21 de setembro de 2017 – Quinta-feira, São Mateus

Leitura: Ef 4,1-7.11-13

Para a festa do apóstolo Mateus, a quem a tradição atribuiu a autoria do primeiro evangelho na ordem da Bíblia, foi escolhida a leitura da Carta aos Efésios por causa do v. 11 que fala de apóstolos e evangelistas: “Ele (Cristo) instituiu alguns como apóstolos, outros como profetas, outros ainda, como evangelistas, outros, enfim, como pastores e mestres.”

Ouvimos hoje o início da segunda parte (caps. 4-6) da carta aos Efésios, uma exortação aos batizados. O alicerce e raiz do amor (“conhecer o amor de Cristo”, cf. 3,17-19) tem como finalidade conservar a unidade do Corpo de Cristo que é a Igreja (4,1-16; cf. 1,22s; Cl 2,19; 3,15; 1Cor 12,12).

Neste cap. 4, o autor da carta encara sucessivamente três perigos que ameaçam a unidade da Igreja: a discórdia entre os cristãos (vv. 1-3; leitura de ontem), a necessária divisão dos ministérios (vv. 7.11) e as doutrinas heréticas (vv. 14-15), e a eles opõe os princípios e o programa da unidade em Cristo (vv. 4-6) no dinamismo de um crescimento (vv. 12-13.15-16).

Eu, prisioneiro no Senhor, vos exorto a caminhardes de acordo com a vocação que recebestes: (v. 1).

“Eu, prisioneiro” (“no Senhor” pode ser ligado a “eu vos exorto”); a carta aos Efésios faz parte das cartas do cativeiro (Ef, Fl, Cl, Fm). Paulo está preso (Ef 3,1; 4,1; 6,20; cf. Fm 9.10.13.27; Cl 4,3.10.18) e rodeado dos mesmos companheiros, encarrega Tíquico de idêntica missão (Cl 4,7-8; Ef 6,21-22). Enquanto Fl e Fm foram escritos pelo próprio Paulo, as cartas Ef e Cl apresentam estilo e teologia diferentes e uma situação posterior. Por isso os peritos consideram estas duas cartas Deuteropaulinas, ou seja, que foram escritas por discípulos de Paulo (talvez por Epafras, cf. Cl 1,7; 4,12) em nome dele (por volta de 80 d.C.). Estes autores não queriam falsificar, mas homenagear o mestre Paulo e desenvolver sua doutrina apostólica, como era costume de época (outro exemplo é o livro de Isaias, escrito em três etapas, ou seja, por autores diferentes).

O chamado ou “vocação” é o começo de tudo (Is 42,6; 43,1; 49,1; cf. Cl 3,12). Em grego, os verbos “chamar e “exortar” tem a mesma raiz. “Caminhar de acordo com a vocação” corresponde à tarefa de 2,10, “as boas obras que Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos”

Com toda a humildade e mansidão, suportai-vos uns aos outros com paciência, no amor. Aplicai-vos a guardar a unidade do espírito pelo vínculo da paz (vv. 2-3).

A exortação inicia com virtudes que acompanham ou favorecem o “amor” mútuo, “uns aos outros” (cf. Cl 3,12-15; Fl 2,1-4; 1Cor 13; cf. Pr 19,11; 2,23; Sl 131,2; Eclo 3,17). Em Cl 3,15, o agape (amor, caridade) é o “vínculo da perfeição”.

“Guardar a unidade do espírito”, unidade espiritual ou o bem da unidade que o Espírito produz. Com efeito, a ação de Deus em Jesus Cristo unifica e plenifica toda a realidade (1,22s; Cl 1,20). O aspecto central da vida cristã é a unidade. Os cristãos devem ser exemplos vivos dessa unidade que supera as divisões humanas. A exigência da concórdia na comunidade é o reflexo da reunificação do universo (Cl 1,20) e da incorporação dos judeus e pagãos no único povo de Deus (Ef 2,11-22) e de muitos membros com dons diversos no único Corpo de Cristo (1Cor 12,12).

Há um só Corpo e um só Espírito, como também é uma só a esperança à qual fostes chamados. Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, que reina sobre todos, age por meio de todos e permanece em todos (vv. 4-6).

Os vv. 4-6 formam uma breve aclamação litúrgica em que predomina um ritmo ternário: na origem, havia provavelmente uma confissão de fé batismal, sem dúvida modificada pelo autor.

Corpo e Espirito formam a unidade do ser humano. “Um só Corpo” se refere à Igreja (cf. 1Cor 10,16s; 12,12s: Batismo e Eucaristia) que tem muitos membros. “Um só Espírito” se desenvolve em muitos dons (carismas) que devem edificar e não dividir a comunidade (cf. 1Cor 12-14).

Em Cl e Ef, a “esperança” assume um significa do novo, menos o fato de esperar do que o próprio conteúdo da espera (cf. 1,18; Cl 1,5; Hb 6,19; 1 Pd 1,4), a “fé” no “Senhor” (Jesus Cristo, morto e ressuscitado, cf. Fl 2,5-11; At 2,36) é professada no “batismo”.

A insistência em “um só, uma só”, lembra a confissão cotidiana de Israel, o Shemá: “Ouve, Israel: O Senhor, nosso Deus é somente um” (Dt 6,4; citado em Mc 12,29; cf. Ml 2,10: “Um só Pai e um mesmo Deus”; na imagem do pastor, cf. Jo 10,16). A influência desta passagem no símbolo de Nicéia, o concílio ecumênico em 325 d.C. onde se afirmou o dogma da santíssima Trindade (três pessoas em Um só Deus), é evidente, aqui na sequência inversa: Espirito, Senhor (Jesus Cristo), Deus Pai.

“Um só batismo”; não se deve excluir certos aspectos polêmicos, como existem hoje também, por ex.: certas igrejas protestantes batizam de novo, alegando que o batismo de crianças não seja valido. Mas já foi o apóstolo Paulo que batizava famílias inteiras (cf. At 16,15.33), e com muita probabilidade inclusive crianças, porque para Paulo, o batismo substitui a circuncisão dos meninos judeus (cf. Gn 17; At 15-16).

O v. 6 termina com uma doxologia (fórmula de louvor) inspirada na filosofia estoica: “de todos, que reina sobre todos, age por meio de todos e permanece em todos”.

Cada um de nós recebeu a graça na medida em que Cristo lha deu (v. 7).

“Cada um de nós recebeu a graça (charis)” (4,7). Trata-se aqui das graças particulares destinadas ao serviço da Igreja, isto é, os “dons, c(h)arismas” (cf. 1Cor 12,1). Unidade não significa uniformização, pois Deus concede dons diferentes a cada pessoa (vv. 7-13). Essa unidade na diversidade dá coesão à comunidade para que ela não seja dominada por doutrinas que a esfacelem (vv. 14-16).

A pluralidade dos dons e carismas vem de Cristo que distribuiu seus dons, como faz um vencedor esplêndido (cf. 8-10 citando Sl 68,19, omitidos pela nossa liturgia). Ele subiu aos céus e deu o Espírito (Pentecostes era a festa do dom da Lei). Ef não evoca a profusão do Espírito e as línguas, mas a enumeração dos diversos ministérios (dons, carismas instituídos) dados à Igreja (v. 11).

Cristo plenifica o universo porque plenifica a Igreja (cf. 1,22s). Isto se realiza graças aos mistérios evocados a partir do v. 11.

E foi ele quem instituiu alguns como apóstolos, outros como profetas, outros ainda como evangelistas, outros, enfim, como pastores e mestres. Assim, ele capacitou os santos para o ministério, para edificar o corpo de Cristo, até que cheguemos todos juntos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, ao estado do homem perfeito e à estatura de Cristo em sua plenitude (vv. 11-13).

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 2271) comenta: Retorna a ideia da abundância dos dons do Cristo. O v. 7 mencionou a graça concedida a cada um. Todavia, ao contrário de 1Cor 12 e de Rm 12,3-8, Ef não evoca aqui a diversidade dos dons do carisma. A epístola põe o acento na iniciativa do Senhor que dá à Igreja os homens necessários a sua edificação. Nesta lista dos ministros, depara-se uma ordem que mantém a primazia do apóstolo, dando ênfase aos ministros da Palavra, inspirada, sem dúvida, pelo contexto (vv. 13-15).

“Apóstolo” é título próprio do NT, os outros quatro (profetas, pastores, mestres) têm antecedentes no AT (“evangelista” em Is 40,9). Os dons relembrados são os carismas de governo e ensino, importantes para a comunidade permanecer unida no conhecimento e no compromisso da fé.

Aqui, os “santos” (v. 12) parecem ser mais especialmente os missionários e outros que ensinam (cf. 3,5), mas talvez sejam também todos os fiéis, na medida em que eles concorrem para edificar a Igreja (cf. At 9,13). Pode-se, todavia compreender de outro modo: “para o aperfeiçoamento dos santos, visando à obra do ministério, visando à edificação…”; tríplice meta fixada para os ministros em que os batizados são então beneficiados.

A diversidade dos dons que cada um recebeu de Cristo não pode ser fonte de divisão, inveja e competição na comunidade, mas deve servir “à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus”. A variedade de dons é desejada por Cristo, para que cada um se coloque a serviço de todos.

“Até que cheguemos … ao estado do homem perfeito e à estatura de Cristo em sua plenitude” ou: o estado do homem consumado (perfeito, adulto). Não simplesmente o cristão chegado ao estado de “perfeito” (1Cor 2,6; Cl 1,28), mas o Homem Perfeito num sentido coletivo; ou próprio Cristo, “o Homem Novo”, arquétipo de todos os regenerados (2,15), ou, melhor ainda, o Cristo total, “Cabeça” (v. 15; 1,22; Cl 1,18) e “membros” (v. 16; 5,30) constituindo o seu Corpo (1Cor 12,12).

Juntos com os vv. 14-16 (omitidos pela nossa liturgia), o tema do Corpo de Cristo recebe um novo desenvolvimento com relação aos esboços de 1Cor 12,12-30 e Rm 12,4-5. Graças às afirmações referentes ao Cristo-cabeça, ao mistério e à missão da Igreja, Ef ressalta a soberania de Cristo, a responsabilidade do corpo e exprime, numa perspectiva universal, a vida que anima o povo de Deus.

A ideia do “crescer”, encetada em Cl 2,19, adquire toda a sua importância. A esperança escatológica reveste uma nova forma: a espera da parusia (volta de Cristo) é substituída pelo motivo deste “crescimento” do Corpo (Igreja) em direção à cabeça até sua plena realização. Enquanto os apóstolos e Paulo estavam cheios de ansiedade esperando a volta de Cristo em breve (1Ts 4,17; 1 Cor 15, 51s), as próximas gerações se deram conta de que precisava crescer no mundo, inculturando-se no Império Romano (cf. as cartas pastorais e 2Pd 3). – Nota-se enfim até que ponto o tema do Corpo e do seu crescimento é combinado com o da casa de Deus e da sua edificação (cf. Mt 16,18; Ef 2,20-22; 1Cor 3,10s; 1Pd 2,4ss). Pode-se recordar o verbo “edificar, construir”, dito da modelagem da esposa Eva, Gn 2; cf. Ef 5,22-32).

No grego original, os vv. 10-16 formam uma frase só! A Bíblia do Peregrino (p. 2810) comenta: Embora a expressão seja arrevesada, fica clara a mensagem de unidade e a primazia do amor.

 

Evangelho: Mt 9,9-13

O evangelho de hoje apresenta a vocação de Mateus que era cobrador de impostos. Mt copiou este relato de Mc 2,13-17 com algumas modificações que trazem questionamentos sobre a autoria do evangelho.

Partindo dali, Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado na coletoria de impostos, e disse-lhe: “Segue-me!” Ele se levantou e seguiu a Jesus (v. 9).

A vocação acontece na cidade Cafarnaum que, em Mt, Jesus escolheu como sua (9,1; 4,12). Jesus não só tem o poder de perdoar pecados (vv. 2-7), mas também transforma um pecador em discípulo. Jesus o chama também no lugar do trabalho dele, na coletoria de impostos, só diz: “Segue-me” e ele se levanta e o segue (v. 9). Tudo igual ao chamado dos primeiros quatro discípulos que eram pescadores (cf. 4,18-22), somente o nome e a profissão são diferentes. O nome “Mateus” é aramaico, uma abreviação de Matatias ou Matanias (cf. 2Rs 24,17; Ne 8,4) e significa “dom de Javé”. Nos textos paralelos, Mc 2,13 e Lc 5,27 consta outro nome: “Levi (filho de Alfeu)”. Porque Mt mudou o nome para Mateus? Será um nome duplo, como Simão Pedro, Tomé Dídimo, ou Saulo Paulo? Com frequência, juntou-se um nome semita com um nome grego, mas nomes duplos (não apelidos) em aramaico eram muito raros. Vejamos a questão mais abaixo.

Enquanto Jesus estava à mesa, em casa (de Mateus), vieram muitos cobradores de impostos e pecadores e sentaram-se à mesa com Jesus e seus discípulos. Alguns fariseus viram isso e perguntaram aos discípulos: “Por que vosso mestre come com os cobradores de impostos e pecadores?” (vv. 10-11).

Mateus, porém, não exercia uma profissão honrada. Os coletores de impostos (chamados em outras traduções de publicanos) eram vistos como pecadores públicos porque abusavam da função, provocando o ódio do povo, pois exploravam e estavam a serviço dos romanos. O cargo era recebido em arrendamento (cf. 5,46; 18,17; 21,21; Lc 15,1; 18,10-14; 19,1-10). O chamado de Jesus prescinde de preconceito e vence a cobiça que é uma forma de idolatria (cf. 6,24; Ef 5,5; Cl 3,5).

Mt faz um banquete de despedida (cf. 1Rs 19,19-21) com seus colegas de profissão e classe (desclassificados em v. 12 de “pecadores”). Mt, como Mc, não especificou de quem era a “casa”, só Lc 5,29 deixou claro que era do publicano. Jesus e seus discípulos participam do banquete e os fariseus ficam escandalizados (vv. 10-11). A palavra “fariseus” em hebraico significa “separados”, porque os fariseus se sentem os guardiões da separação religiosa que garante a pureza e com ela santidade e consagração do povo; entre as separações, a mais importante é entre justos e pecadores (Sl 13,19-22; Pr 29,27). Compartilhar a mesa com pecadores é pecaminoso, pois participar da mesa significa ter comunhão com eles, uma relação amistosa, selada pela benção sobre alimentos. O nome fariseu provavelmente era um apelido, entre eles se chamavam “companheiros”. Eram leigos zelosos que queriam assumir para si as mesmas leis de pureza prescritas para os sacerdotes.

Jesus ouviu a pergunta e respondeu: “Aqueles que têm saúde não precisam de médico, mas sim os doentes. Aprendei, pois, o que significa: ‘Quero misericórdia e não sacrifício’. De fato, eu não vim para chamar os justos, mas os pecadores” (vv. 12-13).

Jesus responde com a atitude de anfitrião ou convidado especial (cf. Eclo 32,1), comparando-se com um médico de quem os sadios não precisam, mas os doentes (v. 12; cf. Eclo 38,1-15). Os fariseus não entendem a Escritura; consideram-se sãos e santos enquanto julgam insanável a situação que Jesus veio sanar (cf. 7,3-5; 6,22; 15,12-14; 23,16-19; Lc 15,1s; Jo 9,40s). Mas o primeiro passo para a cura é reconhecer a doença. A citação de Os 6,6, que Mt acrescentou ao relato de Mc, se adapta bem a situação, e será repetida em 12,7, pois seu alcance é geral: “Quero misericórdia e não sacrifícios” (cf. 5,7). Mt não é contra os sacrifícios (tampouco o profeta Oseias), ele entendeu esta frase no sentido de “Quero misericórdia mais do que sacrifícios”, ou seja, em primeiro lugar, o amor e a misericórdia (cf. 22,34-40). Assim, esta citação mostra que Jesus cumpre a lei e os profetas mais que os fariseus (cf. 5,17-20).

Este chamado do publicano e o diálogo seguinte com os fariseus na casa dele, lemos também em Mc 2,13-17 e Lc 5,27-32. Mas em Mc e Lc, o nome do chamado é outro: “Levi” (Lc 5,27) ou “Levi, filho de Alfeu” (Mc 2,14). Como se explica esta diferença entre as coisas comuns dos três evangelhos? Esta pergunta leva à outra sobre a autoria deste “Evangelho segundo Mateus”.

Por muito tempo era tido o publicano e “apóstolo” Mateus (Mt 9,9; 10,3) como autor do primeiro evangelho na ordem da Bíblia, porque seu estilo judaico (ex. a genealogia em 1,1-18; o pleno cumprimento da lei e dos profetas em 5,17-19), fazia pensar que tinha escrito originalmente em hebraico/aramaico. Mas nunca se encontrou um pedaço do evangelho de Mt nestas línguas semitas (na época de Jesus, hebraico já era uma língua morta, falava-se um dialeto parecido, o aramaico).

Hoje, alguns especialistas contestam a autoria do apóstolo Mateus, mas porquê? O apóstolo e o evangelista não são a mesma pessoa? Na verdade, nenhum dos quatro evangelistas assinou com seu nome. Os evangelhos são obras anônimas e atribuídas posteriormente a apóstolos (Mt e Jo) ou a discípulos deles (Mc e Lc). A atribuição deste evangelho ao Mateus tem sua razão exatamente neste seu nome que aparece em 9,9-10. Vejamos toda esta questão mais de perto no evangelho de hoje.

A vocação do apóstolo Mateus é quase igual à do publicano Levi em Marcos e Lucas (Mc 2,13-17; Lc 5,27-32). Por isso estes três evangelhos são chamados de “sinóticos” (os que olham juntos). Todos os três relatam a vocação de um publicano sentado na coletoria de impostos. Igual aos primeiros quatro apóstolos pescadores, Jesus o chama: “Segue-me!”, e este segue logo. Depois, na casa de Levi-Mateus, Jesus e seus discípulos comem com os colegas dele. Os fariseus se escandalizam, porque um judeu não se mistura com esta categoria que arrecada impostos para Roma, explorando o próprio povo (um publicano não recebeu salário, mas vivia do que podia cobrar mais do que o estabelecido por Roma, cf. Lc 19,1-10). Jesus se justifica com uma comparação: “Aqueles que têm saúde, não precisam de médico, mas sim os doentes. Eu não vim para chamar os justos, mas os pecadores.” Tudo isso é comum aos três relatos.

O que é peculiar de Mt, são só três coisas: o nome “Mateus” (v. 9; em vez de Levi), o título “mestre” para Jesus na boca dos fariseus (v. 11) e a citação do Antigo Testamento: “Quero misericórdia e não sacrifícios” (cf. Os 6,6). Surge então uma pergunta chave: Se Mt fosse o evangelho mais velho, os outros dois teriam trocado o nome do conhecido apóstolo por um desconhecido “Levi” (que nunca mais aparece nos evangelhos)? O nome de um apóstolo teria muito mais peso. S. Jerônimo supôs que Mc e Lc não queriam revelar o passado do apóstolo e por isso escolheram o nome da sua tribo (Levi), enquanto o próprio Mt assumiu seu passado. Mas é mais provável o evangelista Mt ter introduzido o nome “Mateus”, trocando um nome desconhecido (Levi) já encontrado num texto, do que o contrário.

Como os três relatos são muito parecidos, surge outra pergunta: quem copiou de quem? Uma análise mostra claramente que Mc foi o primeiro que escreveu, porque seu estilo é mais primitivo do que o dos outros. Mt e Lc melhoraram, portanto são posteriores, porque não há motivo de piorar um texto, ao contrário. Mas as melhorias de Mt e Lc acontecem independentemente um do outro. O que observamos neste texto, deixa-se verificar olhando para o contexto maior dos dois.

Há diferenças significativas entre Mt e Lc, por ex.: depois do nascimento de Jesus, a sagrada família logo volta a Nazaré (Lc), ou foge para Egito (Mt)? O ressuscitado aparece aos discípulos em Jerusalém (Lc) ou na Galileia (Mt)? Estas diferenças mostram claramente que Mt e Lc não se conheciam, não estavam em contato um do outro; cada um escreveu em outro lugar, independentemente um do outro. Mas o que Mt e Lc têm em comum? Duas coisas (fontes): Quase todo o conteúdo de Mc (as narrativas do trajeto de Jesus da Galileia até Jerusalém) e mais um conjunto de palavras de Jesus (uma coleção catequética; chamada de “Q”, da palavra alemã para fonte, Quelle) que contém por ex. o sermão da montanha/planície e mais parábolas.

Com base nestas observações, a maioria dos exegetas acatou a “teoria das duas fontes” (Mc e Q): Mc foi o primeiro evangelho que serviu como base (primeira fonte) para Mt e Lc. Estes dois não se conheciam, mas usaram além de Mc uma segunda fonte (Q) que se perdeu na história, mas foi preservada dentro destes dois evangelhos. Aliás, existe um evangelho “apócrifo” (quer dizer, fora da Bíblia, porque não foi reconhecido como inspirado), chamado ”Palavras de Jesus segundo Tomé”; é uma coleção de palavras e uma prova que tal gênero existia. Além destas duas fontes (Mc e Q), Mt e Lc acrescentaram, cada um, seu material peculiar.

Concluímos que Mt não escreveu o primeiro evangelho; ele copiou a vocação do publicano (Levi) de Mc e só trocou o nome desconhecido, Levi, por um nome conhecido, Mateus. Na lista dos apóstolos, ele acrescenta “o publicano” (Mt 10,3); os outros evangelistas não sabem (ou não fazem saber) que Mateus era publicano (cf. Mc 3,18; Lc 6,15).

Resta a pergunta para identificar o autor do evangelho: Se o apóstolo Mateus estivesse o autor do evangelho que tem seu nome, porque ele copiaria a sua própria vocação de outro evangelista (de Mc), mudando apenas o nome (de Levi para Mateus) e acrescentando uma citação do AT? Não usaria mais detalhes pessoais ou palavras próprias já que se trata da própria vocação?

Parece-me mais verossímil identificar como autor um judeu-cristão da segunda geração (cerca de 80 d.C., cf. a destruição de Jerusalém de 70 d.C. relatada em 22,7), que usa o evangelho de Mc, acrescentando citações do AT com maestria.  Talvez seja “o escriba que tira do seu tesouro coisas novas e velhas” (Mt 13,52) sua assinatura discreta. Ele sabia que o apóstolo Mateus era publicano e trocou o nome Levi por Mateus, porque este era mais conhecido como um dos Doze. Talvez o autor fosse um discípulo de Mateus (ou de Pedro, cf. tantas referências a Pedro em Mt 14,28-31; 16,16-19; 17,24-27).

Então, esta nossa análise desqualifica a tradição antiga que considerava Mt o primeiro evangelista e escrevendo em hebraico? Não temos indícios de algum escrito do Novo Testamento escrito em hebraico/aramaico (A teoria recente que queria identificar uns versículos de Mc 6 num fragmento de Qumran não convenceu). Tudo que temos do Novo Testamento já foi escrito em grego. A antiga opinião de Mt ser o primeiro Evangelho, escrito em hebraico antes de ser traduzido, baseia-se no testemunho de Papias, bispo de Hierápolis na primeira metade do séc. II: “Mateus-Levi escreveu na linguagem hebraica”, mas pode-se entender também por “estilo hebraico”, porque não tem evidência de um Evangelho em hebraico, ao contrário: para seus leitores cristãos que vieram do judaísmo, Mt cita muita o AT – mas não na versão hebraica, sim a Septuaginta (tradução grega dos Setenta Sábios; ex.: Mt 1,23 cita a tradução grega de Is 7,14: virgem, e não o texto hebraico jovem mulher). Portanto, o autor de Mt escreveu seu original na língua grega, mas seu conteúdo está mais ligado ao AT, por isso a sua posição na Bíblia – mais perto do AT – ainda continua justificada.

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