21 de março de 2018 – Quarta-feira, Quaresma 5ª semana

Leitura: Dn 3,14-21.49a.91-95

O livro de Dn foi escrito, parte em hebraico (1,1-2,4a; 8,1-12,13) e parte em aramaico (2,4b-7,28), e depois traduzido em duas versões gregas, que acrescentam duas orações nos cap. 3 e 13-14. Ouvimos hoje a libertação de três jovens judeus da fornalha da Babilônia (a oração deles em 3,25.34-43, já foi lida na 3ª feira da 3ª Semana da Quaresma).

O autor de Dn apresenta como perseguidor o rei babilônico Nabucodonosor (605-562 a.C.), mas pensa em Antíoco IV Epífanes, um rei grego-seleucida tomado pela febre de grandeza e orgulho na época do autor. Em 167 a.C., este rei grego colocou uma imagem do seu deus (Zeus-Júpiter) no templo de Jerusalém; uma guerra santa começou quando ele obrigava os judeus a oferecer sacrifícios à estátua (cf. 1Mc 1,41-64; 2Mc 7). No Antigo Oriente, política e religião não eram separadas (ainda hoje no estado islâmico). A adoração de certos deuses de um estado ou do próprio imperador era considerada um ato de lealdade.

O rei Nabucodonosor tomou a palavra e disse: “É verdade, Sidrac, Misac e Abdênago, que não prestais culto a meus deuses e não adorais a estátua de ouro que mandei erguer? E agora, quando ouvirdes tocar trombeta, flauta, cítara, harpa, saltério e gaitas, e toda espécie de instrumentos, estais prontos a prostrar-vos e adorar a estátua que mandei fazer? Mas, se não fizerdes adoração, no mesmo instante sereis atirados na fornalha de fogo ardente; e qual é o deus que poderá libertar-vos de minhas mãos?” (vv. 14-15).

Nabucodonosor exige a adoração da “estátua de ouro de trinta metros de altura e por três metros de diâmetro” (v. 1) não só dos três judeus Sidrac, Misac e Abdênago, como parece em nosso texto litúrgico abreviado, mas de todas as autoridades, funcionários públicos e “todos os povos, nações e línguas, devem todos cair de joelho para adorar a estátua. Quem não o fizer isso, na mesma hora será jogado dentro da fornalha ardente” (vv. 4-6).

As denúncias, intrigas e prisões eram comuns na Judéia na época de Antioco IV; da mesma maneira conta-se que os três jovens judeus (cf. 1,7), Ananias (Sidrac), Misael (Misac) e Azarias (Abdênago) foram denunciados de não adorarem a estátua (cf. vv. 8-12). Nabucodonosor ameaça os três de serem jogados na fornalha: “E qual é o Deus que poderá libertar-vos de minhas mãos?” (v. 15).

Sidrac, Misac e Abdênago responderam ao rei Nabucodonosor: “Não há necessidade de te respondermos sobre isto: se o nosso Deus, a quem rendemos culto, pode livrar-nos da fornalha de fogo ardente, ele também poderá libertar-nos de tuas mãos, ó rei. Mas, se ele não quiser libertar-nos, fica sabendo, ó rei, que nós não prestaremos culto a teus deuses e tampouco adoraremos a estátua de ouro que mandaste fazer” (vv. 16-18).

O autor quer estimular a fé e a resistência dos judeus (na sua época, liderada pelos macabeus; cf. 1-2 Mc), por isso o relato mostra a total rejeição da idolatria, ainda que a preço do martírio (cf. os mártires de 2Mc 6-7).

A estas palavras, Nabucodonosor encheu-se de cólera contra Sidrac, Misac e Abdênago, a ponto de se alterar a expressão do rosto; deu ordem para acender a fornalha com sete vezes mais fogo que de costume; e encarregou os soldados mais fortes do exército para amarrarem Sidrac, Misac e Adbênago e os lançarem na fornalha de fogo ardente. Os três jovens andavam de cá para lá no meio das chamas, entoando hinos a Deus e bendizendo ao Senhor (vv. 19-20.24).

O rei mandou jogar os três na “fornalha com sete vezes mais fogo que de costume” (v. 19), mas “os três jovens andavam de lá para cá no meio das chamas, entoando hinos a Deus e bendizendo ao Senhor” (v. 24). No meio do texto aramaico, a versão grega inseriu aqui orações e hinos dos jovens (vv. 24-90).

Mas o anjo do Senhor tinha descido simultaneamente na fornalha para junto de Azarias e seus companheiros. O rei Nabucodonosor, tomado de pasmo, levantou-se apressadamente, e perguntou a seus ministros: “Porventura, não lançamos três homens bem amarrados no meio do fogo?” Responderam ao rei: “É verdade, ó rei”. Disse este: “Mas eu estou vendo quatro homens andando livremente no meio do fogo, sem sofrerem nenhum mal, e o aspecto do quarto homem é semelhante ao de um filho de Deus” (vv. 49.91-92).

(Os vv. 91-92 são os vv. 24-25 na Bíblia hebraica). Nabucodonosor percebeu que um quarto homem com aspecto “semelhante ao de um filho de Deus”, ou seja, “o anjo do Senhor”, estava junto aos três jovens (vv. 49a.91-94). Os anjos fazem papel importante no gênero apocalíptico judaico e cristão; este gênero literário inicia-se com o livro de Dn (com as visões de Dn 7-12).

O rei chamou os três para saírem do meio do fogo e todos os “governadores, ministros, prefeitos e conselheiros” viram “que o fogo não exercera nenhum poder sobre eles…” (vv. 93-94).

Exclamou Nabucodonosor: “Bendito seja o Deus de Sidrac, Misac e Abdênago, que enviou seu anjo e libertou seus servos, que puseram nele sua confiança e transgrediram o decreto do rei, preferindo entregar suas vidas a servir e adorar qualquer outro Deus que não fosse o seu Deus” (v. 95).

(Este v. 95 e v. 28 na Bíblia hebraica). Diante do poder deste Deus libertador (v. 15), que protege seu povo fiel, todos os soberanos do mundo são como Nabucodonosor, convidados a reconhecer o único Deus vivo. Impressionado, o rei louva a Deus e ameaça todo aquele que falar “com insolência contra o Deus do Sidrac, Misac e Adêmago, seja feita em pedaços e sua casa destruída, porque não há outro Deus que pode libertar assim” (v. 96). Várias histórias da época terminam assim: o perigo contra os judeus num ambiente pagão é superado, e o rei pagão impressionado louva o Deus de Israel e concede liberdade ao povo e culto judaico (cf. ainda os caps. 2; 4 e 6; 2 Mc 9; o livro de Ester e o final da Bíblia Hebraica, 2Cr 36,22)

 

Evangelho: Jo 8,31-42

Continuamos ouvindo a disputa de Jesus com os judeus (autoridades judaicas) em Jerusalém, tornando-se cada vez mais acirrada. Hoje entra na questão da liberdade da descendência de Abraão. Abraão tornou-se pai da fé monoteísta (cf. Rm 4,1-5) e modelo dos judeus que vivem na diáspora (fora do próprio país num ambiente pagão, cf. 1ª leitura).

Jesus disse aos judeus que nele tinham acreditado: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (vv. 31-32).

“Permanecer” é uma palavra chave e indica a preocupação diante da crise na comunidade, atual ainda hoje, porque muitos foram batizados e crismados, mas depois se afastaram da Igreja. Também na comunidade joanina, muitos que acreditaram em Cristo, “não permaneceram”, voltaram ao mundo ou à sua comunidade judaica, negando Jesus como Cristo (cf. Jo 1,32-33; 5,41ss; 6,41ss; 6,61ss; 8,31; 15,4-7.9-10.16; 1Jo 2,19.24-28; 2Jo 9).

O episódio anterior terminou com a anotação “por estas palavras, muitos creram nele” (v. 30). Para o evangelista João, a fé não é algo espontâneo nem um fogo de palha, mas uma decisão definitiva e “permanente” a favor de Jesus; é dizer um sim vitalício a Jesus. Isto é aderir firmemente aquele em quem se exprime a palavra de Deus, que é a verdade: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade” (vv. 31-32; cf. 8,37; 5,38; 6,56; 14,6; 15,7; 2Jo 9). O fruto da permanência (cf. Jo 15,1-8) é conhecer a verdade, que não é teoria nem dogma, mas experimentar o mistério de Deus presente em Jesus (v. 28).

Para Jo, a “verdade” é a realidade de Deus à medida que é a plenitude da vida verdadeira e pode associar a ela os seres humanos que ele criou. Esta verdade se manifesta e se comunica em Jesus. Por isso a fé nele também é conhecimento e acolhimento da verdade (1,14.17; 14,6.17; 15,26; 16,7,13; 17,17,19; 18,37-38; 1Jo 1,6.8; 2Jo 1). A verdade, ou seja, a palavra de Deus, agora encarnada em Jesus, é sempre libertadora (cf. Ex 3,7-14; Jo 14,6; 19,37s).

No v. 24, Jesus disse indiretamente que a fé livraria do pecado e da morte. Aqui é a verdade que libertará o discípulo da escravidão do pecado (cf. vv. 34-36). “A verdade vos libertará” não se deve entender superficialmente, apenas no sentido profano, porque a verdade é Deus. Reconhecê-la na Palavra dele e no seu Filho nos liberta de imagens e ideias erradas, de ideologias e ilusões, do delírio (o homem ser igual a Deus), de apegos e amarras (relações, vícios, estruturas) escravizantes. Conhecer a si mesmo diante da face de Deus (Jesus, cf. 14,9) liberta. “Conhecer a verdade” é a mesma coisa do que “ter a luz da vida” (cf. 1,4; 8,12).

Na época do autor, na terceira geração cristã, não se menciona muito o “reino de Deus” (cf. Mc 1,15), mas “verdade” é conteúdo central da mensagem cristã (cf. Ef 1,13; Cl 1,5s; 1Tm 2,4; 2Tm 2,15; 3,7; Hb 10,26; Tg 1,18; 2Jo 1). Em 17,17, Deus santifica os discípulos na verdade, que é sua palavra, que é Jesus. Quem permanece nesta palavra, no “Espírito da Verdade” (14,17), recebe libertação (do pecado e da morte) e “vida” (eterna e em plenitude, cf. 10,10).

Responderam eles: “Somos descendentes de Abraão, e nunca fomos escravos de ninguém. Como podes dizer: Vós vos tornareis livres?” (vv. 33).

Em Jo, os “judeus” respondem sempre de maneira descrente e sem entender. Dois temas entrelaçados dominam a discussão: a liberdade e a descendência de Abraão. Os judeus se gloriam como povo eleito e autossuficiente (cf. Is 48,1-4; Rm 2,17-20); não precisa de um libertador: “Somos descendentes de Abraão e nunca fomos escravos de ninguém” (v. 33), os judeus compreenderam que se tratava da liberdade vivida numa relação com o verdadeiro Deus (politicamente eles foram muitas vezes escravizados), mas esta liberdade é um dom de Deus e ela deve ser vivida na fé, não basta a DNA biológica. O mero fato de pertencer na carne à descendência de Abraão já não autoriza que se prevaleçam por causa dela; os que creem em Jesus é que constituem a verdadeira descendência de Abraão (cf. Mt 3,9; Rm 4; Gl 4,21-31).

Jesus respondeu: “Em verdade, em verdade vos digo, todo aquele que comete pecado é escravo do pecado. O escravo não permanece para sempre numa família, mas o filho permanece nela para sempre. Se, pois, o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres (vv. 34-36).

O escravo não pertence à casa e pode ser expulso (como Ismael; cf. Gn 16-17; 21,8-21; Ex 21,2; Dt 15,12); o filho pertence à casa e nela permanece (como Isaac; cf. a recepção cristã em Gl 4,21-29). Mas o escravo pode receber a liberdade, emancipar-se e ainda herdar (Pr 17,2; cf. Rm 8,14-17).

Embora seja filho de Abraão, livre por nascimento, um judeu (como todo ser humano) pelo pecado cai na escravidão; e então vai precisar de um libertador: “Todo aquele que comete pecado é escravo do pecado” (cf. 1Jo 2,4-6.10s; 3,6-9; 5,1 etc.). Pelo pecado, o homem livre coloca o mal no mundo que não pode mais anular, está feito; passou da luz à escuridão (cf. 1,5; 3,19s), perdeu sua liberdade e seus direito de casa. Só o filho de Deus pode libertar os filhos de Abraão do pecado (cf. 1,29; 8,24).

Por causa do pecado, Deus submeteu Israel a potências estrangeiras (cf. os episódios dos juízes e o caso máximo da Babilônia). Jesus é o Filho; em sua revelação que é verdade, Jesus vem libertar dessa escravidão (v. 36), e somente ele pode dá-la; o homem, por suas próprias forças, não pode conquistá-la, mas tropeça na resistência e nas intenções criminosas, que não correspondem à descendência de Abraão (vv. 37-40). Os leitores de Jo que foram excomungados da sinagoga (cf. 9,22; 12,42; 16,2) já veem os “judeus” como aqueles que mataram Jesus (cf. 1Ts 2,15a; Mt 27,25), não combinam com o pai da fé, Abraão.

Bem sei que sois descendentes de Abraão; no entanto, procurais matar-me, porque a minha palavra não é acolhida por vós (v. 37).

Jesus não nega a descendência de Abraão aos judeus. Abraão é o protótipo daquela que crê na palavra de Deus (cf. Gn 15,6; Eclo 44,20-21; Rm 4,3.18-20; Hb 11,8-19; Tg 2,21-24), mas os “judeus” são pecadores (v. 24), não praticam a Lei (7,19), não creem em Jesus, na palavra encarnada de Deus (Jo 1,14) e ainda querem matá-lo.

O tema da descendência de Abraão se torna crítico e polêmico na controvérsia entre judaísmo e o cristianismo, como mostram diversos textos de Paulo (e já a pregação do Batista em Mt 3,7-9; Lc 3,7-9). O filho deve ser como o pai; não basta a descendência física (cf. Pr 10,1; 17,25; 19,26; Eclo 16,1-4).

As tentativas de assassinar Jesus mostram que seus autores não são filhos do pai da fé, Abraão, a não ser de modo puramente carnal (apenas da “raça” de Abraão como Ismael). A descendência de Abraão perde sua relevância quando os judeus procuram matar Jesus, caindo assim na escravidão do pecado. Eles procuram matá-lo (cf. 5,18; 7,1.19.25.30.44), porque não têm argumentos e não conseguem acolher sua palavra. Os “judeus” não creem em Jesus porque não querem. Quando uma pessoa não quer entender, mesmo um bom argumento não consegue convencê-la. Precisa de um mínimo de simpatia.

Eu falo o que vi junto do Pai; e vós fazeis o que ouvistes do vosso pai”. Eles responderam então: “O nosso pai é Abraão.” Disse-lhes Jesus: “Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão! Mas agora, vós procurais matar-me, a mim, que vos falei a verdade que ouvi de Deus. Isto, Abraão não o fez. Vós fazeis as obras do vosso pai” (vv. 38-41a).

Os judeus se repetem (v. 39a = v. 33b) afirmando outra vez sua descendência de Abraão que Jesus não negou (v. 37). Mas pela “prática” deles, diferente e hostil, Jesus insinua agora que há outro pai na história (cf. Gn 38,24-26; Ez 16,3): “Eu digo que vi junto ao Pai e vós fazeis o que ouvistes do vosso pai, … Vós fazeis a obra do vosso pai (vv. 38.41a).

A vida não é apenas biologia. O filho deve imitar o pai, não basta a descendência biológica; como também pai é aquele que cria, não que contribui apenas com o sêmen. As obras (não o DNA) mostram de qual pai é o filho de verdade. Jesus se contraria na hora, se estivesse com pecado; pego em flagrante por ex., ele mesmo não seria o Filho de Deus.

Disseram-lhe, então: “Nós não nascemos do adultério, temos um só pai: Deus.” Respondeu-lhes Jesus: “Se Deus fosse vosso Pai, vós certamente me amaríeis, porque de Deus é que eu saí, e vim. Não vim por mim mesmo, mas foi ele que me enviou” (vv. 41b-42).

Mais uma vez, os judeus entendem mal. Abraão não gerou Isaac num adultério. Disseram-lhe então: “Nós não nascemos do adultério, temos um só pai: Deus” (v. 41b). Reivindicando a origem divina do seu povo, os judeus chamam a Deus de Pai (cf. Ex 4,22s; Dt 32,6; Is 63,16; 64,7) e negam terem nascidos de um ato de prostituição (na linguagem dos profetas designa a infidelidade religiosa, o culto aos ídolos, cf. Os 1-3; Jr 3,1-4; Is 57,7-13; Ez 16,33). No seu autoestima (orgulho), eles reivindicam para si a condição que só Jesus (a fé nele) pode dar (1,12s). Com isso, afirmam de não precisarem de Jesus (da fé nele) e querem descartá-lo.

Houve polêmica judaica posterior no Talmud, no Toledot Yeshu e também no filósofo Celso (150-200) que vê a origem de Jesus num adultério da virgem Maria com um soldado romano de nome Pantera (talvez alusão a parthenos – virgem em grego). Trabalhando no Egito, Jesus teria aprendido mágicas e voltado depois achando-se deus.

O fato dos “judeus” não reconhecerem a verdade em Jesus e tentarem matá-lo, porém, mostra que eles se parecem com outro pai, o “pai da mentira” e o proto-“homicida”, ou seja, o diabo (v. 44; cf. Gn 3-4). A polêmica chega ao máximo ao contrapor “filhos de Deus” e “filhos do diabo” (vv. 41-47; cf. 1Jo 3,8-15; Mt 13,38). Se os judeus fossem realmente filhos de Deus, não deveriam matar Jesus, ao contrário, “amariam” o Filho enviado ao mundo (cf. 15,15.21ss; 1Jo 5,1s).

Os vv. seguintes (vv. 43-47) parecem ser a expressão mais antijudaica (antissemita) de todo NT (v. 44: “Vós sois do diabo”). A liturgia de hoje os omite, porque não devem ser entendidos fora do contexto histórica da polêmica do sec. Iº entre judeus e cristãos (cf. 1Ts 2,15s; Gl 4,21-31; Mc 4,11s; 12,1-12; Mt 21,33-42; 27,25; At 28,25-28; Ap 2,9). A frase dura de 1Ts 2,15, “eles mataram o Senhor Jesus e os profetas, e nos tem perseguido a nós; desagradam a Deus e são inimigos de toda gente”, Paulo corrige mais tarde em Rm 9-11: mesmo que os (líderes dos) judeus tenham matado Jesus (com ajuda dos romanos), Deus permanece fiel às suas promessas; ele quem ressuscita os mortos (Rm 4,17) pode também levar Israel da morte à vida (cf. Rm 11,25.25-32).

Mas em Jo falta um corretivo desses, e quando os cristãos tornaram se vencedores e religião do estado (no Império Romano em 380), eles começaram a discriminar e perseguir os judeus. Este preconceito cristão a respeito dos judeus facilitou a propaganda dos nazistas na Alemanha que perseguiram os judeus não por motivos religiosos, mas racistas. Resultou no genocídio de seis milhões de judeus nos anos de 1933-1945, que só foi possível porque encontrou um terreno preparado por séculos de pregações antijudaicas nas igrejas cristãs (por Crisóstomos, Lutero e muitos outros) fora do contexto histórico.

Quem olha bem o texto, porém, percebe que Jo não polemiza contra a raça dos judeus (não nega sua descendência boa de Abraão), mas é a ética, as obras que fazem a diferença e mostram de que pai o filho é. Jo não é racista, ao contrário, é a fé e não a biologia, que dá um novo nascimento ao ser humano (1,12s; 3,3-8).

Convém recordar que o antijudaísmo em Jo é reflexo da expulsão dos cristãos do tronco judaico pelo sínodo dos rabinos em Jâmnia (90 d.C.) na época do evangelista (cf. Jo 9,23; 12,42; 16,7), que provocou entre a minoria cristã um “medo dos judeus” (cf. 7,13; 9,22; 19,38; 20,19). Hoje, o Concilio Vaticano II e o Catecismo da Igreja Católica declaram que “os judeus não devem ser apresentados nem como condenados por Deus nem como amaldiçoados, como se isto decorresse das Sagradas Escrituras” (NA 4; CIC 597). São Francisco escreveu: “Os demônios, então, não foram eles que o crucificaram; és tu que com eles o crucificaste e continuas a crucificá-lo, deleitando-te nos vícios e nos pecados” (cf. CIC 598).

O site da CNBB comenta: Em que consiste a liberdade? A resposta a esta pergunta sempre nos parece clara, mas só à primeira vista. O Evangelho de hoje nos mostra que os judeus pensaram que eram livres e, no entanto, não eram, porque existem muitas formas sutis de escravidão, sendo que as piores são as nossas tendências ao mal, as nossas imaturidades e as nossas fraquezas, e são piores porque brotam no nosso interior, nos enganando, porque pensamos que estamos fazendo a nossa vontade quando na verdade estamos cedendo aos nossos desejos, que não nos deixam ser livres. Somente permanecendo unidos a Cristo é que podemos vencer a nossa natureza e sermos verdadeiramente livres.

Voltar