22 de Agosto de 2018, quarta-feira: Nossa Senhora Rainha

A memória instituída por Papa Pio XII em 1955 visa aproximar a realeza de Maria à sua gloriosa assunção ao céu (cf. Ap 12,1.5). A assunção de Maria foi declarado dogma pelo mesmo papa cinco anos antes e é celebrada no dia 15 de agosto (ou, como no Brasil, no domingo seguinte). As leituras apresentam a realeza messiânica como profecia (Is 9) e anúncio (Lc 1). A mãe do rei sempre tinha influência na corte real (cf. 1Rs 2; 2Rs 11).

Leitura: Is 9,1-6

A leitura é a mesma da noite de Natal, enfatizando uma grande luz e esperança que será o nascimento de um menino real. Na época de Isaias, as campanhas militares dos assírios humilharam o povo de Israel (cf. 8,23b). Teglat-Falasar, rei da Assíria, invadiu a Galileia em 732 a.C. e deportou seus habitantes para Assíria (2Rs 15,29). Isaias anuncia uma reviravolta, alegria em vez de desespero. No oráculo que segue, Isaias anuncia um “dia do Senhor (Javé)” que trará a libertação aos deportados; ele anuncia ao mesmo tempo o reinado pacifico de um menino de estirpe real, o “Emanuel” de 7,14 (cf. a leitura nos dias 25 de março e 20 de dezembro). O aparecimento do messias na Galileia dará a esta profecia sua plena realização (cf. Mt 4,12-16).

O povo, que andava na escuridão, viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu (v. 1).

É o território das tribos Natali e Zabulon (8,23b), ou seja, é a Galileia (significa distrito, mas longe de Jerusalém é considerada mais pagã; cf. Mt 4,12-16, onde Jesus escolhe esta região para morar). Nas trevas, símbolo do caos de da morte, surge de repente uma luz como uma nova criação (cf. Gn 1,3; Mt 28,1p). Lc alude a esta frase no cântico de Zacarias e na aparição luminosa do anjo as pastores (Lc 1,78s; 2,8s).

Fizeste crescer a alegria e aumentaste a felicidade; todos se regozijam em tua presença, como alegres ceifeiros na colheita, ou como exaltados guerreiros ao dividirem os despojos (v. 2).

São três os motivos de alegria: glória depois da humilhação (8,23b), luz nas trevas (v. 1), alegria realizada (v. 2). São três as razões; três vezes começam com “porquê” (vv. 3.4.5). Por isso, apresento nestes vv. uma tradução diferente da liturgia de hoje:

Porque, como no dia de Madiã, quebraste a canga de suas cargas, a vara que batia em suas costas e o bastão do capataz de trabalhos forçados (v. 3).

Primeiro “porque”: A opressão acaba como num dia de Madiã, quando, na vitória do juiz Gedeão, as tochas brilharam a noite espantando o inimigo; cf. Jz 7).

Porque toda bota que pisa com barulho e toda capa empapada de sangue serão queimadas, devoradas pelas chamas (v. 4).

Segundo “porque”: a guerra acaba; o equipamento guerreiro será destruído (já em Is 2,4), então se anuncia uma época de paz (cf. 11,6-9).

Porque nasceu para nós um menino, foi-nos dado um filho; ele traz aos ombros a marca da realeza; o nome que lhe foi dado é: Conselheiro admirável, Deus forte, Pai dos tempos futuros, Príncipe da paz (v. 5).

Terceiro “porque”: Um menino nasceu, “foi nos dado”; o verbo esta na voz passiva, sugerindo que o doador é Deus. Segue-se o esquema anunciação do nascimento, nome e destino futuro. O recém-nascido é caracterizado com “a marca da realeza”, evita-se o titulo de rei, mas recebe o nome quádruplo. Esses títulos são comparáveis ao protocolo que era preparado para o faraó quando a sua coroação. Cada um destes nomes, quatro ofícios na corte, recebe uma especificação, que o leva à esfera sobre-humana. O menino terá a sabedoria de Salomão (conselheiro), a bravura e a piedade de Davi (forte, príncipe), e as virtudes dos Pais (patriarcas).

Grande será o seu reino e a paz não há de ter fim sobre o trono de Davi e sobre o seu reinado, que ele irá consolidar e confirmar em justiça e santidade, a partir de agora e para todo o sempre (v. 6a).

Explica-se o nome múltiplo num horizonte sem limites com o centro na dinastia de Davi. Não há falta nem limitação nessa paz e justiça que se dilatam no espaço e no tempo (cf. Dn 7,14; Lc 1,32s).

O amor zeloso do Senhor dos exércitos há de realizar estas coisas (v. 6b).

O “Senhor dos exércitos”, este termo (cf. 6,3.5; 25,6; 2Sm 6,18; Sl 24,10; 46,8) não só se refere aos exércitos de Israel em ordem de batalha (cf. Jó 10,17; 1Sm 17,45s; Ex 12,51), mas também às constelações das estrelas (cf. Gn 2,1; Is 40,26) e finalmente a todos os elementos e poderes do universo. O zelo do Senhor pode simultaneamente castigar as infidelidades do povo (cf. Ex 20,5; Dt 4,24) e proporcionar-lhe a salvação. Seu zelo é ciúme, amor apaixonado (“amor zeloso”) que cumprirá essa promessa (cf. Jl 2, 18; Zc 1,14; Ex 20,5; Dt 4,24).

 

Evangelho: Lc 1,26-38

Na festa de hoje, ouvimos a anunciação a Maria, mulher simples da roça da Galileia que se torna rainha e se declara “serva do Senhor”. A mãe do rei é rainha. Maria é a mãe de Jesus que é o rei esperado pelo povo e anunciado pelos profetas. “Cristo” (grego) e “Messias” (aramaico) não é um nome, mas um título que significa o rei “ungido” (com o óleo da “crisma”; cf. 1Sm 10,1; 16,13).

No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia chamada Nazaré, a uma virgem, prometida em casamento a um homem chamado José. Ele era descendente de Davi e o nome da virgem era Maria (v. 26-27).

“No sexto mês”: a conta dos meses é a partir concepção de João (vv. 24.36), por isso celebra-se o nascimento de João Batista (24 de junho) seis meses antes do Natal (24 de dezembro). O anjo é Gabriel (significa “força de Deus”; cf. v. 11.19; Dn 8,16; 9,21). Gabriel já apareceu a Zacarias que pertence ao baixo clero no templo da capital Jerusalém (vv. 5-25), agora é enviado a uma moça na periferia: “Nazaré” é um lugarejo desconhecido no interior (cf. Jo 1,46) da desprezada “Galileia” (cf. Jo 7,41s), mas é o lugar escolhido (Is 8,23b).

Antes mesmo de levarem uma vida comum, os jovens judeus (como Maria e José) se comprometeram em casamento, eram considerados quase como esposos porque o contrato já foi assinado (cf. Mt 1,18s). “Maria” é tradução grega do nome hebraico Miriam (o mesmo nome da irmã profetisa de Moisés em Ex 2,4.7; 15,21; Nm 12,1-10; 20,1; Maomé confundiu-a com a mãe de Jesus).

O anjo entrou onde ela estava e disse: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!” (v. 28).

“Alegra-te” (saudação comum na língua grega do NT) é tradução melhor do que “Ave” (saudação em latim), porque apela à alegria messiânica; os profetas convidaram a filha de Sião a alegrar-se pela vinda de Deus em meio a seu povo (cf. Is 12,6; Sf 3,14-15; Jl 2,21-27; Zc 2,14; 9,9).

“Cheia de graça”, lit.: “tu que fostes e permaneces repleta do favor divino”. Alguns manuscritos acrescentam “Bendita és tu entre as mulheres”, por influencia de v. 42 (saudação de Isabel).

Maria ficou perturbada com estas palavras e começou a pensar qual seria o significado da saudação. O anjo, então, disse-lhe: “Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim” (vv. 29-33).

As palavras do anjo (cf. Mt 1,20-23; Lc 1,13-17) inspiram-se em varias passagens messiânicas do AT, nascimentos (milagrosos) e profecias messiânicas (cf. Gn 16,11s; Jz 13,3-5; 2Sm 7; Is 7,14s; 9,5s; 11,1-5; Jr 23,5; Dn 7,14). A “virgem conceberá um filho” (cf. Is 7,14 em grego). Este será reconhecido como messias (2Sm 7), “descendente de Davi” (através de José) e “Filho do Altíssimo” (através do Espírito Santo, cf. v. 35a; cf. 1Sm 16,13; 2Sm 7,14-16; Sl 2,7; Rm 1,2-4). Seu reinado sobre “Jacó” (= Israel; cf. Gn 32,29) será “para sempre” e sem fim (universal, cf. Is 9,6; Dn 7,14). A última expressão entrou no Credo Niceno-constantinopolitano: “E seu reino não terá fim”.

Maria perguntou ao anjo: “Como acontecerá isso, se eu não conheço homem algum?” (v. 34).

É comum nos relatos de vocação a pessoa chamada alegar um argumento contra (cf. 1,18; 5,8; Gn 18,12; Ex 3,11.13; 4,1.10.13; Jz 6,15; Jr 1,6…). A virgem Maria é apenas noiva (cf. v. 27) e não tem relações conjugais (sentido semítico de “conhecer”, cf. Gn 4,1; etc). O anjo não repreende Maria como fez a Zacarias (cf. v. 20), porque se trata aqui de uma coisa inédita. O fato de Maria não conviver ainda com José parece realmente opor-se ao anúncio dos vv. 31-33 e induz a explicação do v. 35. Nada no texto impõe a idéia de um voto de virgindade.

O anjo respondeu: “O Espírito virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra (v. 35a).

A resposta do anjo evoca a nuvem luminosa, sinal da presença de Javé (cf. Ex 13,22; 19,16; 24,16) como também as asas do pássaro que simbolizam o poder protetor (Dt 32,11; Sl 17,8; 57,2; 140,8) e criador (Gn 1,2) de Deus. O fato de Maria conceber sem ainda estar morando com José indica que o nascimento do Messias é obra da intervenção (poder, força, cf. o nome Gabriel) de Deus. Aquele que vai iniciar nova história surge dentro da história de maneira totalmente nova.

Por isso, o menino que vai nascer será chamado Santo, Filho de Deus” (v. 35b).

A santidade é um dos atributos essências do Deus de Israel no AT (Is 6,3; Lv 11,44-46; etc.); ela se comunica àquele que se aproxima de Deus ou lhe é consagrado. Jesus é o Santo do NT (cf. Lc 4,34p; Jo 6,69; At 2,27; 3,14; Ap 3,7).

Davi recebeu o Espírito de Javé quando foi ungido (1Sm 16,13). O Messias (significa: ungido; em grego: Cristo) é descendente de Davi e considerado filho (adotivo) de Deus (cf. 2Sm 7,14), adotado na hora da sua posse (consagração, cf. Sl 2,7; batismo: Mc 1,11), e também dotado como o Espírito (Is 11,1s; 42,1; 61,1). Mas o Espírito também está com os profetas (cf. 1Sm 10,10; 2Rs 2,9.15; Ez 2,2; 11,5; 37,1) e pode ser derramado sobre o povo (Ez 11,19; 36,26s; Jl 3,1s; cf. Lc 1,35.41.67; 2,25-27;  At 2 etc). Na sua vida na terra, Jesus não era sacerdote no templo nem tomou posse como rei, mas era vista como profeta (cf. 7,16; Mc 9,8.19p) ou messias (9,20p; Mc 11,9s). A novidade aqui é que Jesus é Filho de Deus no sentido literal, biológico (cf. Mt 1,16.20.25), não só a partir do batismo (que pode ser considerado como espécie da consagração ou posse alternativa (3,22p; cf. Sl 2,7), mas “desde o ventre materno” (cf. vv. 15.41; Is 49,1.5; Jr 1,5; Gl 1,15).

Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice. Este já é o sexto mês daquela que era considerada estéril, porque para Deus nada é impossível” (vv. 36-37).

Em vez de dar um sinal (exigido por Zacarias em v. 18; cf. Gn 15,8; Jz 6,17; Is 7,11; 38,7), o anjo indica um milagre que já aconteceu (Maria já sabia da gravidez da sua prima ou não?). Zacarias e Isabel estavam na mesma situação que Abraão e Sara (ambos velhos e ela estéril). Gabriel conclui com palavras semelhantes às de Deus na visita a Abraão e Sara (na aparição dos três anjos em Gn 18,14; cf. Jr 32,27).

Maria, então, disse: “Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!” E o anjo retirou-se (v. 38).

Maria não usa um verbo ativo na primeira pessoa “cumprirei” (Ex 19,8), mas um intransitivo: “aconteça, faça-se” o que disse o anjo, ou seja, a ação divina e sua consequência (como um novo Gênesis; cf. Gn 1,3: Deus falou “haja luz”, e “houve luz”; etc.). Deixar Deus agir é a suprema humildade e grandeza de Maria (cf. 1,48s). A tradição entendeu o consentimento (“sim”) de Maria como pronunciado em nome da humanidade (cf. 2Cor 1,19-22). Imagine se tivesse negado. No plano da criação, Deus faz o homem colaborador (imagem; cf. Gn 1,26s). No plano da salvação, se fez dependente do livre arbítrio (consentimento) de uma mulher. Amor e fé não se forçam ou impõem, mas se propõem.

Na sua encarnação que resultará na paixão e morte, Jesus também será o “servo (escravo) do Senhor Javé” (cf. Is 53; Fl 2,7). Não só por sua maternidade, mas pela sua reposta generosa à palavra de Deus, Maria torna-se modelo de fé para toda Igreja (cf. 11,27s). Bento XVI a chama “mãe da palavra” (do Verbo encarnado, Jo 1,14) e “mãe da fé” (fé é a reposta à palavra; cf. Verbum Domini 27).

O site da CNBB comenta: Jesus se insere na história da humanidade e, ao fazê-lo, também passa a ter uma história. Ele é verdadeiramente homem e assume em tudo a condição humana, menos o pecado. Ao comemorarmos a Imaculada Conceição da Virgem Maria, estamos comemorando um fato da história do próprio Cristo, pois a Imaculada Conceição de Maria está condicionada ao nascimento de Cristo, uma vez que Deus estava preparando o ventre digno de receber seu próprio Filho. Com isso, podemos perceber a ação do Deus que é Senhor da história e que, agindo na própria história da humanidade, conta com a colaboração de todos para a realização do seu plano.

 

 

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