23 de fevereiro de 2017 – Quinta-feira, 7ª semana

Leitura: Eclo 5,1-10 (grego 1-8)

Nesta leitura, o autor Ben Sirac critica as atitudes dos ricos: confiança na própria riqueza, orgulho, autossuficiência (cf. Eclo 11,24; Sl 62,11). A riqueza é uma das fontes mais frequentemente denunciadas do orgulho e da “suficiência” que leva a satisfazer as paixões sem escrúpulos e a esquecer a precariedade da condição humana (cf. Dt 8,17-18; 1Jo 2,16). O rico, como o insensato (cf. Sl 53), não poderá contar com a riqueza diante da justiça de Deus (v. 8; cf. Pr 11,4; Jr 17,11).

Todas as frases da nossa leitura começam com “Não…” (cf. o decálogo) e depois se esclarece: “pois o Senhor…”.

Não confieis nas tuas riquezas e não digas: “Basta-me viver!” Não deixeis que tua força te leve a seguir as paixões do coração. Não digas: “Quem terá poder sobre mim?” ou: “Quem me fará prestar contas das minhas ações?”, pois o Senhor, com certeza, te castigará (vv. 1-3).

“Basta-me viver!” Aqui não significa que se moderem os desejos, contentando-se com as riquezas que se tem; mas que se procure exclusivamente a posse das riquezas (cf. Mc 10,17-27). “Que tua força (lit. alma) te leve”, indicando a sede dos impulsos que agitam o homem, “seguir as paixões do coração” (hebraico: Não sigas teu coração e teus olhos (cf. Nm 15,39) para te deixares arrastar pelos maus desejos).

Os ouvintes de Ben Sirac eram pessoas adultas, maduras, formadas e as vezes ricas. Foram elas que estavam em condições de se abrir aos novos costumes do helenismo, uma globalização antiga com suas tentações. Também o mestre Ben Sirac não fazia parte dos pobres e considerava (como o Antigo Testamento em geral) propriedade e riquezas como benção de Deus. Mas ele se irrita, quando riqueza e poder tomam o lugar que cabe só a Deus, quando não se confia mais em Deus, mas na riqueza, na própria “forca que te leva a seguir as paixões do seu coração”, e não se querer mais “prestar contas” das suas ações (vv. 1-3).

A Bíblia do Peregrino (p. 1584) comenta: Primeira forma de presunção: confiança nas próprias riquezas, força e poder. Crescendo o poder, crescem a cobiça e desejos. O poder se opõe a serviço da paixão. O tema das riquezas é frequente na pregação e na oração: p. ex. Jr 17; Sl 49 e 62. Pode-se ilustrar o tema da força com Is 10,13 e com Hab 1,11: “sua força é seu deus”. Na pregação do Deuteronômio, a expressão “seguir” = “ir atrás de” tem Deus por complemento.

A presunção se atreve a desafiar a Deus (cf. Sl 12,5), como o “insensato” que nega, se não a existência de Deus, pelo menos sua providencia (Sl 53,2). Esta atitude arrogante e presunçosa é a do ímpio que, seguro de seu bom êxito (Sl 10,6; 73,3.4.12), gaba-se dos desejos que sua alma (Sl 10,3) e afasta o pensamento de Deus (Sl 10,4; 53,2) e de seus juízos (Sl 10,11.13; 36,2; Sf 1,12).

“Pois o Senhor com certeza, te castigará”; hebraico: pois o Senhor procura (= ama) os perseguidos, ou então pede contas das coisas passadas, sentido mais adaptado ao contexto

Não digas: “Pequei, e que de mal me aconteceu?”, pois o Altíssimo é paciente (v. 4).

Desafio do cético à justiça de Deus, aparentemente inativa. A riqueza produz a ilusão da autossuficiência (cf. 11,23s), e esta conduz inevitavelmente para a presunção. Dessa forma, o rico julga merecer tudo, até mesmo colocar Deus a serviço de seus próprios interesses e abusar da paciência de Deus, “pois o Altíssimo é paciente” (v. 4).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1724) comenta: Por mais tarde que ela chegue, a cólera de Deus atingirá o pecador. Este não deve equivocar-se sobre a ausência sobre a ausência de reação sensível de Deus: cf. Ecl 8,11-14. – Hebr. (duplicata): Não digas: o Senhor é misericordioso, ele apagará todos os meus pecados (cf. v. 6).

Não percas o temor por causa do perdão, cometendo pecado sobre pecado. Não digas: “A misericórdia do Senhor é grande, ele me perdoará a multidão dos meus pecados!”, pois dele procedem misericórdia e cólera, e sua ira se abate sobre os pecadores. Não demores em voltar para o Senhor, e não adies de um dia para o outro, pois a sua cólera vem de repente e, no dia do castigo, serás aniquilado. Não te apoies em riquezas injustas, pois elas de nada te valerão no dia da desgraça (vv. 5-10).

Ben Sirac se irrita também, quando alguém não quer se converter, mas continua “cometendo pecado sobre pecado” (v. 5), dizendo: “A misericórdia do Senhor é grande, ele me perdoará a multidão dos meus pecados” (v. 6). Realmente, Israel experimentou que Deus é “grande” nesta sua misericórdia, mas também “não deixa ninguém impune” (Ex 34,6-7; 20,5s), “pois dele procedem a misericórdia e a cólera, e sua ira se abate sobre os pecadores” (v. 7; cf. 16,11s).

A Bíblia Peregrina (p. 1584) comenta: Outra forma de presunção, mais refinada e perigosa, é fazer pouco caso da compaixão divina, o autor insiste nos termos culpa e compaixão, pecado e perdão. Quando o homem estabelece a sequência permanente pecado/perdão, para assegurar e confirmar a própria má conduta, está tomando um dado isolado da revelação de Deus, para fabricar com ele em deus falso: comparar com 16,11-13. A polaridade graça/ira é expressa em Ex 34,7, no conjunto de bênçãos e maldições da aliança (Dt 27-28), implícita em exortações penitenciais, como Is 1,20; Sl 50,22-24 … Sua reação ao pecado é compaixão e é cólera. Se a compaixão parece prolongar-se em continuidade, a ira pode brotar de repente; justificada, mas imprevisível para o homem. Por isso, a reação do pecador à compaixão divina deve consistir em converter-se o quanto antes. Nessa volta, que Deus mesmo suscita com sua palavra, o pecador encontra o Deus compassivo. Ao contrário, a demora pode tocar o termo estabelecido, “dies irae”, o dia da sentença e da condenação. Paulo retoma o ensinamento em Rm 2,4-7.

É grave falta especular com o perdão de Deus, fazendo de sua bondade uma razão a mais para pecar tranquilamente. Mas é também um cálculo malfeito: Deus é justo, e sua cólera atingirá os pecadores. Não se deve adiar a conversão (cf. Is 55,6s), “pois sua ira vem de repente … no dia do castigo … no dia da desgraça” (vv. 8-9; cf. “o dia de vingança” Is 61,2; 63,4; “dia da ira” Rm 2,4s). Nós estamos acostumados a pensar no dia do juízo final. Mas o mestre da sabedoria em Eclo pensa só na vida presente (ainda não se concretizou a esperança por vida eterna e justiça após a morte). Como sinal da ira divina, uma vida breve e infeliz lhe parece um castigo e desgraça bastante (cf. 7,16-17; 11,23-28). Mas mais uma vez resta a pergunta: Esta desgraça só afeta aos maus? E sempre os atinge? Neste ponto, a sabedoria humana não avança. Só uma coisa é certa, no dia da desgraça, as “riquezas injustas nada te valerão” (v. 10; cf. Pr 10,2; 11,4; Sl 49; Lc 12,13-21; 16,9); “riquezas injustas” hebraico: riquezas de mentira, ou seja, enganadoras para aquele que as possui e deposita nelas uma confiança que será frustrada. Pode-se também compreender: riquezas adquiridas pela mentira e a falsidade, portanto injustas.

Evangelho: Mc 9,41-50

Jesus continua ensinando os discípulos, motivando-os para o valor dos pequenos, serviço generoso e tolerância (cf. evangelhos dos dias passados)

Quem vos der a beber um copo de água, porque sois de Cristo, não ficará sem receber a sua recompensa (v. 41).

 A generosidade se deve estender aos “pequenos” (Mt 10,42) e a todos que são “de Cristo”; mesmo um gesto pequeno como dar um copo de água, “não ficará sem receber a sua recompensa” (cf. Mt 10,42). Esta recompensa pode ser imanente (aqui em vida) ou escatológica (noutro mundo; cf. 10,30; Mt 5,46; 6,1; etc.).

E se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem, melhor seria que fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço (v. 42).

Mc não fala só de crianças (cujo abuso, por ex. a pedofilia, é realmente um escândalo lamentável). Os “pequenos que creem” são os fracos e pobres, as pessoas simples e humildes na comunidade. “Escandalizar” quer dizer “fazer cair” (“escândalo” em grego é um obstáculo no caminho, uma armadilha), ou seja, fazer desistir da fé em Jesus e do seu seguimento (cf. 4,16s). A fé de pessoas simples depende de palavras e exemplos de líderes, e Jesus ainda fala aos Doze (v. 35)! Quem ameaça a fé destas pessoas simples através do seu mau exemplo, é ameaçado de morte certa por Jesus, mesmo no condicional: “melhor seria que fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço” (cf. Lc 17,1s).

Se tua mão te leva a pecar, corta-a! É melhor entrar na Vida sem uma das mãos, do que, tendo as duas, ir para o inferno, para o fogo que nunca se apaga. Se teu pé te leva a pecar, corta-o! É melhor entrar na Vida sem um dos pés, do que, tendo os dois, ser jogado no inferno. Se teu olho te leva a pecar, arranca-o! É melhor entrar no Reino de Deus com um olho só, do que, tendo os dois, ser jogado no inferno onde o verme deles não morre, e o fogo não se apaga (vv. 43-48).

Como é tal sério fazer outros perderem a fé, há de tomar cuidado para não vacilar a própria pessoa. Aquele que crê pode cair também por conta própria, por sua natureza: seu pé, sua mão, seu olho etc. podem levá-lo a pecar. Agir contra a própria natureza parece uma automutilação, mas Jesus exige isso em vista à vida eterna: “Corta-o! É melhor entrar na Vida, do que tendo os dois, ser jogado no inferno.” “Entrar na vida” corresponde “entrar no reino de Deus” (cf. v. 47; 10,15.23s; cf. Mt 5,20 etc.), ou “herdar/ganhar a vida eterna” (10,17;  Lc 10,25; etc.).

Estas palavras são exagero de poesia oriental ou devemos levar ao pé da letra? Orígenes, um teólogo do século III, se castrou a partir dessas palavras, mas depois descobriu que ainda estava com desejos sexuais na cabeça. E se você, querido leitor, tem maus pensamentos, a sua cabeça te leva a pecar, deve cortá-la? No sermão da montanha (Mt 5,29s; cf. 18,8s), Jesus alerta do perigo da cobiça, ou seja, de sentimentos e pensamentos que podem levar ao pecado. Não se deve considerar como pecado somente o ato cometido (adultério, assassinato, …), mas devemos estar atentos a começo no pensamento na cabeça ou no sentimento nos membros do corpo. Devemos cortar os maus pensamentos, não a cabeça. Orígenes, posteriormente, desenvolveu a interpretação alegórica da Bíblia (simbólica, não ao pé da letra). 

Mesmo sem praticar essas palavras ao pé da letra, não se deve desconsiderá-las, pois Jesus fala seriamente do inferno, “onde o verme deles não morre e o fogo não se apaga” (v. 48; citando Is 66,24). Mas tudo isso não é uma inversão da “Boa Nova” (evangelho) do reino de Deus numa “Péssima Nova” da ameaça do inferno? Certamente, Jesus anunciou um Deus bondoso e misericordioso, mas isso não significa automaticamente um final feliz para todos e para cada um(a).

Deus dá livre arbítrio ao ser humano: o filho pode dizer “não” ao Pai (Mt 21,9s), o servo pode inutilizar o talento a ele confiado (Mt 25,14-30; Lc 19,11-27), os convidados podem ignorar o convite (Lc 14,15-24). Deus respeita a decisão do homem livre e não o forca para ter comunhão nem para viver eternamente com ele. Apesar da bondade divina, o ser humano pode perder seu destino. Quem não reconhece que seu futuro depende das próprias decisões, subestima o valor da sua própria vida.

Nosso pensar, agir e omitir têm consequências positivas ou negativas para nossa vida e para nosso futuro. O perigo de não reconhecer o significado da nossa conduta não está só nas pessoas simples que a sociedade ignora. Está também nos líderes, nos Doze. Justamente pelo fato de estar na frente, diante dos olhos de todos com um cargo público e eclesial, eles podem fazer cair (lit. “escandalizar”) os pequenos mais do que os outros. Nossa conduta tem importância e faz a diferença.

Pois todos hão de ser salgados pelo fogo. Coisa boa é o sal. Mas se o sal se tornar insosso, com que lhe restituireis o tempero? Tende, pois, sal em vos mesmos e vivei em paz uns com os outros (vv. 49-50).

O significado do “fogo” de v. 49 já é outro do que o de v. 48 (do inferno), aqui é comparado com o sal, “coisa boa”. “Todos hão de ser salgado com fogo”, pode significar que todos vão passar pelo juízo divino, através da palavra de Deus (cf. Mt 3,11p: Jesus “batiza com o Espírito Santo e com fogo”).

Esta palavra de Jesus (desde v. 35) pode doer à nossa natureza egoísta de querer ser sempre o primeiro e se impor aos outros desconsiderando a confiança (fé) dos pequenos. Neste sentido, a palavra de Jesus pode doer como o “fogo”, causar dor de cabeça, mas igual ao sal, purifica, conserva e dá mais sabor à vida (também o fogo do purgatório é simbólico e benéfico, pois purifica). Mas não há de relaxar, tornar o sal insosso (Mt 5,13). “Tende, pois, sal em vós mesmos e vivei em paz uns com os outros” (v. 50). Assim termina este discurso aos Doze que começou com a briga (v. 34) e termina com a paz. O sal como tempero insubstituível é símbolo de refeição, comunhão e aliança (cf. Esd 4,14; At 1,4; Lv 2,13; Nm 18,19; 2Cr 13,5).

O site da CNBB comenta: É muito comum ouvirmos que isso ou aquilo é escandaloso e, normalmente, quando isso acontece, o fato está relacionado com questões de sexualidade. O escândalo é muito mais do que isso. Dar escândalo significa ser ocasião de pecado para as outras pessoas, independentemente da natureza ou da forma do pecado. Jesus nos mostra no Evangelho de hoje a importância que devemos dar para os nossos atos, para que eles sejam testemunho da nossa adesão ao Reino de Deus e não uma negação da nossa adesão que tenha como consequência o afastamento das pessoas. Não podemos nos esquecer de que a nossa fidelidade a Jesus no nosso dia a dia é a nossa grande arma no trabalho evangelizador.

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