22 de Fevereiro de 2019, Sexta-feira: Disse-lhes Jesus: “Em verdade vos digo, alguns dos que aqui estão, não morrerão sem antes terem visto o Reino de Deus chegar com poder” (9,1).

Leitura: Gn 11,1-9

Os caps. de Gn 1-11 que ouvimos nas duas últimas semanas, são um tipo pré-história numa linguagem mitológica, ou seja, narrativas sobre as origens do mundo, da vida humana e dos povos. Antes de entrar na história do povo de Deus com seu ancestral Abraão e sua família (Gn 12-50; lida na 12ª a 14ª semana), nossa liturgia nos apresenta a narrativa sobre a diversidade das línguas originada na “torre de Babel”.

A Bíblia de Jerusalém (p. 45) comenta: Esta narrativa javista dá uma outra explicação para a diversidade dos povos e das línguas: é o castigo de uma falta coletiva que, como a dos primeiros pais (cap. 3), é ainda uma falta por excesso (cf. v. 4). A união só será restaurada com o Cristo salvador: milagre das línguas em Pentecostes (At 2,5-12), assembleia das nações no céu (Ap 7,9-10).

Toda a terra tinha uma só linguagem e servia-se das mesmas palavras. E aconteceu que, partindo do oriente, os homens acharam uma planície na terra de Senaar, e ali se estabeleceram (vv. 1-2).

Nossa leitura de hoje é da tradição “javista” (que usa o nome divino Yhwh-Javé, traduzido por Senhor). Parece ter sido descolada para depois do “quadro dos povos” na redação definitiva. Na tradição “sacerdotal” (séc. VI), já desde o cap. 10, os povos se dispersaram e falam diferentes línguas.

De acordo com 10,10, Nimrod já está na planície de “Senaar” (Shinear, é a Babilônia (cf. 10,10; Is 11,11; Dn 1,2), e “Babel” (cf. 11,9) é uma de suas capitais.

E disseram uns aos outros: “Vamos, façamos tijolos e cozamo-los ao fogo”. Usaram tijolos em vez de pedra, e betume em lugar de argamassa. E disseram: “Vamos, façamos para nós uma cidade e uma torre cujo cimo atinja o céu. Assim, ficaremos famosos, e não seremos dispersos por toda a face da terra” (vv. 3-4).

Diversamente dos israelitas que construíam com tijolos e argamassa, os babilônios não tinham pedras e dispunham de betume em abundância. Construíram assim templos-torres com muitos andares chamados zigurates, aos quais este relato faz indiretamente alusão. O deus supremo deles, Anu, vivia supostamente no mais alto dos céus.

A Bíblia de Jerusalém (p. 45) comenta: A tradição se interessou pelas ruinas de uma dessas altas torres em andares, que se construía na Mesopotâmia como um símbolo da montanha sagrada e um repositório da divindade. Os construtores teriam desse modo procurado um meio de encontrar seu deus. Mas o Javista vê nisso uma iniciativa de um orgulho insensato. Este tema da torre combina com o da cidade: é uma condenação da civilização urbana (cf. 4,17).

“Ficaremos famosos” (cf. 3,22; 6,4). Deus é capaz de desfazer os projetos dos homens sem contudo esmagar a estes.

Então o Senhor desceu para ver a cidade e a torre que os homens estavam construindo. E o Senhor disse: “Eis que eles são um só povo e falam uma só língua. E isto é apenas o começo de seus empreendimentos. Agora, nada os impedirá de fazer o que se propuserem (vv. 5-6).

A Bíblia do Peregrino (p. 29) resume: Soa em contraponto um sonho que um dia poderia ser esperança: um povo, uma língua, um empreendimento, e o poder humano cresce maravilhosamente. Mas não quando a soberba o corrompe.

Desçamos e confundamos a sua língua, de modo que não se entendam uns aos outros”. E o Senhor os dispersou daquele lugar por toda a superfície da terra, e eles cessaram de construir a cidade (vv. 7-8).

Javé é contra língua orgulhosa (cf. Sl 12,4s). A globalização pretende também unir os povos num único projeto neoliberal. Mas mesmo com o apoia da técnica (meio de comunicação, redes sociais), as pessoas se desentendem cada vez mais, cada um fica na sua, não há mais projetos e ideias partilhados por todos.

Por isso, foi chamada Babel, porque foi lá que o Senhor confundiu a linguagem de todo o mundo, e de lá dispersou os homens por toda a terra (v. 9).

O nome de Babilônia, significa, na realidade, “porta do deus” (Bab-ilanu) Para ridicularizar as pretensões da Babilônia à dominação universal, o autor lhe dá uma interpretação maliciosa, associando Babel à raiz hebraica balal, “confundir, perturbar, misturar”.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 31) comenta: Babel é provavelmente uma referência aos zigurates, torres-palácios-santuários, que existiam na Babilônia (“Bab-ilu”, porta dos deuses). Aqui, Babel lembra o hebraico “balal” (mistura, confusão; 11,9), criando uma explicação popular para a diversidade das línguas. Apresentando a construção da torre como afronta a Javé, a narrativa liga-se a 2,4b-3,24; 4,1-16, e guarda séculos de crítica e resistência ao poder centralizado em cidades, torres e fortalezas (Am 3,9-11; Os 8,14; Is 2,15; Mq 3,10; Jr 22,13-17; Ap 18,1-10), todas construídas por camponeses submetidos a trabalhos forçados pelos poderosos. At 2,1-12 é uma releitura desta narrativa.

A Bíblia do Peregrino (p. 29) resume: Vários temas se mesclam neste breve e famoso relato. Um eco da rebelião dos titãs que tentaram escalar o céu; uma etiologia sobre a multiplicidade atual de línguas; uma crítica política. As línguas se multiplicam como castigo de Deus, para que os homens não se entendam em seus planos soberbos – paronomásia popular com o nome de Babel. A cultura urbana, que poderia ser o centro de convivência pacifica, desperta o desejo de domínio imperialista – crítica à Babilônia. A pirâmide sagrada ou zigurates, vista como a torre do assalto humano ao céu; mas que não chega, de modo que Deus deve descer para vê-la. A subida acaba em caída, a concentração em dispersão, o nome famoso em nome infamante. A maldição será anulada de Pentecostes (At 2).

 

Evangelho: Mc 8,34-9,1

Em Mc, cada anúncio da paixão é seguido por uma falta de entendimento por parte dos discípulos, e em seguida Jesus tira as consequências para seus seguidores (Mc 8,32-38; 9,32-41; 10,35-45; cf. Lc 9,23 “para todos”). Depois da profissão de fé por Pedro (no trecho anterior vv. 27-33, evangelho de ontem), Jesus anunciou pela primeira vez explicitamente a sua paixão, morte e ressurreição, mas não disse ainda de que maneira “devia ser morto”.

Chamou Jesus a multidão com seus discípulos e disse: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga (v. 34).

Depois de falar aos discípulos, Jesus fala a multidão. Pedro entendeu quem era Jesus (o messias), mas não estava disposto de viver este entendimento (vv. 22-33). Só entenderá Jesus, quem o seguir no sofrimento. Aqui aparece pela primeira vez a “cruz” no evangelho. Jesus deixa claro, que o destino do seu caminho é a cruz (em v. 31 só falou de rejeição e morte).  A condenação à morte de cruz era reservada a criminosos e subversivos. Quem quer seguir a Jesus esteja disposto a se tornar marginalizado por uma sociedade injusta (perder a vida) e mais, a sofrer o mesmo destino de Jesus: morrer como subversivo (tomar a cruz).

Ao falar de “renunciar a si mesmo”, Mc não pensa num ideal de ascese ou masoquismo que se opõe à ideia de que felicidade é ser livre do sofrimento, mas é seguir Jesus e orientar-se nele em vez dos próprios interesses ao ponto de custar a vida no martírio. “Renunciar” quer “dizer não, negar”, está ligado à profissão da fé (no batismo) ou negar Jesus como depois Pedro em Mc 14,66-72p. Renunciar a si mesmo não significa suicídio porque, neste, a própria vontade ainda se sobrepõe à vontade de Deus.

Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la. Com efeito, de que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida? E o que poderia o homem dar em troca da própria vida? (vv. 35-37).

Atrás disso está a experiência que se pode ganhar o mundo, mas perder a si mesmo. Pode se ganhar rios de dinheiro, mas morrer de repente (cf. a parábola em Lc 12,16-21 e Eclo 11,18s; Jó 2,4; Sl 49,8s). Pode-se perder a chance de ganhar a vida eterna, não renunciando a seus bens materiais (cf. 10,17-25).

Quem vive buscando bens e riquezas, nunca ficará satisfeito. Quem se doa aos outros, esquece de si mesmo e sente uma grande felicidade. A cruz, então, não é só um sacrifício. É o único modo para não perder a própria vida, não dissipá-la em coisas superficiais que não conduzem à felicidade. Diferente da sabedoria grega, não é a “vida” (em grego: zoé) na terra o bem maior, mas a “vida” transcendente (Mc usa a palavra grega psyqué) que depende do juízo final.

Se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras diante dessa geração adúltera e pecadora, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória do seu Pai com seus santos anjos” (v. 38).

Mc se refere ao fracasso dos discípulos, envergonhar-se, negar ou abandonar a fé. Já no AT uma geração que abandona a fé em Deus e corre atrás dos ídolos, é chamada de “geração adúltera e pecadora” (Mt 12,39; 16,4; cf. Jr 3,8s; 9,1; Is 57,3; Os 2,4-7; Ez 16,38). À esta geração pecadora se opõe o Filho do Homem com seus anjos e sua glória. Só ele pode conceder ou negar a vida definitiva porque a ele é entregue o “Reino de Deus” (cf. 9,1; Dn 7,13s) e o Juízo final (cf. Mt 13,40-43; 25,31-46). Jesus se identifica com o “Filho do Homem” (2,10.28; 8,31 etc.). No final do caminho da cruz, o próprio Jesus receberá seu discípulo como juiz do mundo (13,26s; 14,62), como Filho do Homem virá no final dos tempos com seus anjos (cf. 13,26s). “Na glória do seu Pai”, o Filho do Homem é também o “Filho de Deus” (cf. 1,11; 9,7).

Disse-lhes Jesus: “Em verdade vos digo, alguns dos que aqui estão, não morrerão sem antes terem visto o Reino de Deus chegar com poder” (9,1).

Em Mc 1,15 Jesus anunciava: “O Reino de Deus está próximo”. Em que sentido deve-se entender que “alguns dos que aqui estão”- obviamente da geração dos apóstolos – “não morrerão sem antes de terem visto o Reino de Deus com poder”? O problema da interpretação está na data desta vinda (parusia): ainda na geração dos apóstolos.

Com todos os profetas, Jesus anuncia o que deve acontecer para sua “geração”. Quando Mc escreveu seu evangelho cerca de 70 d.C., Jesus já tinha morrido e ressuscitado 40 anos antes, e a maioria (ou todos?) dos apóstolos também já tinha morrido. Pedro e Paulo morreram na perseguição de César Nero em Roma (64-67 d.C.). Talvez por isso, Mc resolveu escrever seu evangelho (o primeiro por escrito) para que o anúncio oral dos apóstolos não se perdesse, mas fosse preservado autenticamente para as próximas gerações.

Por isso, muitos autores identificam esta vinda (ou “vista”) com a transfiguração de Jesus que “alguns” apóstolos, Pedro, Tiago e João assistem logo em seguida (cf. 9,2p), mas neste relato seguinte não se fala do Reino de Deus.

Outros interpretam relacionando esta vinda datada com a ressurreição e ascensão que a transfiguração já antecipa de certo modo. De fato precisa desta antecipação, já que o Evangelho de Mc já termina no túmulo vazio (16,1-8; os vv. 9-20 são um anexo posterior). Alguns pensaram na ruína de Jerusalém (70 d.C., época da redação do evangelho), outros identificam a vinda do reino com a Igreja e sua poderosa expansão (cf. Mt 13,36-43).

Fato é que esta expectativa da vinda de Jesus com seu reino na sua glória em data breve realmente existia entre os primeiros cristãos (1Cor 15,51s; 1Ts 4,16s), Mc ainda a transmite (cf. 13,30: “Essa geração não passará sem tudo isso aconteça”), mas já a coloca em outro contexto. Para ele, esta palavra de Jesus já se cumpre nos três apóstolos que veem Jesus transfigurado na sua glória em 9,2-10. Os escritos mais tardios do NT (cf. Jo 21,18-23) demonstram o problema e procuram dar outro sentido, p. ex.: “para Deus, mil anos são apenas um dia” (2Pd 3,3-10; cf. Sl 90,4).

O site da CNBB comenta: O Evangelho de hoje nos mostra um significado fundamental para entendermos o mistério da cruz. Jesus diz: “Renuncie a si mesmo e tome a sua cruz”. A cruz significa antes de tudo não ser mais nada para si e ser tudo para os outros. De fato, Jesus no alto da cruz já não tinha nada que fosse seu, a não ser a sua própria vida, e até ela nos é dada conforme ele mesmo nos diz: “Ninguém tira a minha vida, eu a dou livremente”. Mas esse fato é o coroamento de toda a vida de Jesus que não se apegou ciosamente à sua condição divina, mas se fez homem, obediente até a morte e morte de cruz, vivendo totalmente para servir ao seu Pai e aos seus irmãos e irmãs, numa total oblação.

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