23 de Dezembro de 2018, Domingo: Deus deixará seu povo ao abandono,até ao tempo em que uma mãe der à luz;e o resto de seus irmãosse voltará para os filhos de Israel (v. 2).

1ª leitura: Mq 5,1-4a

A 1ª leitura de hoje salienta a origem humilde do messias (Cristo) através de uma profecia de Miqueias, conterrâneo e contemporâneo de Isaias (cf. Is 7,14; 9,1-6; 11,1-9). O profeta (e depois Mt 2) opõe o orgulho da capital fortificada (Jerusalém) à condição humilde de Belém-Éfrata, de onde virá a salvação a partir da origem humilde da dinastia de Davi.

Depois de destruir o reino do norte (Israel) em 722 a.C., o exército assírio invade o reino do sul (Judá) e chega duas vezes às portas de Jerusalém (em 711 e 701 a.C.). Os falsos profetas anunciavam a Sião (a colina do templo) triunfo e poderio, mas Mq critica a injustiça social e a corrupção em Jerusalém que levarão a sua ruína: “Por vossa causa, Sião será um campo arado, Jerusalém será uma ruína, o monte do templo, um morro de matas” (3,12) e no versículo que antecede nossa leitura: “Faze agora, incisões, filha bandoleira, colocaram uma cerca (sítio) contra nós. Com a vara batem no juiz (rei, governante?) de Israel.”

Como os outros escritos proféticos, o texto de Mq também recebeu acréscimos no pós-exílio, alternando ameaças e promessas, entre as quais está também nossa leitura de hoje.

(Assim diz o Senhor:) Tu, Belém de Éfrata,pequenina entre os mil povoados de Judá,de ti há de sairaquele que dominará em Israel;sua origem vem de tempos remotos, desde os dias da eternidade (v. 1).

A humilhação de Jerusalém é definitiva. Mas Deus não deixa acabar tudo no caos. Só que a dinastia tem de resgatar humildes começos: não Sião, “mas tu Belém” (nossa liturgia omitiu “mas”), chamada também “Éfrata” (1Sm 17,12; Sl 136,6).Versão grega: “Belém, casa de Efrata”; cf. Mt 2,6: “Belém, terra de Judá. Tu não és de forma alguma a menor das capitais-de-distrito de Judá”.

O profeta parece dar o sentido etimológico de Éfrata, “fecunda”, em relação com o nascimento do Messias. É fratadesignou inicialmente um clã (da tribo de Benjamim) aliado a Calebda tribo de Judá (Nm 14,6s.10s; 1Cr 2,19.24.50) e instalado na região de Belém (1Sm 17,12; Rt 1,2). O nome passou em seguida à cidade (Gn 35,19; 48,7; Js 15,59; Rt 4,11).

Como Belém é a cidade de origem de Davi (cf. 1Sm 16,1-13; 17,12; 20,6; Rt4,11.17.18-22), o novo dirigente é descendente desse grande rei. Os evangelistas Mt e Lc reconhecerão em Belém (de Éfrata) a designação do lugar do nascimento do Messias (cf. Jo 7,41s).

Quando Mateus aplica este versículo ao nascimento do messias (Cristo), muda ou lê “não és a menor” (Mt 2,6), sem contradizer o que implica o original (grego: “pequena”, hebraico: “a menor”).

“Sua origem vem de tempos remotos, desde os dias da eternidade (pré-história)”, Mq pode retomar à genealogia no final do livro de Rute que termina com Davi (Rt 4,18-22), cujo reino foi visto por todos os judeus como conclusão de uma longahistória de salvação. Mas a tradição cristã, prolongando a sugestão de Mateus (Mt 2,6 cita apenas Mq 5,1), leu neste versículo a “origem eterna” do messias (sua pré-existência em Jo1,1.14; Hb 1,2s; Fl 2,6; Cl 1,15-17).

As tradições judaica e cristã sempre viram neste oráculo uma profecia messiânica a anunciar a vinda de um personagem futuro, encarregado de governar Israel. Suas origens são as da família real de Judá. Pois, nascido em Belém, o pastor do rebanho messiânico aparece como novo Davi (cf. 1Sm 16; 2Sm 5,2; 7,8). Mq e Is anunciam esperança através de um nascimento de um messias da dinastia de Davi, mas não o chamam de “rei” nem “messias” (=ungido; só o segundo e terceiro Isaías o chamam assim, cf. Is 42,1; 61,1): “de ti há de sair para mim aquele que dominará em Israel” (nossa liturgia omite: para mim); provavelmente é o Senhor quem fala aqui; sua causa identifica-se com a de Israel.Mt 2,6 esclarece: “de ti sairá o chefe, que apascentará Israel, meu povo”, mesclando assim Mq 5,1 (cf. v. 3) com 2Sm 5,2.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: O novo chefe não é chamado de “rei”, mas de “dominador”. Com isso, embora filho de Davi, distancia-se dos reis daquela dinastia, tantas vezes infiéis ao Senhor. A relação desse chefe com Deus aparece na expressão “para mim”, que muitas vezes indica submissão. Ele obedecerá ao Senhor, realizará seu desígnio. O novo chefe governará em nome de Deus, com seu poder; será seu representante.

Deus deixará seu povo ao abandono,até ao tempo em que uma mãe der à luz;e o resto de seus irmãosse voltará para os filhos de Israel (v. 2).

A restauração tem um momento previsto, que o profeta só pode anunciar num enigma com duas peças que se referem ao crescimento do povo: porque as mulheres voltam a dar à luz, e porque os exilados (“o resto”) voltam a reunir-se com seus irmãos (cf. Is 7,14; 9,5; 10,21s).

Talvez o autor pense no célebre oráculo pronunciado por Isaías uns trinta anos antes de Miqueias: “A jovem (esposa do rei) concebeu e dará à luz um filho que será chamado de Emanuel” (Is 7,14; a versão grega traduz: “virgem”; cf. Mt 1,23). Mas aqui em Mq, “aquela que dá à luz” é qualquer mulher judia, e também a capital personificada como matrona que Deus não deixará “abandonada” para sempre (cf. Is 54). Os que “voltarão” podem ser os israelitas do reino do Norte ou os judeus (do reino do Sul) depois do exílio. “Mãe” e “irmãos” dãoa esta profecia um tom familiar.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A restauração pertence a um futuro indeterminado, advirá após um tempo de provação, quando o povo eleito ficará entregue às suas próprias forças e decisões (v. 2). A mudança de situação ocorrerá quando uma parturiente der à luz (v. 2). Mq 4,10-11 chama Jerusalém de “parturiente”, que sofre dores de parto ao ir cativa para Babilônia; depois ela retornará. Se a parturiente de 5,2 é a cidade de Jerusalém, então primeiro os judeus serão de lá libertados, para depois terem lugar a promessa do novo chefe davídico e a reunião dos exilados com os judeus que ficaram na terra (ou a reunião do antigo reino do Norte com o reino de Judá). Outra interpretação entende que a parturiente é a mãe do chefe prometido, descendente de Davi. O texto estaria relendo a profecia do Emanuel (cf. Is 7,14) e aplicando-a a um tempo posterior. A tradição cristã viu nas características desse chefe prometido e na missão que lhe é outorgada a figura de Jesus (cf. Mt 2,6; Jo 7,42). Identificou, assim, a parturiente com sua Mãe. É nesse sentido cristológico que o texto tem lugar na liturgia de hoje.

Ele não recuará, apascentará com a força do Senhore com a majestade do nome do Senhor seu Deus;os homens viverão em paz, pois ele agora estenderá o poderaté aos confins da terra, e ele mesmo será a Paz (vv. 3-4a).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta:Seu poder será universal, de acordo com as expectativas para o reinado do filho de Davi (cf. Sl 2,8; 71/72,8). Por intermédio dele, o povo se estabelecerá estavelmente no país, vivendo em segurança e bem-estar. Ele é o instrumento de Deus para trazer a paz, a plena realização, ao povo eleito (cf. Is 9,6; Zc 9,10) (v. 3).

Davi e seu sucessor recebem de Deus o “poder (força) do Senhor” e em seu nome o exercem. O messias e seu governo (pastoreio) trarão paz e prosperidade, incluindo os pobres e oprimidos (cf. Sl 72). Ele representa a paz, “ele mesmo será a paz” (cf. Is 9,1-6; 11). Paz (shalom) na Bíblia significa também bem-estar, prosperidade, felicidade etc. (cf. Nm 6,27).

Os falsos profetas rejeitam a visão humilde de Miqueias(aplicando o esquema de Is 14,24-27). Na boca dos falsos profetas, exalta o tom otimista e triunfal da sua mensagem da paz para o presente (3,5). Na boca de Miqueias, projeta para um futuro indefinido as promessas davídicas (2Sm 7,9).

Este fragmento(cuja continuação nos vv. 4b-5 nossa liturgia omite) anuncia uma vitória futura sobre a Assíria. Ele a atribui ao filho de Davi (começo do v. 4, fim do v. 5) e aos chefes de Judá (vv. 4b-5a, elemento primitivo reempregado).Os pastores serão capitães, a vitória será obtida pelas armas e a Assíria será submetida à vassalagem, mesmo que encarne o legendário Nemrod (cf. v. 5).Nemrod era caçador e guerreiro, “o primeiro valente na terra” (Gn 10,8-12). Recorde-se aqui a vitória de Davi sobre Golias, sem espada, apenas com uma pedra e uma funda de pastor.

A Nova Bíblia Pastoral (p.1143) comenta 4,14-5,5: “Aquele que deve governar Israel” não sairá de Jerusalém, a cidade de Davi, capital e sede da casa real, mas de Belém-Éfrata, o menor entre os clãs de Judá (cf. Gn 35,19: Raquel, grande matriarca, segundo a tradição tribal, foi enterrada no caminho de Éfrata). Ele, como “juiz-pastor” e não como “rei”, defenderá seu povo das nações opressoras, como a Assíria e a Babilônia (=terra de Nemrod). Este é o sonho do resto do povo sofrido que rejeita a monarquia militarista (cf. 4,1-5) e deseja voltar ao tempo dos juízes. Nas memórias antigas da história pré-monárquica, Saul e Davi não são chamados de “rei”, mas de “juiz” (cf. 1Sm 9,16; 10,1; 2Sm 5,2; 6,21). As comunidades judaicas e cristãs compreenderam este oráculo como anúncio da chegada de um novo juiz messias (cf. Mt 2,5-6). 

 

2ª Leitura:Hb 10,5-10

A 2ª leitura foi escolhida por sua alusão à encarnação do Filho de Deus. O autor anônimo da carta (melhor: sermão) aos hebreus cita o Salmo 40 (39). É também a 2ª leitura na festa da Anunciação do Senhor em 25 de março, nove meses antes de Natal, cf. Gl 4,4).

Ao entrar no mundo, Cristo afirma: “Tu não quiseste vítima nem oferenda, mas formaste-me um corpo. Não foram do teu agrado holocaustos nem sacrifícios pelo pecado. Por isso eu disse: ‘Eis que eu venho’. No livro está escrito a meu respeito: ‘Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade’”. Depois de dizer: “Tu não quiseste nem te agradaram vítimas, oferendas, holocaustos, sacrifícios pelo pecado” — coisas oferecidas segundo a Lei — ele acrescenta: “Eu vim para fazer a tua vontade”. Com isso, suprime o primeiro sacrifício, para estabelecer o segundo (vv. 5-9).

No Sl 40/39 o orador agradece reconhecendo que Deus não queria sacrifícios pelo pecado, “vítimas, oferendas, holocaustos – coisas oferecidas segundo a Lei” (v. 8), mas que o homem realizasse a vontade divina (cf. Sl 50,18; Mq 6,6-8).

A palavra grega holocausto (em hebraico shoa)designa o sacrifício de um animal, oferecido e “queimado por inteiro” no altar (Lv 1). Hoje os judeus não oferecem mais sacrifícios, porque só podiam fazê-lo no templo (Dt 12), mas este foi destruído pelos romanos em 70 d.C. e nunca mais reconstruído (um santuário muçulmano está no lugar hoje). No séc. 20, a palavra holocausto simboliza o genocídio dos nazistas ao povo judeu, porque milhões foram queimados nos fornos dos campos de concentração de Auschwitz e outros.

A carta aos Hb identifica o orador do Sl 40 com Jesus: “Ao entrar no mundo, Cristo afirma: “… formaste-me um corpo… eu vim, o Deus, para fazer a tua vontade” (vv. 5-7; cf. Sl 40,7-9 versão grega).

Já nos evangelhos, o próprio Jesus critica que a observância da lei na interpretação dos fariseus não é suficiente, é preciso “praticar a vontade do Pai” (Mt 7,21). Cristo nos mostra, através da sua vida e morte, qual é a vontade de Deus, ou seja, a lei maior: “amar a Deus… e o próximo como a si mesmo é melhor do que todos os holocaustos” (Mc 12,28-34); devemos até “amar os inimigos” (Mt 5,43-48p; cf. Lc 23,34). A lei nova é amar como ele amou (Jo 13,34; 15,12.17; cf. 1Jo)

Este é o “segundo sacrifício”, não oferecer animais, mas sua própria vida por amor. Apesar de ser “leigo”, porque não nasceu numa família sacerdotal (o sacerdócio em Israel era hereditário), Jesus é um “sumo sacerdote” superior (cf. caps. 7-9): ele selou a nova e eterna aliança (13,20) com seu próprio sangue, não com o sangue alheio de animais (9,12).

É graças a esta vontade que somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo, realizada uma vez por todas (v. 10).

A oferenda de Cristo é evidentemente aceita por Deus, já que consiste em cumprir o que Deus quer (“submissão…obediência”, 5,7s; “fazer sua vontade”, cf. Mc 14,36p; Jo 6,38). E, longe de ser exterior ao homem, o toma inteiramente, pois parte do coração (na Bíblia, é o centro das decisões) e vai até a “oferenda do corpo”. Assim nos tira do impasse, do bloqueio do pecado que obstruiu nosso caminho (conexão) para Deus. Este era “sacrifício único pelos pecados” (v. 12; cf. 7,27; 9,26), eficaz e capaz de nos salvar: “somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo”. A. Vanhoye (p.78) comenta: E graças a essa oferenda perfeita, Deus pôde por fim realizar o seu projeto de restabelecer uma comunicação vivificante entre ele e nós (10,10; cf. 2Cor 5,18-19).

Assim não precisamos mais de outros sacrifícios a não ser fazer a vontade de Deus, “é graças a esta vontade que somos santificados” (v. 10; cf. Mt 6,9-11; Jo 6,39s). A leitura de hoje destaca o momento em que Cristo “entra no mundo” e se “forma um corpo” no ventre de Maria. Sua missão é fazer a vontade do Pai que nos salva (cf. Jo 4,34; 6,40; Mt 6,10; 7,21; 26,42), oferecendo seu “corpo” em sacrifício único que nos santifica e salva “uma vez por todas” (v. 10; cf. 7,27; 9,12.26). Na Eucaristia, nós não repetimos este “sacrifício único” de Cristo, mas fazemos “memória”, ou seja, atualizamos seus efeitos na memória sacramental que o torna presente.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta:

Confrontando os sacrifícios da Lei com o sacrifício de Cristo, a carta aos Hebreus mostra, nessa passagem, a superioridade deste último. Os sacrifícios da antiga Lei não eram capazes de eliminar realmente o pecado; com efeito, uma vez que as vítimas eram animais (ou outros bens criados), os sacrifícios não comprometiam o ser humano em seu íntimo. Além disso, entre o animal imolado e Deus não se podia verdadeiramente estabelecer uma comunhão. Os sacrifícios eram representações da entrega que o ser humano queria fazer de si mesmo a Deus.

O sacrifício de Cristo, ao contrário, realiza o perdão e a comunhão de modo definitivo. Porque:

  • É um sacrifício que engajou a consciência, o coração do Verbo encarnado. É expressão de sua obediência absoluta ao Pai: “Vim, ó Deus, fazer a tua vontade” (v. 7.9; cf. Jo 6,38; Lc 22,42). Por isso é aceito, pois realiza o plano de Deus, a sua vontade, que é o determinante no ato cultual e o que garante que o sacrifício atinja sua finalidade (v. 10).
  • Ele inclui todo o ser: surge do amor do Verbo e abarca a humanidade de Cristo, incluindo a realidade de seu corpo (seu ser histórico todo): “não quero sacrifício e oferenda… mas me formaste um corpo” (v. 5). Graças à humanidade assumida pelo Filho de Deus, graças à encarnação, pôde ser oferecido ao Pai o sacrifício que redime a relação entre o ser humano e Deus. Sendo então uma oferta perfeita, que cumpre totalmente a vontade, o desígnio, do Pai, realiza a santificação do gênero humano – e isso uma vez para sempre, sem precisar ser repetido (v. 10).

            Às portas do Natal, Hb 10,5-10 nos relembra que aquele Senhor que celebramos em seu nascimento é o Filho que se fez homem para, tornando-se um de nós, oferecer ao Pai o culto de verdadeira adoração, de louvor e expiação. Sua vinda na carne é obediência ao plano de amor do Pai (cf. Jo 3,16). E, entrando num mundo marcado substancialmente pelo pecado, ele se oferece como sacrifício de perdão. Restabelece, assim, a comunhão quebrada e a paz.

 

Evangelho: Lc 1,39-45

Lucas conta paralelamente a história dos nascimentos de João Batista (seis meses mais velho, cf. vv. 26.36) e de Jesus.Depois dos dois anúncios do arcanjo Gabriel, um a Zacarias em Jerusalém e outro à Maria em Nazaré, as duas linhas paralelas se cruzam numa intersecção transcendental. O novo episódio, o encontro de duas parentes em sua primeira gravidez, se polariza para o encontro misterioso de Jesus e João (seguido pelo hino de Maria em vv. 47-55, chamado “Magnificat”).

Naqueles dias,Maria partiu para a região montanhosa,dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia(v. 39).

Maria é representante da comunidade dos pobres que esperam pela libertação. Dela nascerá o Filho de Deus. O anjo Gabriel tinha falado a Maria sobre a gravidez da sua prima Isabel “apesar da sua velhice… já faz seis meses que está grávida” (v. 36). Por causa da reclusão de Isabel (v. 24), Maria talvez tenha conhecimento da gravidez de Isabel só através da revelação do anjo. Então, para confirmar a mensagem do anjo e/ou para ajudar sua prima, Maria partiu “apressadamente” (cf. 2,16, 15,20). Lc destaca as mulheres, não fala nada da reação de José a respeito (cf. Mt 1,18-25).

Nazaré fica na Galileia; de lá, Maria parte “para a região montanhosa”, isto é, a Judeia com um nível mais alto do mar (Jerusalém: 800 m). É um caminho cerca de 100 km até a casa de Isabel, numa cidade anônima, hoje identificada no lugarejo de AinKarim, 6 km a oeste de Jerusalém, onde seu marido Zacarias trabalhava no templo como sacerdote (1,8).

Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel. Quando Isabel ouviu a saudação de Maria,a criança pulou no seu ventree Isabel ficou cheia do Espírito Santo(vv. 40-41).

A reclusão de Isabel se abrirá para receber a visita de sua prima.A saudação de Maria é medianeira de alegria e inspiração celeste. O embrião João já recebe o Espírito anunciado em 1,15; como profeta é chamado antes de nascer, “antes de se formar no ventre eu te escolhi; antes de saíres do seio materno eu te consagrei” (Jr 1,5; Is 49,1; cf. Gl 1,15). Estremecendo diante do messias secretamente presente em Maria, João inaugura sua missão no ventre de Isabel e impressa sua alegria inconsciente (de sinal contrário os gêmeos de Gn 25,22).Assim João anunciandoo messias já no ventre materno,antecipa-se o encontro dos dois homens adultos no Rio de Jordão (batismo de Jesus 3,21p).

A reação alegre do embrião faz Isabel profetizar cheia do Espírito Santo”. Em Lc, a expressão “cheio/repleto do Espírito Santo” não significa plenitude de graça santificante, mas o dom da profecia que faz falar de forma inspirada (1,41.67; At 2,4; 4,8.31; 7,55; 9,17; 13,9). Aqui, o embrião João se manifesta no seio materno de tal modo que sua mãe expressa a voz profética. Pode-se comparar Maria com a arca da aliança (cf. Ap 11,19-12,1), diante da qual Davi pulou (2Sm 6,14-16), porque dentro dela está a Palavra encarnada de Deus (cf. Jo 1,14).

Com um grande grito, exclamou: “Bendita és tu entre as mulherese bendito é o fruto do teu ventre! (v. 42).

A interpretação profética de Isabel menciona três elementosconjugados: a fé (v. 45), a maternidade (v. 42), o Messias (v. 43). Maria é “bendita” embora possa recordar mulheres ilustres (Jael em Jz 5,24; Judite em Jt 13,18; Abgail em 1Sm 25,33);o contexto próximo nos convida a pensar na benção da fecundidade a Eva e a Sara (Gn 1,28; 9,1; 17,16; Dt 28,4). Mas nenhuma maternidade da história pode ser comparada com a de Maria; a ela estavam direcionadas muitas maternidades procedentes.

Como posso merecerque a mãe do meu Senhor me venha visitar? (v. 43).

Isabel como esposa de um sacerdote estava numa posição superior do que a de Maria, mulher de carpinteiro. No entanto, Isabel chama o filho de Maria de “meu Senhor”, como que reconhecendo o messias (Cristo). Talvez o autor aluda a Sl 110,1. No AT, “Senhor” é tradução do nome divino de Javé (cf. Ex 3,14). Para os cristãos, é o título divino de Jesus Cristo ressuscitado (At 2,36; Fl 2,11 etc.) que Lc lhe atribui desde a vida terrestre, com mais frequência que Mt e Mc(cf. Lc 2,11; 7,13; 10,1.39.41; 11,39 etc.).

Cristo é o Senhor, ele é Deus juntocom o Pai (“consubstancial”, cf. Concilio de Niceia em 425), portanto, Maria pode ser chamada “Mãe de Deus” (Concílio de Éfeso em 431); lógico que Maria não é a Mãe do Pai (ela é criatura dele, não deusa) nem do Espírito. As saudações do anjo (v. 28) e de Isabel (v. 42) formam a primeira parte da oração “Ave Maria”, cuja segunda parte inicia usando o título “Mãe de Deus”.

Logo que a tua saudação chegou aos meus ouvidos,a criança pulou de alegria no meu ventre.Bem-aventurada aquela que acreditou,porque será cumprido, o que o Senhor lhe prometeu”(vv. 44-45).

A benção acrescenta a felicitação (“bem-aventurada”), a primeira de uma série sem fim: aqui a fé é mérito principal: crendo, tornou possível o cumprimento. Em contraste com o cético Zacarias (v. 20), Maria é a crente, acreditou e se colocou à disposição da palavra de Deus (v. 38) e da sua prima Isabel, cuja gravidez o anjo indicou como sinal. Maria obedeceu a Palavra de Deus e colocou seu corpo a disposição da vontade de Deus (cf. 2ª leitura).

Ajudando a Isabel, Maria “permaneceu com ela três meses” (v. 56), provavelmente até o nascimento e a circuncisão de João (cf. vv. 57-66).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: Sua palavra a Isabel comunica algo mais que uma simples saudação. Tem como efeito primeiro o salto “de alegria” de João no ventre da mãe. Não se trata de um movimento natural, mas da manifestação daquela alegria que, no Evangelho de Lucas, indica a chegada da salvação (cf. Lc 2,10). Por isso, entende-se que Isabel tenha sido tocada pelo Espírito (v. 42). Não se diz qual foi a saudação de Maria. Importa tão somente que sua palavra comunica uma realidade salvífica. É sua presença, sua voz (v. 44), e não o conteúdo de suas palavras, que produzem esses efeitos em João e Isabel. Pois é a saudação da “cheia de graça” que traz consigo o Senhor (cf. 1,28).

Ela é aquela que acreditou. Isso a define em relação a Deus. O anjo comunicou a mensagem divina, e ela creu (v. 38), aceitou a palavra, mesmo de algo impossível humanamente. A fé é entrega à Palavra de Deus com a certeza de que ela não falhará, pois Deus é veraz e fiel. Ela se inicia no presente, mas olha para o futuro (“porque… será cumprido”, v. 45). Por isso, a fé compromete a pessoa inteira. Toda a vida de Maria recebe agora novo rumo. Tudo estará concentrado nesse Filho que ela concebeu, dará à luz, seguirá até a cruz. E, após a ressurreição, ela acompanhará os discípulos de seu Filho, a Igreja nascente (cf. At 1,14)…

Maria, porém, não é somente modelo exterior para o cristão. Como nossa mãe na fé (cf. Jo 19,27), ela colabora para que sejamos moldados à imagem de seu Filho (cf. Rm 8,29), sendo ela mesma a primeira imagem dele.

O site da CNBB resume:Vemos no evangelho de hoje o encontro de duas mulheres que estão grávidas sem que isso fosse possível. De um lado, Isabel, idosa e estéril, e de outro Maria, virgem. A idosa representando o Antigo Testamento, pois será a mãe do último profeta da Antiga Aliança. A virgem representando o Novo Testamento, pois será a mãe daquele que no seu sangue selará a Nova e Eterna Aliança entre Deus e os homens. Vemos a complementariedade entre as duas Alianças e vemos também em Maria a essência da missão evangelizadora: levar Jesus a todas as pessoas para que possam reconhecê-lo e acolhê-lo.

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