22 de dezembro de 2016 – Quinta-feira, Advento 4ª semana

Leitura: 1Sm 1,24-28

As leituras nestes dias nos preparam para o nascimento de Jesus apresentando outros nascimentos extraordinários (Sansão, Samuel, João Batista). As circunstâncias extraordinárias de um nascimento indicam que o menino será extraordinário.

Assim o nascimento de Samuel entra na categoria do nascimento de heróis, como os de Isaac ou Sansão (cf. leitura do dia 19). Com o primeiro tem em comum outro elemento (que não aparece na leitura de hoje): o tema das duas mulheres, como Sara e Agar, esposas de Abraão, ou Raquel e Lia, esposas de Jacó. A Bíblia do Peregrino (p. 486) comenta o contexto: A fecundidade de uma e a esterilidade da outra destacam o caráter maravilhoso do nascimento: o nascituro será filho da promessa e da oração, mais que simples filho da carne. O Senhor da vida demonstra o seu poder precisamente na fraqueza, outorgando com sua palavra explícita uma fecundidade que o homem ia considerar natural. Por isso a oração de Ana ocupa na narração um lugar primordial; a ela e ao seu cumprimento se subordina o resto da narração, a peregrinação, o papel do sacerdote, as reprovações. Seu marido a repreende carinhosamente, ela não responde, dirige-se a Deus; o sacerdote a censura duramente, e ela explica. Uma romaria no princípio e outra no final compõem o capítulo.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 303s) comenta:  A situação de Ana se parece com a situação do povo. Ana é do norte, da região montanhosa de Efraim, como Débora (cf. Jz 4-5). Aí o povo costumava frequentar o santuário de Silo (v. 3), onde se encontrava a arca da aliança (cf. 4,3s)… No interior de Canaã, o culto às divindades da fertilidade era comum. As mulheres costumavam ir aos santuários populares para conceber. Esse atributo será agora de Javé.

Nossa liturgia apresenta apenas o final do cap. 1, como introdução ao salmo responsorial que é a continuação da leitura (1Sm 2,1.4-5.6-7.8ab), o cântico de Ana que serviu de modelo para o cântico de Maria (Magnificat: Lc 2,46-55, evangelho de hoje).

Ana, logo que o desmamou, levou consigo Samuel à casa do Senhor em Silo, e mais um novilho de três anos, três arrobas de farinha e um odre de vinho. O menino, porém, era ainda uma criança. Depois de sacrificarem o novilho, apresentaram o menino a Eli (vv. 24-25).

A súplica de Ana de ter um filho foi atendida (vv. 11.19s). A mãe mantém a promessa de entregar e consagrar o filho ao santuário de Javé; depois de dois anos,o período comum para amamentar uma criança (cf. 2Mc 7,27).Ao término da lactação celebrava-se uma festa familiar (cf. Gn 21,8).

Ana leva consigo “três novilhos” (texto hebraico) e grande quantidade de farinha e vinho. No texto de Qumran e nas traduções em grego e sírio se lê (como em nossa liturgia): “um touro de três anos” (cf. v. 25); Qumran e grego acrescentam: “e pão”. Seria uma prova de que no antigo Israel também as mulheres ofereciam sacrifícios? Não está claro se o marido estava junto (cf. vv.21s).

Eli é o sacerdote do santuário de Silo que achava que Ana estava bêbada quando rezava longamente para ter um filho (vv. 12-14: cf. At 2,13).

E Ana disse-lhe: “Ouve, meu senhor, por tua vida, eu sou a mulher que esteve aqui orando ao Senhor, na tua presença. Eis o menino por quem eu pedi, e o Senhor ouviu a minha súplica. Portanto, eu também o ofereço ao Senhor, a fim de que só a ele sirva em todos os dias da sua vida”. E adoraram o Senhor (vv. 26-28).

Foi a mulher, Ana, que deu o nome ao filho, “chamou-o Samuel, dizendo: ‘Eu o pedi ao Senhor!’” (v. 20). Samuel poderia significar “nome (shem) de Deus (El)”, mas seu componente divino não é Javé (J). “Pedido” se diz sha’ul (cf. o nome do primeiro rei Saul) como mostra v. 27:“o Senhor ouviu a minha súplica (pedido)”.Há outro jogo de palavras montando sobre a raiz “pedir” sh’l (vv. 17.20.27):o português o imita em parte com os verbos conceder-ceder: “O Senhor me concedeu o pedido…Eu o cedo ao Senhor.”

“E adoraram o Senhor”. Em hebraico, é masculino singular: “ele se prosternou”, mas é embaraçoso: Eli se prostra? Segundo os rabinos, trata-se de Elqaná, marido da Ana ou de Samuel. O texto de Qumran tem: “ela se prosternou”; as traduções em latim e sírio: “eles se prosternaram”. A frase falta na versão grega, onde o capítulo termina com “e o deixou ali na presença do Senhor”.

Em seguida, Ana profere uma oração de agradecimento de louvor (2,1-10, o salmo responsorial de hoje) que Lc tomou de modelo para o cântico de Maria (chamado “Magnificat” segundo a primeira palavra em latim: ”Exulta no Senhor meu coração, e se eleva a minha fronte no meu Deus…” (cf. evangelho de hoje)

Os filhos de Eli eram corruptos, a má conduta deles causa a perda da arca da aliança (2,12-17.22-25; 3,12-14 e cap. 4). No lugar deles, Samuel se tornará sucessor de Eli como juiz (7,15-17), sacerdote fiel (2,35; 7,9) e é apresentado também como profeta (3,20; 9,9).

Evangelho: Lc 1,46-56

Depois da bem-aventurança de Isabel no encontro das duas mães gravida (vv. 39-45, evangelho de ontem), Maria responde com uma oração de louvor e ação de graças. Este hino de Maria (vv. 46-55) é chamado Magnificat (primeira palavra em latim). Neste, Maria é representante da comunidade dos pobres de Israel que esperam pela libertação. Dela nascerá o Filho de Deus, o messias libertador (cf. 4,18 citando Is 61,10).

O cântico é composto em estilo de hino (salmo com versos paralelos) com temas tradicionais. As duas seções dividem-se no versículo 50. Notem-se dois grandes temas: 1.Os pobres e pequenos são socorridos em detrimentos de ricos e poderosos (Sf 2,3; Mt 5,3; cf. as bem-aventuranças e os “ais” em Lc 6,20-26). 2. Israel é objeto da graça de Deus (cf. Dt 7,6 etc.), desde a promessa feita a Abraão (Gn 15,1; 17,1).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1252) comenta: O cântico de Maria se inspira no de Ana (1Sm 2,1-10) e em alguns salmos. Começa celebrando a ação de Deus que olhou para a humilhação que Maria vivenciava naqueles dias, por ter assumido a maternidade do Messias. Em seguida, recorda a ação de Deus na vida dos pobres de Israel, reorientando o rumo das coisas, recriando a justiça e renovando a esperança animada pelas promessas feitas desde o tempo de Abraão. O cântico indica o rumo que será assumido por Jesus, ungido pelo Espírito para levar a boa notícia aos pobres (4,18).  

A Bíblia do Peregrino (p. 2454) observa: Não menciona expressamente a maternidade, implícita no contexto próximo. Não é implorável que Lucas tenha adaptado um hino já existente. Do cântico de Ana e seu contexto (1Sm 1-2), toma: o tema básico da maternidade (2,5), as duplas poderosas/humildes, ricos/pobres (2,5.7.8), a reviravolta da situação, a alegria da celebração (2,1), a santidade de Deus (2,2), a atenção para a humildade ou humilhação (1,11), o Deus de Israel (1,17).

Maria disse: “A minha alma engrandece o Senhor, e se alegrou o meu espírito em Deus, meu Salvador (vv. 46-47),

Este cântico em ação de graças é chamado Magnificat (a primeira palavra em latim: “engrandece”) e inspira-se no cântico de Ana (1Sm 2,1-10) e em muitas outras passagens do AT.

O hino é alegre, festivo. A “alegria” irrompeu pela saudação de Gabriel (Ave Maria, lit.: “Alegre-te” em 1,28, saudação comum em grego; cf. a anúncio natalino em 2,10) e agora toma a palavra na boca de Maria. Ela exulta (Sl 35,9; cf. Hab 3,18; cf. cf. Sl 9,15; 13,6; 31,8;) a “grandeza” de Deus (cf. Sl34,4; 69,31), “meu salvador” (2Sm 22,3; Is 43,3;).

O AT reserva, o mais das vezes, o título “salvador” a Deus (Dt 32,15; 1Sm 10,19; Sl 24,5; 27,1.9; 62,2.7; 65,6; 79,9; 95,1…cf. Lc 1,47; 1Tm 1,1) e o dá às vezes aos juízes de Israel (Jz 3,9.15; 12,3; Ne 9,27). Na aparição dos anjos aos pastores, Lc o dará a Jesus (2,11; cf. Jo 4,42).

Porque olhou para a humildade de sua serva. Doravante todas as gerações me chamarão bem-aventurada (v. 48),

Maria pertence ao “povo pobre e humilde” que o Senhor conservou (Sf 3,12). “Olhou para humildade/humilhação de sua serva“ (cf. v. 25.38; 1Sm 1,11; Sl 31,8). Alguns pensam que o hino de Maria nasceu na liturgia cristã da Palestina ou em Jerusalém (a “filha de Sião” em Sl 9,15; Zc 9,9); Lc lhe teria então acrescentado o v. 48, para colocá-lo nos lábios de Maria (cf. vv. 38.45). A Bíblia de Jerusalém (p. 1928) comenta: Lc deve ter encontrado esse cântico no ambiente dos “pobres”, onde era talvez atribuído à Filha de Sião; julgou conveniente colocá-lo nos lábios de Maria, inserindo-o em sua narrativa, que é em prosa.

“Me chamarão bem-aventurada” (cf. 11,27s); as vizinhas de Lia a felicitaram por causa do nascimento de Aser (=Feliz, Gn 30,13), mas aqui é projetado para um futuro sem fim “doravante todas as gerações”. Profecia que está se cumprindo na Igreja que vê Maria como primeira criatura que alcançou a plenitude da salvação (cf. dogma da Assunção de Nossa Senhora: A serva humilde de Nazaré foi elevada (cf. v. 52b): aqui na terra tornou-se a “mãe do Senhor” (v. 43) e no fim é aclamada Rainha no Céu (cf. Ap 12), sinal de esperança para todos os pobres e humildes mortais.

Porque o Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor. O seu nome é santo, e sua misericórdia se estende, de geração em geração, a todos os que o temem (vv. 49-50).

Da pessoa agraciada de Maria (“em meu favor”), o louvor se generaliza, “a todos os que o temem”.

O (Todo-)“Poderoso” (cf. Sf 3,17). Já o anjo Gabriel (cujo nome significa: poder, força de Deus) mencionou o “poder” do Altíssimo (v. 35). “Fez grandes coisas” (Sl 71,19; 126,2-3; Jl 2,21) “em meu favor” (cf. Dt 10,21).

“O seu nome é santo” (Is 57,15; Sl 111,9; cf. 1Sm 2,2; o três vezes santo de Sl 99 e Is 6,3). Já Gabriel falou do Espírito Santo e do futuro menino como santo ou consagrado (v. 35).

“Sua misericórdia se estende… a todos que o temem” (Sl 103,17; cf. Sl 100,5; o estribilho litúrgico de Sl 136). O temor de Deus é virtude sapiencial e dom do Espírito (Sl 25,12-14; 112,1; 128,1; Pr 1,7; Eclo 1,11-20 etc.; Is 11,2).

Ele mostrou a força de seu braço: dispersou os soberbos de coração. Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes (vv. 51-52).

Do contraste entre o poder de Deus e o ser humano e humilde, passa-se ao exercício do poder divino que inverte a sociedade em favor dos humildes.

“Mostrou a força” com sua direita (Sl 118,15-16), com seu “braço” (Ex 15,16; Is51,5.9, Sl 89,11) que desbarata, “derruba”, “dispersa” os inimigos e monstros (Sl 89,10-11 davídico); Jó 5,11-12; 12,19), “os poderosos” e “os soberbos de coração”(lit. os orgulhosos pelo pensamento dos seus corações), cf. Eclo 10,14s.

“O Senhor ergue do pó o homem fraco; do lixo ele retira o indigente para fazê-lo sentar-se com os nobres” (1Sm 2,7-8 = Sl 113,7), só isso já é humilhação dos abastecidos. “Quem se exalta será humilhado, quem se humilha, será exaltado (elevado)” (Mt 23,12; Lc 14,11; 18,14; cf. Ez 21,31).

Encheu de bens os famintos, e despediu os ricos de mãos vazias (v. 53).

Como na política, realiza também uma revolução na economia (cf. as transformações em Sl 107,9.33-41). A respeito da libertação de um escravo: “Quando o deixares ir em liberdade, não o despeças de mãos vazias” (Dt 15,13). Se o Brasil tivesse feito a reforma agrária junto quando aboliu da escravatura, o país seria outro.

Lc destaca o contraste e a inversão nas bem-aventuranças (6,20-26) e na parábola do pobre Lazaro e o rico esbanjador (16,19-31). Em Lc, Jesus não só multiplica os pães para a multidão faminta (9,12-17p), mas converte alguns ricos para partilha e colaboração (Zaqueu em 19,1-10; mulheres ricas em 8,3; Barnabé em At 4,36s).

Socorreu Israel, seu servo, lembrando-se de sua misericórdia, conforme prometera aos nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre” (vv. 54-55).

O hino emboca nas promessas antigas aos antepassados (“nossos pais”) do povo eleito por Deus (Dt 7,6). “Israel” é nome do povo socorrido inúmeras vezes (libertado da escravidão, resgatado do exílio etc.), é “servo” de Deus (Is 41,8s; como Maria, cf. vv. 38.48). Este povo descende do neto de Abraão, Jacó, cujo apelido era Israel (Gn 32,29; 35,10). A eleição começou com Abraão a quem Deus fez sair da sua terra para ser uma benção para todos os povos prometendo a ele terra e “descendência” (Gn 12,1-3; 13,14-17; 15,5; 17,1s; 18,18; 22,17s; 26,4.24; 28,14; 46,3).

O AT nota muitas vezes que Deus “se lembra” (Gn 8,1; 9,15; Ex 2,24…) para dizer que ele é fiel à sua promessa (a Davi, a Jacó, a Abraão, cf. Sl 18,51; Mq 7,20; Lc 1,72) e a executa. Se sua misericórdia (vv. 50.54) é pura iniciativa, a lealdade supõe um compromisso (Sl 25,6; 98,3).

Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa (v. 56).

Maria permaneceu provavelmente com Isabel até o nascimento e a circuncisão de João. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1969) comenta: Os três meses de permanência de Maria se estendem até o nascimento de João (cf. 1,36), e Maria pode ter estado presente a este acontecimento, mas Lc indica aqui a sua partida para concluir a narração, da mesma maneira que contará paradoxalmente a prisão de João antes do batismo de Jesus (3,20): ele destaca assim a distinção das cenas e separa o tempo de João do tempo de Jesus (cf. 1,80, onde ele termina falando da juventude de João, antes de voltar ao nascimento de Jesus).

O site da CNBB comenta: Maria reconhece, no canto do Magnificat, que Deus realizou maravilhas em sua vida, mas que esta realização não foi somente para ela e que não é um fato isolado na história do povo de Deus, de modo que as maravilhas que Deus realiza nela são, na verdade, para todo o povo de Deus, uma vez que pelo seu Filho virá a salvação para todos os povos. Sendo assim, devemos compreender que quando Deus realiza maravilhas nas nossas vidas, essas maravilhas não são apenas para nós, mas a todas as pessoas a partir de nós, e quando Deus realiza maravilhas nas vidas das outras pessoas, também somos beneficiados por ele.

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