22 de Outubro de 2018, Segunda: Assim acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus

Leitura: Ef 2,1-10

O cap. 2 de Ef começa expor a situação dos pagãos, antes submissos às forças negativas (vv. 1-2), e a situação de Israel, antes entregue à carne, ou seja, aos instintos egoístas (v. 3). Antes do batismo, ambos, judeus e helenistas, viveram em estado lastimável e sem esperança (cf. Rm 3,9.23). Mas Deus, pela sua graça em Jesus, fez de todos um só povo, para conduzir todos à salvação (2,14; cf. Rm 9,23s). Por sua iniciativa e por causa de sua misericórdia, Deus fez todos passarem da morte para a vida, do pecado para a graça, e permitiu que todos participem, já antecipadamente, da vida divina, através da ressurreição de Jesus (vv. 4-7). Tudo isso é dom maravilhoso da graça divina, em vista das boas ações a serem praticadas pelos cristãos (vv. 8-10).

Vós estáveis mortos por causa de vossas faltas e pecados, nos quais vivíeis outrora, quando seguíeis o deus deste mundo, o príncipe que reina entre o céu e a terra, o espírito que age agora entre os rebeldes. Nós éramos deste número, todos nós. Outrora nos abandonávamos às paixões da carne; satisfazíamos os seus desejos, seguíamos os seus caprichos e éramos por natureza, como os demais, filhos da ira (vv. 1-3).

Descreve-se a situação anterior de desgraça. É articulada nos grupos “nós” e “vós”. “Vós” (v. 1-2) seriam os pagãos, súditos do deus deste mundo e chefe dos rebeldes a Deus. “Nós” (v. 3) seriam os judeus, que, apesar da lei de Moisés, cedem ao instinto (Tt 3,3) ou se agarram a ritos corporais externos (por ex. a circuncisão ou rituais de pureza). Uma conduta guiada pelos poderes malignos deste mundo, pelos desejos perversos próprios, equivale a “estar mortos pelo pecado” (Ez 18,13.20; 33,8-10; cf. Dt 30,15-19). Pelo que “naturalmente”, logicamente, incorre-se na “ira” ou condenação (Rm 1,18; Cl 3,6).

“O deus deste mundo”, lit. segundo o éon deste mundo. O termo éon, que significa século, mundo, decurso das idades (cf. 1,21; 2,7; 3,9.11), parece aqui personificado (como na mitologia grega), como sugerem as expressões que seguem; ele designa uma força supra-humana de caráter ao mesmo tempo espacial e temporal, que cristaliza em si todas as tendências de um mundo hostil a Deus. Nas heresias gnósticas, esse termo desempenharia um papel fundamental.

“O príncipe que reina entre o céu e a terra”, lit. o chefe da potência do ar. Para os antigos, o ar se estende da terra até a lua e é o habitat dos espíritos demoníacos. Segundo Ef, é domínio das potências adversas que se interpõem entre Deus e os homens. O príncipe desse império é Satanás, “o espírito que age agora entre os rebeldes”, lit. os filhos da rebelião, a frase permanece suspensa; a ideia começada no v. 1 é continuada em v. 5.

“Todos nós”, judeus e pagãos são todos submetidos ao mesmo julgamento e à mesma ira.

O termo “carne” volta no v., após desejos (lit. os desejos da nossa carne); cf. o comentário de 5ª feira da 27ª semana). A expressão “por natureza” tem sido interpretada como significando por nascimento, e nela se viu a afirmação do pecado original (cf. Rm 5,12). Mas aqui, “por natureza” se opõe à “por graça” e a ira de Deus aparece diretamente como consequência dos pecados pessoais.

 

“Filhos da ira” é um hebraísmo análogo ao do v. 2 (filhos da rebelião).

Mas Deus é rico em misericórdia. Por causa do grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, ele nos deu a vida com Cristo. É por graça que vós sois salvos! Deus nos ressuscitou com Cristo e nos fez sentar nos céus em virtude de nossa união com Jesus Cristo. Assim, pela bondade, que nos demonstrou em Jesus Cristo, Deus quis mostrar, através dos séculos futuros, a incomparável riqueza da sua graça (vv. 4-7).

Aqui a autor da carta aplica e varia livremente os atributos de Deus no Antigo Testamento como rico em misericórdia, amor, favor e bondade (Ex 33,19; 34,6; Jl 2,13; Jn 4,2; Sl 86,15; 103,8).

Aqui, “nós” designa, ao mesmo tempo, os gentios (vv. 1-2) e os judeus (v. 3) e continua o pensamento interrompido pela digressão do v. 3. Deus nos livrou de semelhante estado (ira, rebeldia, paixões da carne, morte) por pura iniciativa: por misericórdia e por amor, não por méritos de obras (cf. vv. 8-9). Primeiro passo da salvação foi a passagem da morte (pecado) à vida (graça), cf. a passagem pelo batismo em Rm 6,3-11. Depois, enquanto membros de Cristo, nos faz participar, de antemão ou em esperança, da ressurreição e reinado de Cristo. “Ele nos deu a vida com Cristo (variação: no Cristo) … em virtude de nossa união com Jesus Cristo.”  O corpo (nós, cf. 1Cor 12) segue em tudo a cabeça (que é Cristo, cf. 1,22s).

“É por graça (gratuitamente, cf. At 15,11) que vós sois salvos. Deus nos ressuscitou com Cristo e nos fez sentar nos céus.” O tempo dos verbos gregos indicam o estado presente resultante de uma ação passada. Ef encara a salvação, a ressurreição dos que creem e a sua elevação aos céus como realidades atuais. Esta ideia de uma salvação realizada já é esboçada em Cl (cf. Cl 2,12) e caracteriza Ef e Cl com relação às cartas anteriores de Paulo nas quais essas afirmações exprimem um vir-a-ser (cf. os verbos no futuro em Rm 6,3-11; 8,11.17-18) e constituem uma esperança (Rm 8,24).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2198) sustenta o mesmo autor: Aqui e em Cl 2,12; 3,1-4, Paulo encara já como realidade (verbos no passado) a ressurreição e o triunfo celestial dos cristãos, que Rm 6,3-11; 8,11.17 considerava antes como coisas futuras (verbos no futuro). Essa escatologia realizada é um traço característico das epístolas do cativeiro.

Mas muitos peritos consideram as cartas Cl e Ef ”deuteropaulinas”, ou seja, cartas que não foram escritas por Paulo, mas por discípulos dele, que desenvolveram a doutrina paulina, por volta de 80 d.C. (cf. o comentário de quinta-feira passada). Uma escatologia presente encontra-se também no quarto evangelho (cf. Jo 3,18; 5,24s etc.).

“Através dos séculos futuros” lit. nos éons futuros. Aqui o termo éon parece guardar um sentido predominante temporal. Alguns, entretanto, reconhecem-lhe de novo um caráter pessoal (cf. v. 2).

Com efeito, é pela graça que sois salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós; é dom de Deus! Não vem das obras, para que ninguém se orgulhe. Pois é ele quem nos fez; nós fomos criados em Jesus Cristo para as obras boas, que Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos (vv. 8-10).

Em conclusão, somos nova criação de Deus por meio de Cristo e a nós cabem tarefas (obras) que não são condição, e sim consequência da salvação e do batismo. As boas obras testemunham que pertencemos à nova criação.

“Fomos criados em Jesus Cristo” (cf. Sl 138,8; Jó 10,8; 2Cor 5,17) “para as boas obras” (Tt 2,14), “que Deus preparou de antemão”; do mesmo modo que a salvação, a vida nova que dela decorre e as obras que a exprimem dependem da graça soberana de Deus. Cabe ao cristão discernir e realizar o que Deus “preparou”. Os vv. 8-10 condensam em algumas frases incisivas a pregação da graça de Deus desenvolvida em Gl e Rm. Mas o tema da justificação, que nessas cartas escritas pelo próprio Paulo constituía a base de demonstração, não mais entra na perspectiva de Ef.

 

Evangelho: Lc 12,13-21

Junto aos outros evangelistas, Lc apresenta o ideal de uma vida simples (ex. 6,20p; 8,14p; 9,3p; 10,3; 11,3; 12,22-34; 18,18-30p); além disso, só ele descreve a pobreza da família na infância  de Jesus (2,7.24), a ajuda financeira de discípulas (8,3), a parábola do rico ganancioso (12,13-21, evangelho de hoje), a parábola do rico esbanjador e do pobre Lázaro (16,19-31) e a conversão do chefe dos publicanos, Zaqueu (19,1-10) e, no seu segundo volume, a comunidade primitiva praticando a partilha (At 2,42-45; 4,32-37; 5,1-11). Lc está preocupado com as injustiças sociais e a indiferença dos ricos (cf. os ais em 6,24-26).

No evangelho de hoje e nos vv. seguintes (12,13-34) apresenta-se diversos ensinamentos de Jesus sobre a atitude a tomar em face dos bens deste mundo: advertência geral a respeito de um pedido particular (vv. 13-15); parábola do rico insensato (vv. 16-21), conselho aos discípulos contra a preocupação com a alimentação e o vestuário (vv. 22-32), exortação à dar esmolas (vv. 33s).

Alguém, do meio da multidão, disse a Jesus: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo”. Jesus respondeu: “Homem, quem me encarregou de julgar ou de dividir vossos bens?” (vv. 13-14)

A intervenção de “alguém, do meio da multidão” (cf. 10,25; 11,45) amplia o âmbito dos ouvintes (que era primeiramente os discípulos; cf. v. 1). Ele chama Jesus de “mestre”, título comum dos rabinos que costumavam arbitrar tais coisas (doutores da lei).

Em Lc, a interpelação “homem” (na boca de Jesus ou de Pedro: 5,20; 12,14; 22,58.60) designa mais distância do que “filho” (2,48; 15,31; 16,25) ou “amigo” (11,5; 14,10). O homem pede a Jesus que assuma uma tarefa temporal. Jesus se recusa a fazê-lo; ele se distingue assim de Moisés, que pelo contrário, “arvorava-se em chefe e juiz” (Ex 2,14; cf. At 7,27-35). Nas primeiras comunidades cristãs, também se julgavam casos temporais (cf. 1Cor 6,4).

A Bíblia do Peregrino (p. 2499) comenta: Tinha razão talvez aquele homem, ao reclamar o que lhe era devido (cf. Gn 21,10; Jz 11,2); é razoável supô-lo. Naquela cultura, herdar era assunto importante, não somente para o herdeiro, mas também para a continuidade da família. O Eclesiástico instrui sobre testamentos (Eclo 32,20-24). Pois bem, Jesus não veio dirimir pleitos de interesses financeiros, ele ensina a dar mais do que a reclamar.

E disse-lhes: “Atenção! Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens”. E contou-lhes uma parábola: (vv. 15-16a)

Jesus ensina a dar mais do que a receber ou reclamar (cf. At 20,35). A raiz que vicia as relações humanas e escraviza a vida às posses é a cobiça, a “ganância” (Mc 7,22; Rm 1,29; 2Cor 9,5; Ef 4,19; 5,3; Cl 3,5; 2Pd 2,3.14; cf. Tg 4,13-5,6). A riqueza não seguro de vida (Sl 49). “A vida de um homem não consiste na abundância de bens” (lit. “sua vida não procede de seus bens”).

Esta afirmação geral conclui a introdução da parábola seguinte explicando por que Jesus se recusa a ocupar-se de questões de dinheiro: este não é a fonte de vida. Jesus responde com uma parábola como em 7,40-43; 10,30-37; 14,16-24; 15,3-32. Esta parábola não é uma comparação (“O reino de Deus é como…”; cf. 8,4-15p; 13,18-21p), mas um exemplo que apresenta uma atitude a imitar ou a evitar (cf. 10,29-37; 16,1-8; 18,9-14).

A terra de um homem rico deu uma grande colheita. Ele pensava consigo mesmo: “O que vou fazer? Não tenho onde guardar minha colheita” (vv. 16b-17).

Este “homem rico” é um exemplo de confiança nas riquezas (Sl 49,7.19; 52,9; Pr 11,28). Pode ser inspirado em Eclo 11,18-28: “Quando diz: agora posso descansar, agora comerei de minhas posses, não sabe o que acontecerá até que o deixe a outro e morra” (cf. o evangelho apócrifo de Tomé, nº 63).

Num monólogo interior, o rico se denuncia. Não se consulta com Deus nem com outras pessoas. Nas parábolas de Lc, as pessoas exprimem muitas vezes o seu pensamento num monólogo (15,17-19; 16,3; 18,4; 20,13; cf. 12,45; também em Mt 21,38; 24,48).

Então resolveu: “Já sei o que fazer! Vou derrubar meus celeiros e construir maiores; neles vou guardar todo o meu trigo, junto com os meus bens. Então poderei dizer a mim mesmo: Meu caro, tu tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!” (vv. 18-19)

O ideal deste rico, sua filosofia de vida, é comer e beber, aproveitar e desfrutar (cf. Jr 22,15; Ecl 2,24; 3,13; 8,15; Tb 7,10); espera “muitos anos” de vida; trabalhou e agora pode “descansar”; acumulou e poder viver de rendas. Seu horizonte é imanente: esta vida (cf. Sb 2,1-9), como era de muitos dos leitores greco-romanos de Lc.

“Poderei dizer a mim mesmo: Meu caro, tu tens…”, lit.: “Eu direi a minha alma: Alma, tu tens…”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2004) comenta: A palavra “alma” designa aqui, como muitas vezes no AT, o ser vivo todo inteiro, a pessoa. Deve-se traduzi-la por vida (6,9; 9,24; 12,20.22s; 14,26; 17,33; 21,19), ou como aqui, por um pronome pessoal.

Aliás, o materialista não pensa numa alma que transcende esta vida terrena (cf. a oração do ateísta/agnóstico: “Ó Deus, se o Senhor existir, salve a minha alma, se eu tiver uma”).

Mas Deus lhe disse: “Louco! Ainda nesta noite, pedirão de volta a tua vida. E para quem ficará o que tu acumulaste?” (v. 20).

Ao monólogo do rico responde o próprio Deus chamando-o de “louco”; essa filosofia de vida é “insensata” (Sb 2,1.21-22; Sl 39,6s). O rico tem a vida apenas como empréstimo e está vencendo o prazo de restituí-la. O futuro sonhado “para muitos anos” se mostra como ilusão: “ainda nesta noite”; nas línguas semíticas, o plural impessoal, “pedirão de volta a tua vida”, pode designar Deus (cf. 6,38; 16,9) como Senhor da vida e da morte, seja aqui o anjo da morte (idêntico com Satanás) ou o próprio Senhor que clama o rico deste mundo pela morte.

Assim acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus (v. 21).

A falta do v. 21 em alguns manuscritos pode indicar que a parábola na versão original de Jesus já terminou sua lição, reafirmando o v. 15: o sentido da vida não consiste na abundância de bens, mas na espera pela vinda do reino de Deus.

Lc não condena proprietários em si, somente quando se fecham no egoísmo (cf. 15,6s.9s.32; 16,1-5; 19,1-27). Ele pode ter acrescentado o v. 21 em que sobressai qual é a verdadeira riqueza. “Rico diante de Deus” traduz-se também “visando a Deus” ou “ao olhar de Deus”. É o mesmo convite a ajuntar para si um tesouro no céu e ser defensor dos pobres (12,33; 18,22; cf. 16,9; Mt 6,19; At 2,45; 4,34). Rico para Deus é quem ajuda o próximo com o que é seu: “Quem se compadece do próximo empresta a Deus” (Pr 19,17; Eclo 29,8-13; cf. Tb 4,8-11).

O site da CNBB comenta: “Mas Deus lhe disse: ‘Louco’.”  Louco é aquele que é incapaz de perceber a verdadeira hierarquia dos valores e submete o eterno ao temporal, o celeste ao terreno, fazendo com que o acúmulo de bens materiais se tornem a causa maior da sua própria felicidade, o que faz com que ele feche a sua vida para os valores que são eternos e que trazem a felicidade que não tem fim. A verdadeira loucura consiste em não conhecer a Deus e, por isso, não valorizar a sua presença em nossas vidas, não viver no seu amor e não amar, de modo que não haja partilha de todos os bens, não possibilitando um crescimento mútuo e um projeto comum de felicidade, que dura para sempre.

 

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