que devem nortear as nossas vidas, tornando-se ao mesmo tempo modelo para todas as pessoas e a esperança de todas as nações.

Voltar