22 de maio de 2018, terça-feira: Mas ele nos dá uma graça maior. Por isso, a Escritura diz: “Deus resiste aos soberbos, mas concede a graça aos humildes”

Leitura: Tg 4,1-10

A Bíblia do Peregrino (p. 2899) comenta a respeito da nossa leitura de hoje:

“É o parágrafo mais difícil da carta, por causa de sua construção artificial e citação enigmática dos vv. 5-6. É importante observar a pontuação dos vv. 2-3 para seguir a concatenação das breves frases, e nelas o processo de ações, resultados negativos e causas. Observe-se o esquema: “fazeis – não conseguis – porque”. O esquema básico da seção assemelha-se ao conhecido da denúncia profética (p. ex. Is 1,10-20; Jr 2-4), presente também na liturgia (p. ex. Sl 50). A análise psicológica das causas é contribuição do autor, talvez influenciado pela filosofia estóica popularizada. O esquema é o seguinte: denúncia do pecado e análise de causas – ameaça – exortação a converter-se – promessa. No começo está a cobiça, como em 1,4, seu objeto imediato são os prazeres; espécie de força militar, cujo campo de batalha é o homem. Do interior brota ao exterior social com efeitos desastrosos: a cobiça pode levar até ao homicídio. Dirige semelhante acusação aos cristãos?”

De onde vêm as guerras? De onde vêm as brigas entre vós? Não vêm, justamente, das paixões que estão em conflito dentro de vós? (v. 1).

Conflitos e divisões, guerras e brigas na comunidade podem surgir dos delitos da língua a aos falsos doutores (3,1s). Contudo a alusão às paixões (lit. “prazeres que guerreiam em vossos membros”), dando oportunidade ao mundo e ao diabo, é indício da passagem a uma nova sentença provinda da tradição (cf. Rm 7,23; 1Pd 2,11).

Cobiçais, mas não conseguis ter. Matais e cultivais inveja, mas não conseguis êxito. Brigais e fazeis guerra, mas não conseguis possuir. E a razão está em que não pedis. Pedis, sim, mas não recebeis, porque pedis mal. Pois só quereis esbanjar o pedido nos vossos prazeres (vv. 2-3).

Outra tradução (Bíblia de Jerusalém, p. 2268): “Desejais e não tendes? Então matais. Buscai com avidez, mas não conseguis obter? Então vos entregais à luta e à guerra. Não possuis porque não pedis…” Aqui “guerra” não designa as lutas interiores de cada pessoa (cf. Rm 7,23; 1Pd 2,11), mas as rijas ou rancores entre fiéis, talvez verdadeiros conflitos, em que os cristãos estariam tomando parte ativa.

Se há má intenção, o Senhor não escuta; não vale para tal caso o “pedi e recebereis” (cf. Sl 68,18-19; Mt 6,5-13.33; 7,7-11p; Rm 8,26). Semelhante pedido profana a oração. O autor usa dois termos para designar a intercessão: “pedir” (já falou da oração de súplica em 1,5-8) e “rezar” no fim da carta (cf. 5,13-18). Ambos têm o mesmo significado no NT; talvez essa variação do vocabulário venha de tradições diferentes.

Adúlteros, não sabeis que a amizade com o mundo é inimizade com Deus? Assim, todo aquele que pretende ser amigo do mundo torna-se inimigo de Deus (v. 4).

No texto grego, o termo “adúlteros” está no feminino (“mulheres infiéis”). Renunciando à expressão “irmãos”, o redator adota um tom rígido a ponto de chamar de adúlteros, pecadores e homens fingidos (vv. 8-9) a quem causa tais conflitos. Poderia visar tanto às comunidades como aos indivíduos.

“Adúltero” é termo tradicional no AT para designar a idolatria; em imagem conjugal, infidelidade do povo ao seu Deus, a esposa infiel de Javé (Os 1,2; 3,1; Is 1,21; etc.). De maneira semelhante, Jesus chamou a “geração” que recusou sua mensagem (cf. Mt 12,39; 16,4; Mc 8,38; 2Cor 11,2). Pois bem, sendo o mundo rival de Deus, o amor a ele é uma forma de idolatria.

Como as faltas da língua se explicam pela antítese das duas sabedorias (cap. 3), assim as brigas da comunidade se explicam pelo antagonismo entre a amizade com o mundo e o amor a Deus. É pensamento tradicional no judaísmo: A Regra em Qumran opôs dois espíritos, um dos quais dirige os filhos da luz, e o outro, os filhos das trevas. No NT, as cartas de Paulo apresentam a luta entre carne e espírito (cf. Rm 8,2-13; Gl 5,16-26 etc.), os escritos de João, o dualismo das trevas e da luz (Jo 1,5; 3,19-21; 8,12; 1Jo 1,5-7 etc.). Esta oposição não significa um dualismo de um mundo radicalmente oposto a Deus, mas expressa uma escolha entre obediência a Deus e escravidão sob a potência adversa. Nesta escolha, o amor ao mundo é sinal de um coração dividido (cf. 1,8; 3,6; 4,8).

Ou julgais ser em vão que a Escritura diz: “Com ciúme anela o espírito que nos habita”? (v. 5).

Embora o tema do ciúme de Deus apareça muitas vezes no AT como o próprio excesso do amor divino (Ex 20,5; 34,14; Nm 25,11; Dt 4,4; 5,9; Ez 8,3-5; 39,25; Zc 1,14; cf. no NT: 2Cor 11,2), o texto tal qual não se pode encontrar em nenhuma parte da “Escritura”. O cânone do AT só foi fixado pelos judeus na época do autor (no sínodo de Jâmnia em 90 d.C.). Talvez o autor cite de um apócrifo (escrito fora do cânone) ou de reminiscências que se prendem a Gn 2,7; 6,3 ou a Ez 36,27 (cf. 1Ts 4,8). A mesma fonte de inspiração ocorre em Rm 8,26-27; Deus pôs em nós algo do seu Espírito, o qual nos leva a desejar aquilo que Deus deseja; eis como as nossas petições são atendidas (cf. Mt 18,19-20; Jo 14,13).

A Bíblia do Peregrino (p. 2899) comenta: Não se conseguiu identificar essa citação em todo o AT, nem sequer quanto ao sentido. Por isso, a interpretação é duvidosa e discutida.

  1. a) O sujeito do verbo ”ambicionar” é Deus? Em tal caso, o complemento é “o espírito humano”, que Deus quer de modo ciumento para si (inveja variante de ciúme, como em hebraico).
  2. b) Se o sujeito é o espírito, refere-se ao espírito ou alento vital do homem, infundido por Deus? Em tal caso, o texto se refere à depravação da consciência humana, que o favor de Deus deve reprimir.
  3. c) O sujeito é o espírito divino infundido no batismo? Em tal caso, descreveria uma ação profunda do Espírito corrigindo e endereçando a “inveja”. Inclino-me à segunda hipótese.

Mas ele nos dá uma graça maior. Por isso, a Escritura diz: “Deus resiste aos soberbos, mas concede a graça aos humildes” (v. 6).

A graça “maior” está sem termo de comparação: maior que a inveja, que o desejo? A segunda citação da “Escritura” é identificável, Pr 3,34 9 (cf. Jó 22,29); deve ser lida em seu contexto.

Obedecei pois a Deus, mas resisti ao diabo, e ele fugirá de vós. Aproximai-vos de Deus, e ele se aproximará de vós. Purificai as mãos, ó pecadores, e santificai os corações, homens dúbios (vv. 7-8).

A carta continua com uma série de imperativos urgentes (no estilo de Is 1,16-17 ou de Sl 4,4-6) acompanhados de promessas correspondentes. O primeiro, “obedecei (submetei-vos) a Deus” (cf. 1Pd 5,6), pode ser programático. Segue-se uma antítese assimétrica: o diabo foge diante da resistência (1Pd 5,8s), Deus se aproxima de quem dele se aproxima (Jr 3,22; 4,1; 30,21; Zc 1,3). A dupla seguinte combina o gesto com seu significado (cf. Is 1,16).

Homens “dúbios”, fingidos, indecisos, divididos entre duas lealdades (como os israelitas no tempo de Elias, 1Rs 18): a palavra grega significa duplicidade e não aparece antes de Tg. Mas a imagem do coração dúplice remonta ao judaísmo e identifica-se com a hipocrisia denunciada em Mt 6,2-16; 15,7; 23,13-15). Uma pessoa cujo coração pretende vacila entre o amor a Deus e a amizade para com o mundo (v. 4), flutuando na fé, na oração e na conduta, é o contrário do homem perfeito  que tenta espalhar em si a simplicidade de Deus (1,5-8; 5,12).

Ficai tristes, vesti o luto e chorai. Transforme-se em luto o vosso riso, e a vossa alegria em desalento. Humilhai-vos diante do Senhor, e ele vos exaltará (vv. 9-10).

A leitura de hoje termina com um grupo de sentimento penitencial (cf. 1Mc 1,39s; Tb 2,6; Is 32,11s; Mq 2,4; Zc 11,2s.) e conclui com a promessa evangélica de Mt 23,12p (cf. 1Rs 21,29), que estrutura o hino de Fl 2,6-11. A humilhação do pecador resulta numa reviravolta (cf. 1,9s; Lc 6,21.25), enquanto a lamentação aos ricos de 5,1 não dá lugar a nenhum arrependimento.

 

Evangelho: Mc 9,30-37

Ouvimos hoje o segundo anúncio da paixão em Mc seguido por um gesto exemplar.

Jesus e seus discípulos atravessavam a Galileia. Ele não queria que ninguém soubesse disso, pois estava ensinando a seus discípulos (vv. 30-31a).

A instrução aos discípulos à parte da multidão, “em casa” (vv. 28s.33; 10,10) ou como aqui “no caminho” (10,32; cf. 8,27) já é um motivo típico em Mc (cf. 4,10 etc.). Tem a ver com o segredo do messias e a incompreensão dos discípulos, outras características deste evangelho.

E dizia-lhes: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará” (vv. 31b-32).

Em Mc, Jesus anuncia três vezes sua paixão, mas cada vez os discípulos reagem mal e Jesus precisa corrigi-los (8,31-33; 9,30-37; 10,32-45). É a expectativa de um messias guerreiro e triunfante que causa o mau entendimento no povo e nos discípulos. Lembramo-nos de que Mc escreveu durante a guerra Judaica (judeus contra romanos em 66-70 d.C.; cf. 13,1-23) e não queria alimentar esta expectativa. Por isso o segredo do messias Jesus: “Ele não queria que ninguém soubesse disso … O Filho do homem vai ser entregue nas mãos dos homens e eles o matarão…” (vv. 30-31). O conceito de um messias aparentemente perdedor e sofredor (cf. o servo sofredor em Is 53) estava na contramão da mentalidade guerreira.

Os discípulos, porém, não compreendiam estas palavras e tinham medo de perguntar (v. 32).

Só quem pergunta, pode entender e aprender. O ser humano é o ser que pergunta e quer entender. Fé e entendimento (razão) não se contrariam, mas complementam.

Eles chegaram a Cafarnaum. Estando em casa, Jesus perguntou-lhes: “O que discutíeis pelo caminho?” Eles, porém, ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior (vv. 33-34).

Mc é duro com sua descrição dos discípulos: eles não perguntam e também não respondem à pergunta de Jesus, “ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior”. Brigam pelos melhores lugares no reino de Deus que Jesus anuncia (1,15; cf. 10,37.41).

Jesus sentou-se, chamou os doze e lhes disse: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!” (v. 35).

No reino de Deus não é grande, quem quer ser o primeiro para mandar, mas aquele que se coloca no último lugar e “serve a todos” (v. 35; 10,43s). Quem quer seguir Jesus, não deve olhar para os ricos e poderosos, mas olhar para os pequenos e excluídos (cf. Is 61,1; 66,1s), para aqueles que a sociedade costuma colocar no último lugar ou na margem.

Em seguida, pegou uma criança, colocou-a no meio deles, e abraçando-a disse: “Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim que estará acolhendo. E quem me acolher, está acolhendo, não a mim, mas àquele que me enviou” (vv. 36-37).

Com um gesto significativo, Jesus reforça seu ensinamento, “pegou uma criança, colocou-a no meio deles, abraçando-a” (cf. 10,13-16). Na sociedade antiga, crianças não estavam no centro das atenções, tinham pouco valor porque não podiam ainda contribuir como os adultos. Os romanos costumavam jogar crianças indesejadas no lixo! Jesus, porém, coloca a criança no meio, dá carinho e ainda se identifica com ela: “Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim que estará acolhendo. E quem me acolher está acolhendo não a mim, mas aquele que me enviou” (v. 37; cf. Mt 18,1-5; 25,40.45; Jo 12,44; 13,20).

Nas outras religiões, é o ancião que é valorizado por sua sabedoria. Mas na religião cristã também a criança ganha valor, porque o próprio Deus, em Jesus, se fez pequeno e servo e apresentou a humildade de crianças como exemplo de fé (10,13-16). Daí também o empenho da Igreja pela vida (contra aborto) e suas instituições como orfanatos, creches, Pastoral da Criança, Pastoral do Menor, catequese e batismos de crianças etc. Daí um escândalo maior quando acontece abuso de crianças nas instituições da Igreja (cf. Mt 18,5-7).

O site da CNBB resume: O que faz com que na maioria das vezes não compreendamos corretamente a mensagem de Jesus geralmente são as diferenças que existem entre os nossos interesses e os dele. Enquanto Jesus estava pensando na necessidade da cruz para a realização do Reino de Deus, seus discípulos estavam pensando em um reino com critérios humanos, fundamentado principalmente nas diferenças, nas relações de poder e na hierarquia social, econômica e política. Sempre que não nos colocamos em sintonia com o projeto de Jesus e não colocamos o amor como o critério último das nossas vidas, podemos nos equivocar na compreensão do Evangelho e buscar interpretações que existem muito mais para legitimar os nossos interesses do que para nos conduzir à verdade e ao Reino.

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