21 de junho de 2018, quinta-feira: Felizes os que te viram, e os que adormeceram na tua amizade! Nós também, com certeza, viveremos; mas, após a morte, não será tal o nosso nome

Leitura: Eclo 48,1-15 (grego; hebraico 1-14)

Para concluir o ciclo das leituras sobre o Elias, ouvimos hoje um resumo poético do livro do Eclesiástico. Este livro é um dos sete que não se encontram na Bíblia Hebraica nem na Bíblia dos protestantes (Obs.: não confundir com Ecl, ou seja, o livro de Eclesiastes que se encontra em todas as Bíblias).

O nome “Eclesiástico” provém do uso oficial que a Igreja (em grego e latim: ekklésia) faz desse livro, em contraposição à Sinagoga judaica, que não o aceita como Palavra de Deus e por isso também não foi aceito pelos protestantes. Eclo é uma obra escrita em hebraico entre 190-124 a.C. por Jesus Ben Sirac (50,27; 51,30), e chegou até nós graças à tradução grega (chamada “Sirácida”) feita pelo seu neto em 132 a.C., como escreveu num prólogo. Partes do texto hebraico foram encontrados no Egito em 1894 e em Israel em 1964. Ben Sirac pertence ao “grupo dos assideus, que eram israelitas fortes, corajosos e fiéis à Lei” (1Mc 2,42) e viveu nas vésperas da revolta dos macabeus contra o helenismo (a cultura grega que se impunha no Oriente depois das conquistas de Alexandre Magno). No início do século II a.C., a Palestina passou do domínio dos Ptolomeus (Egito) para o dos Selêucidas (Síria) que promoveram uma política de assimilação e procuraram impor a cultura, a religião e os costumes gregos – um imperialismo cultural que ameaçava destruir a identidade cultural e religiosa dos dominados. Ben Sirac escreveu então este livro, uma longa meditação no estilo sapiencial sobre a fidelidade hebraica, a consciência histórica do seu povo e o valor perene de suas tradições. O autor, porém, não é intransigente, pois em seu livro mostra ter já assimilado diversos aspectos da cultura grega (iniciando o caminho de uma síntese que culminará no Livro da Sabedoria escrito em Alexandria em 50 a.C.). Esta obra do autor Ben Sirac está impregnada do tema da “sabedoria”; destacam-se poesias sobre a sabedoria no início (1,1-10), no meio (cap. 24) e no fim (51,13-30; na outra contagem de versículos: vv. 18-38).

Na primeira grande parte, Ben Sirac dá conselhos a respeito de vários temas, até da vida cotidiana. Na segunda parte, faz considerações sobre a glória de Deus na natureza (42,15-43,33) e na história (44,1-50,24). Nesta, faz um elogio aos antepassados, iniciando por Henoc (44,16) até chegar ao sumo sacerdote Simão do tempo do autor (50,1-21). Na leitura de hoje, ouvimos seu elogio do profeta Elias baseado com dados dos livros dos Reis (1Rs 17-19; 21: 2Rs 1-2) e do profeta Malaquias (Ml 3). É enérgico e sugestivo: o autor fica quase arrebatado ao descrevê-lo. O poder de Elias domina a chuva e a tempestade no céu (vv. 2-3), reis e dinastias na terra (vv. 6-7) e atinge até o Abismo (v. 5).

O profeta Elias surgiu como um fogo, e sua palavra queimava como uma tocha (v. 1)

O fogo é símbolo da presença divina (cf. Gn 15,17s; Ex 13,14; 19,6-18) e do Espírito Santo (At 2,3s). Elias encheu-se de espírito profético, “ardente zelo” (1Rs 19,10.14) e dedicação à Palavra de Javé (cf. Jr 20,90; 69,10; Jo 2,17). João Batista anuncia o julgamento do Senhor com fogo (Mt 3,10-12p).

Fez vir a fome sobre eles e, no seu zelo, reduziu-os a pouca gente. Pela palavra do Senhor fechou o céu e de lá fez cair fogo por três vezes (vv. 2-3).

“Fez vir a fome sobre eles”; hebraico: “quebrou para eles bastão de pão”. A tradução grega transpôs esta imagem, incompreensível fora de seu ambiente de origem.

“Fechou o céu e de lá fez cair fogo por três vezes”. Elias anunciou ao rei Acab (874-853 a.C.) uma seca que só terminou depois de três anos (2Rs 17,1; 18,41-45; cf. Lc 4,25; Tg 5,17s) após a vitória na disputa com os profetas do Baal, o deus fenício de tempestade e fecundidade. Elias ganhou porque Javé respondeu com fogo (1Rs 18,38; cf. Lc 9,54).

Ó Elias, como te tornaste glorioso por teus prodígios! Quem poderia gloriar-se de ser semelhante a ti (v. 4).

“Por teus prodígios” (grego), em hebraico: “Como eras temível!”

Tu, que levantaste um homem da morte e dos abismos, pela palavra do Senhor; tu, que precipitaste reis na ruína e fizeste cair do leito homens ilustres; tu, que ouvistes censuras no Sinai e decretos de vingança no Horeb. Tu ungiste reis, para tirar vingança, e profetas, para te sucederem (vv. 5-8).

Elias ressuscitou o filho morto da viúva em Sarepta (1Rs 17,17-24).

“Precipitaste reis … fizeste cair do leito homens ilustres”, lit. “abaixo de seu cetro” (hebraico); isto é, a realeza. A tradução grega errou: em lugar de matteh, cetro, leu mittah, leito.

Samuel já repreendeu Saul (1Sm 15) e Natã corrigiu Davi (2Sm 11-12), mas Elias é o primeiro grande profeta, cuja missão consiste permanentemente na oposição do profeta contra o rei, porque o rei de Israel, Acab, se entregou a idolatria e injustiça por influência da sua esposa Jezabel, uma princesa da Fenícia que promoveu o culto a seu deus Baal e perseguiu os profetas de Javé (cf. 1Rs 16,30-34; caps. 19 e 21).

As “censuras no Sinai e decretos de vingança no Horeb” se referem a 1Rs 19,9-18: Dizendo que sete mil homens lhe permaneceram fiéis, Deus contradiz Elias que pensava estar sozinho e implicitamente lhe “censura” o ter-se desencorajado. Depois anuncia a mudança política e religiosa através da unção de dois reis e de Eliseu, profeta que lhe sucede.

Tu foste arrebatado num turbilhão de fogo, num carro de cavalos também de fogo (v. 9).

O v. 9 descreve o arrebatamento de Elias, sua ascensão ao céu num carro de fogo (2Rs 2,11s).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1804) comenta: O gr. elimina as palavras “para o alto” (9a) “ao céu” (9b: vocábulo incompleto e incerto em hebr.), que determinam em hebr. e sir. para onde Elias foi arrebatado. Este abrandamento é semelhante ao da Septuaginta a propósito de Henoc (Gn 5,24) e de Elias (2Rs 2,11). Seu objetivo é não chocar a mentalidade do mundo helenístico.

O espiritismo cardecista considera João Batista uma “reencarnação de Elias”. Mas na Bíblia, Elias não desencarnou, foi arrebatado (cf. Henoc em Gn 5,24), portanto, não reencarna (ideia alheia à Bíblia que fala da ressurreição, não de reencarnação).

Tu, nas ameaças para os tempos futuros, foste designado para acalmar a ira do Senhor antes do furor, para reconduzir o coração do pai ao filho, e restabelecer as tribos de Jacó (v. 10).

Quatro séculos depois de Elias, Malaquias anuncia um “mensageiro” que prepara um caminho para o Senhor “antes do dia de Javé” (Ml 3,1.23). Este seria Elias voltando com uma missão pacífica: “reconciliar os pais com os filhos e os filhos com os pais” (Ml 3,24; cf. o anjo Gabriel falando a Zacarias sobre a missão de João Batista em Lc 1,17), e “restabelecer as tribos de Jacó” (linha provavelmente de Is 49,6).

Este v. atesta a tradição judaica que aguardava, para os tempos messiânicos, a volta de Elias, arrebatado para junto de Deus. Ele voltará como precursor do messias para introduzir a libertação. Ainda hoje, na ceia pascal, os judeus devotos reservam uma cadeira livre porque Elias poderia chegar para anunciar a vinda do messias.

Felizes os que te viram, e os que adormeceram na tua amizade! Nós também, com certeza, viveremos; mas, após a morte, não será tal o nosso nome (vv. 11-12).

Este versículo é difícil, o texto é incerto. O texto grego introduziu o v. 12 (falta no hebraico) e sua fé na vida futura: “é nós também viveremos”, o que não se encaixa no contexto.

O texto grego exprime uma clara esperança de sobrevivência (7,17, alusão a castigos após morte). O texto siríaco diz: “Bem-aventurado quem te viu e morreu, em verdade não morreu, mas viverá (ou: viveremos) com certeza”. Em grego é difícil saber se se trata dos que viram Elias ou dos que verão o seu retorno, pois o verbo é um particípio sem valor temporal.

A Bíblia de Jerusalém (p. 1322) comenta: O autor, após ter feito o elogio do profeta, afirma que os outros, os que o verão quando de seu retorno, bem como os que morreram no amor (de Deus?), viverão eternamente. Mas o hebr. infelizmente corrompido (“feliz aquele que te vê”), talvez simplesmente faça alusão a Eliseu que viu desaparecer (2Rs 2,10.12). Então teríamos aqui uma simples transição para o trecho seguinte.

Elias era invocado como advogado dos pobres e intercessor nos maiores apertos e na última hora (cf. o mal-entendido “Eli” na cruz de Jesus em Mc 15,35p). Elias é considerado o maior dos profetas (junto com João Batista em Mt 11,7-14). Em Ml 3,22s e Mc 9,4p, Moisés representa a Lei e Elias os profetas (apesar de não existirem escritos do próprio Elias).

Apenas Elias foi envolvido no turbilhão, Eliseu ficou repleto do seu espírito. Durante a vida não temeu príncipe algum, e ninguém o superou em poder. Nada havia acima de suas forças, e, até já morto, seu corpo profetizou. Durante a vida realizou prodígios e, mesmo na morte, suas obras foram maravilhosas (vv. 13-15). 

Os vv. 12-14 são um elogio ao profeta Eliseu, o taumaturgo. Note-se a insistência na sucessão (v. 8; cf. 1Rs 19,15-21).

“Até já morto, seu corpo profetizou”; após sua morte, o profeta Eliseu ainda ressuscitou um morte (2Rs 13,20-21). Mas o texto é confuso. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1804) comenta: Hebr.: “Por baixo dele sua carne foi criada”. Se a expressão “debaixo dele” designa a sepultura (cf. 49,10b), o gr. talvez aluda à ressurreição de um morte cujo cadáver foi lançado no túmulo de Eliseu (2Rs 13,20-21), sobretudo se se leva em conta o paralelismo entre o v. 13 e o v. 14. Entretanto, pode-se também pensar na ressurreição do menino sobre o qual Eliseu se deitou (2Rs 4,33-37) e traduzir o gr.: “mesmo deitando-se, seu corpo profetizou”.

 

Evangelho: Mt 6,7-15

Hoje se apresenta o centro do Sermão da Montanha que foi omitido na leitura de ontem. É a “oração do Senhor” porque foi ele que a ensinou (cf. Lc 11,1-4).

Quando orardes, não useis muitas palavras, como fazem os pagãos. Eles pensam que serão ouvidos por força das muitas palavras. Não sejais como eles, pois vosso Pai sabe do que precisais, muito antes que vós o peçais. Vós deveis rezar assim: (vv. 7-9a).

No contexto, Mt critica a oração, o jejum e a esmola dos fariseus que fazem “só para serem visto pelos homens” (vv. 1-6.16-18). No mesmo esquema, “quando orardes, … não fazeis isso…, mas aquilo” (vv. 5-6), inseriu a oração do Senhor na recomendação “quando orardes, não useis muitas palavras” (v. 7). Não se condena a frequência (Lc 18,1), nem a ansiedade, mas a prolixidade, ou seja, dizer coisas vãs ou pretender, por sua extensão, pressionar a divindade (cf. 1Rs 18,27; Is 1,15; Eclo 7,14; Tg 1,26).

A oração do Senhor assemelha-se, tanto pelo conteúdo como pela forma, às orações judaicas (ex. a “oração das 18 preces” que os judeus rezam ainda hoje), mas distingue delas por sua simplicidade e liberdade com que se invoca Deus.

Contém duas partes, uma em honra de Deus (“tu/vós”), outra em favor dos seres humanos (“nós”). Na primeira, pede-se que Deus manifeste seu projeto de salvação; na segunda, pede-se o essencial para que possamos viver segundo este projeto: pão para o sustento, bom relacionamento com os irmãos e perseverança até o fim.

Esta oração nos foi transmitida por Mateus e por Lucas. A versão de Lc 11,2-4 é mais breve e por isso considerada mais original, porque, segundo os exegetas (peritos da Bíblia), é muito mais provável que alguém acrescente coisas a esta oração fundamental do que alguém tire umas partes dela. Por exemplo: vários manuscritos acrescentaram a fórmula de uma antiga liturgia “pois teus são o reino, o poder e a gloria” (cf. o texto ecumênico do Pai Nosso). Muitos católicos gostam de acrescentar uma Ave Maria depois do Pai Nosso.

A liturgia da missa reza o Pai nosso na versão de Mt, porque antigamente achava-se que este evangelho fosse o mais original por ser relacionado com o nome de um apostolo; “Mateus” (cf. 9,9; 10,3). Hoje, porém, sabe-se que Marcos é o evangelho mais antigo (mas não contém esta oração, a não ser um pedido em Mc 14,36). Aliás, muita coisa indica que Mt não foi escrito por um apóstolo, porque usava todo o Mc (até a própria vocação Mt 9,9-13 é cópia de Mc 2,13-17).

Portanto, podemos supor que Mt aumentou o número de pedidos de cinco (Lc 11,2-4) para sete. Mt escreveu para judeu-cristãos; para estes, “sete” é o número sagrado da perfeição (cf. a criação em Gn 1,1-2,4a; no culto Lv 4,6-17; 8,11; Nm 28,11; Ez 45,23; cf. Zc 3,9; Tb 12,15; Ap 1,20; 3,1; 5,1s; 8,6). É número predileto por Mt: 2 vezes 7 (14) na geneologia (1,17); sete parábolas (cap. 13), 70 vezes 7 perdoar (18,21s). Aqui, Mt acrescenta no final de cada parte da oração uma prece, o 3º e o 7º pedido.

Pai nosso que estás nos céus (v. 9b),

Jesus autoriza os discípulos a invocarem Deus como “Pai” (cf. a oração do rei em Sl 89,27 e de um particular em Eclo 51,10). Em Lc 11,2 só “Pai”, que equivale o novo nome de Deus (“Abbá”) que implica a consciência da filiação testemunhada no Espírito (no batismo, cf. Rm 8,15-16; Gl 4,6-7; Mc 1,11).

Chamar Deus de “Abba” (papai em aramaico; cf. 14,36; Rm 8,15; Gl 4,6) revela a intimidade do próprio Jesus com Deus (Mc 14,36; cf. 11,25-26p; Jo 3,35; 5,19s; 8,28s etc.). Em Mt, os discípulos dirigem-se ao Pai comum (“nosso”) que é único (23,9) e “está nos céus”. Não é uma localização no espaço, mas expressa que Deus domina a terra inteira e ao mesmo tempo está perto (“nosso”) dos homens (cf. Mc 11,25; Mt 5,16,45,7,21; 10,32-33 etc.).

Santificado seja o teu nome (v. 9c).

“Santificar a Deus” ou “seu nome” é expressão clássica na Bíblia. O nome representa a pessoa e no judaísmo é usado para designar o próprio Senhor, cujo nome não se pronunciava mais (Yhwh, “Javé”, depois traduzido por “Senhor”) para não violar o segundo mandamento (Ex 20,7). Já que Deus é o Santo por excelência (cf. Is 6,3; Sl 99 etc.), santificá-lo não é dar ou acrescentar algo a sua santidade, mas reconhecer, que se proclame o que ele é, que se preste glória (cf. Jo 12,28; 17,6.26).

Não mostrar a santidade de Deus foi o delito de Moisés (Nm 27,14). Os legistas e rabinos convidam os fieis a santificar Deus pela obediência aos seus mandamentos e com isso reconhecer sua autoridade (Lv 22,32; Dt 32,51; Is 8,13; 19,13). Além disso, os profetas anunciam que Deus mesmo vai santificar seu nome, manifestando-se aos olhos de todos como justo juiz e salvador (Is 5,16; 29,23; Ez 20,41; 28,22.25; 36,23; 38,16.23; 39,27), apesar dos pecados do povo.

Ao lado do próximo pedido da vinda do reino, que só Deus pode realizar, a forma passiva, “seja santificado teu nome”, indica esta intervenção de Deus discretamente sem nomeá-lo (passivo divino, cf. 5,6.7.9; 7,1.2.7.8…). O contrário é seu nome ser ignorado e profanado, manipulado e banalizado por interesses humanos o que de fato aconteceu muitas vezes na história humana e ainda acontece (cf. guerras “religiosas” por motivos econômicos ou políticos).

Venha o teu Reino (v. 10a),

“Venha o teu reino” é o pedido que a realeza permanente de Deus sobre o mundo (Sl 93,1-3; 95,3; 99,1-4…) se manifeste plenamente no tempo da salvação (Is 52,7; Sl 96,10; 97,1; 98,6-9…). “Venha” é símbolo espacial que se resolve na realização histórica final (Sl 98,6-9). Este pedido corresponde ao anúncio primordial da Boa Nova (Evangelho) por João Batista e Jesus (3,2; 4,17; sobre o reino, cf. o comentário do 1º domingo da quaresma ou da 2ª feira da 1ª semana do Tempo Comum). Aliás, quando não se lê “entrar no reino” (5,20; 7,21; 18,3; 19,23), convém traduzir por “reinado” para não confundi-lo com uma área geográfica, já que se trata do exercício do poder de Deus e sua soberania.

Seja feita a tua vontade, assim na terra como nos céus (v. 10b).

Mt encontrou a oração de Jesus agoniado no Jardim das Oliveiras já em Mc 14,36, a adaptou e também trouxe para dentro da oração do Pai-Nosso. Assim Mt acrescentou o terceiro pedido “seja feita a tua vontade” (falta em Lc 11,2-4). Esta prece equivale àquela anterior (cf. Is 44,28; 46,10-11; 48,14; Ez 1,5,9) que Deus exerça seu reinado. Não é fatalismo, nem resignação, porque a vontade divina não se poderá cumprir sem a adesão por parte dos seres humanos, tanto no fim do tempo por sua concordância perfeita entre as vontades humanas e a dele (Jr 31,31-33; Ez 36,27), como agora, pelo cumprimento dos mandamentos, cuja necessidade Mt acentua tantas vezes (5,17-20 7,21.24-27; 12,50; 21,30…).

O sentido de “assim na terra como no céu” é que se realize na terra o que já existe no céu, da mesma forma que no esquema apocalíptico (cf. Dn 4,31; 1Mc 3,60). O céu é concebido como reinado de Deus totalmente realizado, a terra deve ser imagem dele (como o homem deve ser imagem de Deus; cf. Gn 1,26s). Aliás, é possível que esta frase não se refira só as últimas palavras, mas ao conjunto dos três pedidos.

O pão nosso de cada dia dá-nos hoje (v. 11).

No pedido pelo “pão nosso” (v. 11), há dificuldade de traduzir a palavra grega. A Bíblia latina (Vulgata de S. Jerônimo) traduz de forma diferente a mesma palavra, em Mt supersubstancialem e em Lc, cotidianum. Pode ser, então, o pão cotidiano para hoje (Sl 136,25; cf. Pr 27,1; 30,8-9) e também o pão do amanhã escatológico (o banquete do mundo vindouro; cf. 8,11; 22,2-14; 26,29; Is 25,6; 55,1-2; Sl 22,27; Lc 14,15; Ap 3,20; 19,9), antecipado no pão eucarístico (cf. 26,26; Jo 6,32-35).

Embora a tradução exata permaneça incerta, fica claro que tal pedido não é uma exigência de segurança para o futuro. Jesus convida seus discípulos missionários a pedirem dia após dia (cf. 6,34; Mc 6,8) o alimento de que precisam, na certeza de que Deus proverá cada dia, assim como alimentava Israel no deserto com o “maná” colhido um dia após outro (Ex 16).

Perdoa as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido (v. 12).

Mt usa no pedido pelo perdão a palavra “dívidas” (v. 12). No mundo antigo, uma dívida podia acarretar até a perda da liberdade (cf. Mt 18,23-28). Desconhecida no AT, esta figura é usada no judaísmo para indicar a situação do ser humano diante de Deus: é devedor insolente, é o estado de pecador. No mundo moderno, onde se recorre habitualmente ao crédito e empréstimo, perde-se o sentido dessa tradução. Talvez a palavra “faltas” indique melhor a ofensa feita pessoalmente como situação miserável do pecador. Jesus une nossas obrigações para com Deus e para com nossos irmãos (cf. 22,34-40), adaptando-se ao tema da aliança: assim devemos perdoar aos nossos devedores, aos que nos ofendem, aos que tem faltas contra nós, para que Deus nos perdoe (cf. Eclo 28,1-7; Mt 5,7; 6,14-15; 18,23-35; Mc 11,25; Ef 4,32). Este perdão fraterno não compra o perdão de Deus, mas atesta a nossa sinceridade.

E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal (v. 13).

Com formulação negativa, “não nos deixes cair em tentação” (lit. “não nos conduzas/exponhas à tentação”), pedimos para superá-la (cf. 26,41). A provação é condição do ser humano, particular do religioso (Eclo 2,1-5; 23,1; 33,1). No AT, é o próprio Deus que tenta e sujeitou à prova Abraão (Gn 22,1; 1Mc 2,52; Eclo 44,20) ou experimenta seu povo (Ex 15,25; 16,4; 20,20; Dt 8,2.16; 13,4; Jz 2,22; 3,1.4; 2Cr 32,31; Sb 11,9s), se este é fiel e obediente fazendo a vontade de Deus ou foge dos seus compromissos escolhendo o caminho mais fácil. Nos textos posteriores, há uma tendência de distinguir Deus como sujeito soberano que quer o bem, de outro sujeito que quer o mal e tenta, Satanás (Deus tenta em 2Sm 24,1 e Satanás no paralelo 2Cr 21,1; cf. Jó 1-2 e já a serpente em Gn 3). Na literatura sapiencial, a tentação pode ser vista de maneira positiva como meio pedagógico, como prova  (Sb 3,5s; 11,9; Eclo 2,1.6; 4,17; 1Mc 2,52; Jt 8,25s; cf. Sl 26,2), mas aqui a situação é mais dramática.

No NT, é a prova pela qual satanás procura arruinar aquele contra quem investe (1Cor 7,5; 1Ts 3,5; 1Pd 5,5-9; Ap 2,10; cf. Lc 22,31; Jó 1,2). Nunca se diz no NT que o próprio Deus tenta e Tg 1,13 o excluí expressamente (cf. Eclo 15,11s; cf. 2Sm 24,1 e 1Cr 21,1). Nada, porém, escapa da soberania de Deus, nem sequer a tentação nem o poder de satanás. Ele não quer que o homem peque, mas pode conduzir ou confrontar alguém a uma situação crítica (prova), como “o Espírito impeliu Jesus ao deserto para ser tentado por Satanás” (4,1; cf. Hb 2,18; 4,15). Também no jardim Getsêmani, a oração de Jesus é exemplar; para Mt é ocasião de lembrar dois pedidos da oração do Pai-Nosso (26,41s).

Na oração do Pai-Nosso rezamos que nos poupe de uma provação tal que corramos risco de não poder suportá-lo e “cair” (cf. 1Cor 10,13: o próprio Deus nos oferece uma “saída”). Sabemos da nossa fraqueza e culpa (pedido anterior); agora pedimos que Deus não nos coloque diante de situações tal tentadoras que possamos perder a salvação eterna.

Para chegar ao número sete, Mt (ou a comunidade antes dele) acrescentou o pedido final (v. 13b): “mas livra-nos do mal” ou “do maligno”, isto é satanás (identificado como o tentador de v. 13a). Os dois sentidos são possíveis (quanto ao primeiro, cf. 5,11; 6,23; cf. 2Tm 4,18; quanto ao segundo, cf. 13,19; 5,37; 13,38; Jo 17,15; 2Ts 3,3). Pelo pedido anterior, o sentido pessoal é preferível (cf. “o tentador” em 4,3; 1Ts 3,5) e restitui a situação dramática da tentação, o qual se perde hoje pelo uso da propaganda publicitária que associa a palavra “tentação” à uma coisa desejável de consumo.

Em Mt, estes dois últimos pedidos reduzem-se num só. A última prece também está incluída de certo modo na segunda: quando vier o reino de Deus em plenitude, o mal (maligno) desaparece (cf. Lc 10,18; Ap 12,7-11; 20,1; 21,3-4).

De fato, se vós perdoardes aos homens as faltas que eles cometeram, vosso Pai que está nos céus também vos perdoará. Mas, se vós não perdoardes aos homens, vosso Pai também não perdoará as faltas que vós cometestes (vv. 14-15).

Depois das palavras da oração, Mt repete a importância do perdão (citando Mc 11,25; cf. Mt 18). Assim ele volta ao estilo e a simetria das recomendações anteriores sobre esmola, oração e em seguida sobre o jejum (“se vós…, vosso Pai que está nos céus…”).

O Pai-Nosso é chamado “o evangelho dentro do evangelho” porque está no centro do sermão da montanha e resume o ensino de Jesus em forma de oração. A Bíblia nos ensina a ter fé, ou seja, responder à Palavra de Deus na ação e na contemplação. Os pedidos do Pai Nosso lembram também a experiência de Israel no processo de sua libertação, provações no deserto, o maná cotidiano, a vontade de Deus promulgada como lei, a santidade do nome (Yhwh, Javé) revelado a Moises, e o reinado de Deus pela aliança na terra prometida e entregue.

O Pai-Nosso não é só uma oração cristã, é uma oração na espiritualidade judaica. Não é nada nesses pedidos que contrarie um judeu hoje, porque não fala que Jesus é o Messias. Portanto, nós cristãos podemos rezá-la, não só os católicos, protestantes, ortodoxos juntos, mas juntos também com os judeus, nossos irmãos mais velhos na fé (cf. Vaticano II, NA 4).

O site da CNBB comenta: A eficácia da oração não é determinada pela quantidade de palavras nela presentes, pelo seu volume ou pela sua visibilidade, mas antes de tudo pela capacidade de estabelecer um relacionamento sério, profundo e filial com Deus. Quem fala muito, grita e fica repetindo palavras é pagão, que não é capaz de reconhecer a proximidade de Deus e ter uma intimidade de vida com ele. A oração também deve ter um vínculo muito profundo com o próprio desejo de conversão e de busca de vida nova, de modo que ela não seja discursiva, mas existencial e o falar com Deus signifique estabelecer um compromisso de vida com ele e para ele.

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