23 de Fevereiro de 2020, Domingo: Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda! Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto! 

7º Domingo do Tempo Comum

 1ª Leitura: Lv 19,1-2.17-18

A 1ª leitura foi escolhida porque é citada pelo o evangelho de hoje (o amor ao próximo, de Lv 19,18, mas depois a estende até o amor ao inimigo).

O texto dessa leitura é tirado de uma coleção de diversas leis e prescrições juntadas sobre o lema: “Sede santos, porque eu, o Senhor é santo” (v. 2). O livro de Levítico (Lv) trata de sacrifícios e rituais, leis da pureza e tabus, mas apresenta também normas para conduta e ética social. “Levítico” provém do nome Levi, a tribo de Israel que foi escolhida para exercer a função sacerdotal (tribo de Moisés e Aarão, primeiro sumo sacerdote, cf. Ex 2,1-10; 6,16-20; 28,1; 32,26; Nm 8,15s; Dt 33,8).

Nossa leitura faz parte da “lei da santidade” (17,1-26,46), em que partes de códigos sacerdotais pré-exílicos são relidos e ampliados no pós-exílio. O temor de Javé (19,14.32; 25,17.36.43), como reverência à santidade de Deus (19,2; 20,26; 21,8; 22,32), é entendido pelos sacerdotes como pureza cultual e étnica (cf. Ez 20,41; 36,23.38; 37,28; 39,27) e agora exigido de todo povo (cf. 11,45-45; Ex 19,6). O cap. 19 é uma releitura baseada nos 10 mandamentos, a prática do amor solidário e as demandas proféticas (vv. 9-18.32-36) são integradas e subordinadas à lei do puro e impuro.

O Senhor falou a Moisés, dizendo: “Fala a toda a comunidade dos filhos de Israel, e dize-lhes: Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (vv. 1-2).

Em Lv, só na ocasião da consagração dos sacerdotes (8,3-5) e aqui, Moisés recebe a ordem do Senhor de falar diretamente a “toda comunidade dos filhos de Israel” (v. 1). A atitude moral do povo é tal importante para sua comunhão com Deus quanto à mediação do sacerdócio.

Fundamento na ordem humana é a santidade de Deus. Um exemplo atual: O estado moderno é laico e tem dificuldade de fundamentar seus próprios princípios, por exemplo: sem Deus, em que se fundamenta a liberdade e a igualdade dos seres humanos? Baseando-se na ciência biológica da época, o nazismo declarou a superioridade da raça branca alemã e considerava os judeus como praga que deveria ser extinta. Esta visão deturpada resultou na Segunda Guerra Mundial e no extermínio (“holocausto”) de seis milhões de judeus nos campos de concentração nazistas. Mas se existe Deus que é Pai e Criador, todos os seres humanos têm a mesma dignidade de filhos e filhas e há de reinar fraternidade entre eles.

O homem em suas relações com os semelhantes se abre à transcendência última de Deus, e sua conduta responsável e social está fundamentada na santidade de Deus.

Várias prescrições (omitidas pela nossa liturgia) deste capítulo têm vínculos com o decálogo (“dez palavras”, ou seja, dez mandamentos; cf. vv. 3-4.11-13.30; Ex 20; Dt 5), defendem o pobre e o fraco (vv. 9-10.14) e exigem justiça imparcial (vv. 15s).

Não tenhas no coração ódio contra teu irmão. Repreende o teu próximo, para não te tornares culpado de pecado por causa dele. Não procures vingança, nem guardes rancor aos teus compatriotas. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor (vv. 17-18).

Aqui em v. 17, se fala do “coração” em que não deveria ter “ódio contra teu irmão”. A justiça civil ou penal não pode sancionar sentimentos como o ódio ou a cobiça, mas estes podem levar a delitos mais graves (cf. Mt 5,21-28). Deve-se repreender o próximo (cf. Ez 3,16-21; Mt 18.15-20p; Tg 5,19s), mas não por ressentimento: “Não procures vingança nem guardes rancor aos teus compatriotas” (v. 18a; cf. Mt 5,38-41; 18,21-35).

A série destes preceitos culmina no mandamento “Amarás teu próximo como a si mesmo”. Este último, Jesus declarou como o maior mandamento, combinando-o com Dt 6,4s (Mc 12,28-42p). Também para Rabi Aquibá (50-135 d.C.) este é um princípio fundamental da lei. No AT se entende por “próximo” o compatriota, o irmão na fé ou o imigrante. Só com Jesus, este amor torna-se universal (cf. Lc 10,29-37: parábola do bom samaritano).

A fórmula repetida “Eu sou o Senhor” (vv. 3.4.10.12.14.16.18) torna consciente a orientação transcendente da conduta.

2ª Leitura: 1Cor 3,16-23

No cap. 3, Paulo voltou novamente ao problema das divisões e facções na comunidade de Corinto (3,1-4; cf. 1,10-12): uns preferem Paulo, outros Apolo, outros Cefas (Pedro). Mas os pregadores são apenas servidores. Paulo exorta para mais união, fazendo comparação com a lavoura e a construção civil. “Eu plantei, Apolo regou; mas era Deus que fazia crescer… nós somos cooperadores de Deus, é vós sois a seara de Deus, o edifício de Deus” (vv. 5-9). Paulo se considera o arquiteto que lançou o fundamento, Jesus Cristo, na comunidade. Outros podem construir em cima, mas o julgamento no Dia do Senhor evidenciará o que vale a obra de cada um (vv. 10-15).

Acaso não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá, pois o santuário de Deus é santo, e vós sois esse santuário (vv. 16-17).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2209) comenta: Paulo prolonga a imagem da Igreja como construção mediante a do Templo de Deus. Se o termo “construção” evoca um canteiro de obras sempre em atividade, o de Templo insiste no caráter concluído e definitivo da comunidade em que Deus habita, não mais sob a forma duma nuvem de gloria que simboliza a sua presença, mas por seu próprio Espírito. Assim se cumprem as promessas de nova Aliança (cf. Ez 36,27).

O “santuário” dos judeus era o Templo de Jerusalém que ainda não foi destruído pelos romanos. Neste, Deus se fazia presente nos rituais, mas em Jesus a presença de Deus está mais ainda, seu corpo (eucaristia) é o novo santuário, reerguido em três dias (Mc 14,58p; 15,29p; Jo 2,19-21). Quando o templo de Jerusalém foi destruído pelos romanos em 70 d.C., os cristãos já tinham seu novo santuário. Paulo escreveu antes ainda (em 56 d.C.). A comunidade que se fundamento na fé em Jesus Cristo, é um novo santuário de Deus. Quem atua contra a comunidade, atua contra Deus (cf. At 9,4: “Saulo, Saulo, porque me persegues?”).

A Bíblia do Peregrino (p. 2742) comenta: No templo antigo residia a Glória de Deus (Ex 40,34); Salomão considera o fato maravilhoso (1Rs 8,27). O templo era uma instituição venerada e respeitada, como mostram vários episódios: Jr 7 e 26; Mt 21,12-16; Jo 2,13-22; At 21,28-40. O novo templo não é um recinto, e sim uma comunidade cristã; é consagrada, porque nele reside o Espirito (6,19; 2Cor 6,6). “Destruirá”: aplicação da lei do talião (cf. Is 33,1).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2209) comenta: Após aqueles que constroem com bons materiais que duram (v. 14) e aquelas que constroem com materiais que não resistirão à prova do fogo (v. 15), eis aqueles que, em vez de construir, destroem. Esses são sacrílegos, e serão punidos como tais. Cf. formas literárias idênticas em Mc 8,38 par.

Em 6,19, criticando a fornicação, Paulo declara que corpo do indivíduo batizado é santuário: “Não sabeis que vosso corpo é templo do Espírito Santo que está em vós e que recebestes de Deus?”

Ninguém se iluda: Se algum de vós pensa que é sábio nas coisas deste mundo, reconheça sua insensatez, para se tornar sábio de verdade; pois a sabedoria deste mundo é insensatez diante de Deus. Com efeito, está escrito: “Aquele que apanha os sábios em sua própria astúcia”, e ainda: “O Senhor conhece os pensamentos dos sábios; sabe que são vãos” (vv. 18-20).

Paulo retorna à discussão entre a sabedoria humana e a sabedoria divina (cf. 1,17-25). Outra vez nesta carta, fala da “sabedoria deste mundo” que é incapaz de reconhecer a importância dos fracos e humildes diante de Deus. Os coríntios conseguirão a sabedoria verdadeira (divina), sacrificando sua prudência simplesmente humana que é apenas “insensatez diante de Deus”.

A primeira citação é tirada do discurso de Elifaz em réplica a Jó (Jó 5,13). A segunda de um salmo que exalta Deus como juiz justiceiro (Sl 94,11 grego).

Portanto, que ninguém ponha a sua glória em homem algum. Com efeito, tudo vos pertence: Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte, o presente, o futuro, tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus (vv. 21-23).

Os vv. 21-23 devem ser compreendidos em função de 1,12, cujos termos se repetem: “Cada um de vós fala assim: ‘Eu sou de Paulo’, ‘eu de Apolo’, ‘eu de Cefas’”. Apolo era um judeu-cristão eloquente de Alexandria, instruído por Prisca e Áquila (cf. At 18,24-19,1; 1Cor 1,12; 3,22; 4,6; 16,12; Tt 3,13). “Cefas” é o nome de Pedro em aramaico (cf. 9,5; 15,5; Jo 1,42). Os coríntios erguiam estes nomes como bandeiras opostas, como se pertencessem a times rivais de futebol.

Paulo abre o horizonte espiritual dos coríntios retorcendo as palavras deles: “Eu sou de Paulo”, diziam uns; responde: Paulo e os outros são de todos. É o contrário: vós não pertenceis a esses homens, eles é que são vossos servidores. Eles, como todo o resto da criação, estão a vosso serviço para que vós mesmos estejais a serviço do Cristo e, pelo Cristo, a serviço de Deus. Todos pertencem ao único Messias (Cristo), e este ao único Deus, o Pai (cf. 15,21-28).

Não só estes nomes, mas também as polaridades da existência humana são vossas; é muito forte dizer que também a morte lhes pertence, se se pensa no contexto do AT e da filosofia. Mas não são árbitros absolutos, não são a última instância, mas pertencem a Cristo. Justamente essa pertença é que os fez superiores.

Paulo conclui o capítulo com esta visão global, chamada de cosmovisão (cf. Rm 8,38s), em que todos os reinos terrestres estão para o ser humano, o ser humano está para Jesus Cristo, e por Cristo está para Deus Pai. Esse mistério único, formado por cabeça e membros, será retomado adiante (cap. 12).

Evangelho: Mt 5,38-48

Mt apresenta Jesus no sermão da montanha como novo Moisés declarando sua nova interpretação da Lei em forma de antíteses: “Ouvistes que foi dito … eu, porém vos digo” (vv. 21-25.27-28.31-34.38-39.43-44). No evangelho de hoje ouvimos a quinta e a sexta antítese.

Ouvistes o que foi dito: “Olho por olho e dente por dente!” Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! (vv. 38-39a).

Trata-se da “lei do talião” (Ex 21,24-25; Lv 24,19-20; Dt 19,21), que já se encontra escrita no Código do rei babilônico Hamurabi (1792-1750 a.C, época dos patriarcas, Abraão e sua família). Na sua origem tentava frear os excessos de vingança e violência (cf. o grito da Lamec em Gn 4,23-24); o princípio da equivalência rege muitos textos do AT, até os Salmos em que o orante apela a Deus para que lhe faça justiça (Sl 5,1; 10,15; 31,18; 54,7; 58,7s; 59,12s; 69,23-29; 79,12; 83,10-19; 104,35; 109,6-20; 125,5; 137,7-9; 139,19-22; 140,10-12).

Como se pode frear a violência, superar a vingança ou até mesmo a “justa” punição? O freio que Cristo propõe é vencer o mal com o bem (cf. Sl 35,11-13). Jesus propõe uma atitude nova, a fim de eliminar pela raiz o círculo infernal da violência: a resistência ao inimigo não deve ser feita com as mesmas armas usadas por ele (não pagar com a mesma moeda), mas através de um comportamento pacífico e criativo.

Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda! Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto! Se alguém te forçar a andar um quilômetro, caminha dois com ele! Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pede emprestado (vv. 39b-42).

Os três casos propostos representam muitos outros na ordem do sofrer, possuir e executar. Túnica e manto são as duas peças do vestuário normal, o manto servia de penhor (cf. Ex 22,25-26; Dt 24,12-13). O paradoxo é evidente (cf. 19,24; sobre a generosidade, cf. Pr 3,27s; sobre o emprestar, cf. Eclo 29,1-13).

Os exemplos tratam do mal do qual somos pessoalmente prejudicados. Não quer dizer que você esteja indiferente e não deva interferir quando alguém bate no seu irmão, ou que um soldado não deva defender uma vítima que está sendo agredida. Jesus não proíbe que alguém se oponha dignamente aos ataques injustos (como ele mesmo se defendeu em Jo 18,22s, mas apenas verbalmente) e menos ainda que alguém combata o mal no mundo. Jesus, porém, queria provocar outra atitude diferente da vingança, da raiva (cf. vv. 21-26), do ódio (cf. 43-48), sob a lei máxima do amor (22,36-40).

Como lidar com a violência que nos atinge? Entre os primeiros cristãos, muitos ainda negavam o serviço militar num império que os perseguia. Depois, com a aliança entre Estado e Igreja, os cristãos foram convidados a participar da política, das leis, da justiça e do exército e não podiam mais renunciar da justiça e do exercício da força em todos os casos. S. Agostinho desenvolveu critérios para participar de uma guerra “justa” a respeito dos fins e dos meios (p. ex. é lícito combater um genocídio, mas punir sem ódio). A guerra do Iraque, porém, não foi justa (inventou-se a mentira de uma ameaça por armas químicas para invadir este país rico em petróleo); os americanos falavam de uma “cruzada contra o eixo do mal”, mas torturaram e sequestraram suspeitos, sem processo jurídico, para uma prisão em Guantânamo (parte de Cuba administrada pelos EUA).

Desde a Idade Média, as guerras entre católicos e protestantes até as duas guerras mundiais, representantes das Igrejas (de ambos os lados) abençoavam as armas contra inimigos muitas vezes também cristãos e também “abençoados”. A provocação de Jesus mostra o contraste entre o mundo e o reino de Deus e nos inspira a pensarmos numa outra solução que não seja violência e retribuição com a mesma moeda. Um exemplo possível foi Mahatma Gandhi que conseguiu a independência da Índia sem guerrilha, sem atentados, renunciando à violência em todas as manifestações. Gandhi não era cristão (era hindu jaina), mas conheceu o sermão da montanha de Jesus.

O site da CNBB comenta: Os critérios humanos não são suficientes para resolver os problemas da própria humanidade, principalmente os que estão relacionados com a justiça, pois a justiça dos homens não tem como centro a pessoa humana, mas sim o que elas têm ou deixam de possuir. Os bens são comparáveis entre si, mas as pessoas não, pois cada uma é um ser único, incomparável na sua dignidade. Além disso, os elementos que estão presentes em um relacionamento são por demais complexos para serem abrangidos na sua totalidade a partir de categorias do conhecimento humano, uma vez que a própria razão é insuficiente para a compreensão do ser humano. Jesus nos mostra que somente o amor e a misericórdia possibilitam superar essas deficiências e construir um relacionamento justo e fraterno.

Vós ouvistes o que foi dito: “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!” Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem! (vv. 43-44).

Na sexta antítese aparece a palavra chave da interpretação de Jesus: “amar” (cf. 22,34-40p). Embora no Antigo Testamento (AT) a relação de Deus com seus inimigos e como os inimigos do povo de Deus fosse apresentada de maneira dura e direta, sobre o ódio ao inimigo não conhecemos nenhum texto explícito do AT, somente pode se comparar de longe Sl 139,22: “Odeio, Senhor, os que te odeiam”, ou Pr 29,27: “O criminoso é detestado pelos justos” (cf. Sl 119,113-115; Dt 23,6; 25,19). O aramaico, a língua de Jesus, era pobre em matizes e esta expressão pode equivale a “Tu não tens obrigação de amar teu inimigo” (cf. Lc 14,26; Mt 10,37). Em Eclo 12,4-7 e nos escritos contemporâneos de Qumrã (1 QS 1,10 etc.) encontra-se entretanto, uma aversão tal aos pecadores que ela não está longe do ódio, e é nisso que Jesus podia estar pensando, além das divisões que a lei judaica admitia: próximo e não-próximo (inimigo), judeus e pagãos, santo e pecador, puro e impuro, justo e ímpio etc.

A conduta certa, ou seja, a “justiça” dos cristãos deve ser maior do que aquela dos fariseus e doutores da lei (cf. 5,20). O amor dos cristãos deve ter um alcance maior, então não é suficiente “amarás o teu próximo” (em Lv 19,18 é o compatriota; em Lc 10,25-37, Jesus amplia o termo aos samaritanos, rivais tradicionais dos judeus). Os discípulos de Jesus devem amar mais, até os inimigos, e rogar por eles (cf. Lc 6,35; 23,34).

Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos (v. 45).

Jesus quer superar todas as divisões, inspirando-se na fonte da Lei, o Pai. Algo radicalmente novo pode vir de uma fonte tão profunda. Os cristãos são filhos adotivos de Deus pelo batismo (cf. Rm 8,15), mas se tornarão filhos de verdade, quando imitarem o amor do “Pai que está nos céus” (cf. 6,9), “porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (v. 45). O mal que os inimigos nos fazem, não nos deve afetar moralmente de modo que deixemos de fazer o bem (“brilhar como o sol”, cf. Mt 5,16; 13,45) e paguemos o mal com o mal (cf. 5,38-42 e a lei de talião Ex 21,23-25; Lv 24,20; Dt 19,15), tornando-nos como eles.

O preceito de Jesus retoma sugestões do AT (cf. Ex 23,4-5; Lv 19,17-18; Pr 25,21 citado por Rm 12,20) e as faz culminar na intenção e no motivo: nada menos que a imitação de Deus Pai. Enfaticamente diz “seu sol”, porque Deus controla suas criaturas em favor dos homens, sem distinção e o sol é fonte de bens, luz e calor. Jesus, como é da mesma natureza do Pai (consubstancialis), pôde viver tudo isso. Não discriminou ninguém por razão de raça, de sexo, de religião e de classe social. “Deus é amor” (1Jo 4,8.16). Deus não tem inimigos, tem filhos e filhas. Os filhos e filhas de Deus são meus irmãos e minhas irmãs. No amor e no perdão é que nós podemos manifestar o amor divino. Todo o amor vem de Deus, quem ama permanece em Deus e Deus nele (1Jo 4,12.16).

Porque, se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os cobradores de impostos não fazem a mesma coisa? E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa? (vv. 46-47).

Amar somente aqueles que nos amam, não é nada especial, até os fariseus fazem isto, também pagãos e os pecadores. Os “cobradores de impostos” eram considerados pecadores públicos, porque exerciam sua profissão com rapinagem, colaborando com o Império Romano. Por isso eram voltados ao desprezo público (cf. 9,10-11; 11,18; 18,17; Lc 19,8) como os “pagãos” (“gentios”, os não-judeus).

O termo “recompensa” (às vezes traduzido por “salário”) é frequente em Mt (cf. 5,12.46; 6,1.2.5.16 e 10,41-42; 20,8 no sentido de salário). Ao contrário da recompensa dos homens, a recompensa de Deus é soberana e só deriva de sua bondade (cf. 20,15).

Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito (v. 48).

Esta conclusão é a chave para se compreender todo o conjunto formado por 5,17-47: os discípulos são convidados a um comportamento diferente que os torne filhos testemunhando a justiça do Pai, uma “justiça maior do que a dos fariseus e doutores da lei” (v. 20). Lv 19,2 e outros textos convidam a imitar a “santidade” de Deus. Jesus, em Mt, fala da “perfeição” (19,21; cf. Gn 17,1; Dt 18,13; Eclo 44,17) e a centraliza no amor.

A centralidade do amor aos inimigos se vê também no sermão da planície de Lc, numa sequência diferente: logo após as bem-aventuranças (a última falava de ódio e perseguição; Lc 6,20-26), Jesus fala do amor aos inimigos (Lc 6,27). Em vez da perfeição, Lc 6,36 fala da “misericórdia” do Pai a ser imitada. Mt e Lc copiaram de uma fonte mais antiga, porém perdida na história, mas reconstruída e chamada pelos peritos de “Q” (uma coleção catequética de palavras e parábolas de Jesus). Mt reorganizou este material e o enriqueceu na forma das seis antíteses que culminam no amor aos inimigos (vv. 21-48).

Outras religiões como o budismo e o taoísmo também tem afirmações semelhantes como mansidão, não-violência e respeito para com todas as criaturas. A interpretação judaica já descrevia comportamento moderado para com o inimigo, mas nunca usou a palavra “amor”.  Para os cristãos, amor (“agape”) não é tanto um sentimento, mas uma ação concreta (cf. Lc 10,25-37). Na filosofia greco-romana havia o conceito da “filantropia”, uma benevolência geral que incluía também os antipáticos, por causa da mesma descendência divina e harmonia no cosmos (cf. At 17,26.28). Mas Jesus fala dos inimigos com toda sua maldade (cf. Lc 6,27-28: “Fazei bem dos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam”). Sua exigência extrema não corresponde à harmonia do cosmos, mas à vontade de Deus na chegada do seu reino, principalmente ao seu amor e sua misericórdia para com os pecadores, excluídos e discriminados.

No NT da Bíblia, nem sempre se percebe este amor aos inimigos (cf. umas cartas de Paulo; Mt 23; 2Pd 2,12-22), e na história da Igreja, o amor aos inimigos tornou-se se agressividade quando este inimigo não queria converter-se: cruzadas, guerras religiosas, inquisição, conversões forçadas, antijudaísmo. A psicologia e a história questionam esta exigência extrema de Jesus, mas ele está provocando através de um contraste entre a natureza do homem e seu mundo fechado e a perspectiva aberta do reino de Deus. No meio da luta pela sobrevivência ou pela justiça social, as ações de amor ao inimigo são sinais do reino e do amor incondicional de Deus em que o ser humano é aceito como imagem e filho de Deus. Os que amam os inimigos são amigos de Deus e seus filhos, como aqueles bem-aventurados que promovem a paz (v. 9).

Esse amor é exigente demais para nos seres humanos? Mas é o amor divino que é perfeito. Se quisermos ser “perfeitos”, se quisermos ser filhos e filhas de Deus, irmãos, irmãs, discípulos e discípulas do divino mestre (cf. 12,49-50p; 23,8-10), devemos tentar amar os inimigos. A história de muitas pessoas santas mostra que é possível (cf. At 7,60; Rm 12,14.17.20-21). Esta exigência do amor é certamente do próprio Jesus. Menos exigentes, os escritos posteriores de João falam “amai-vos aos outros” ou “os irmãos” (Jo 13,34; 15,12.17; 1Jo 2,7-11; 4,7-21), por causa do perigo de cisma na comunidade.

Em forma de piada, poderíamos reconstruir este caminho do mandamento do amor na história da redação nos evangelhos: Primeiramente Jesus falou: “Amai os vossos inimigos” (segundo a fonte de palavras Q escrita cerca de 50 d.C. e preservada em Mt 5,44; Lc 6,35). Os discípulos ficaram abismados e disseram “Isto é difícil demais. O Senhor é mestre e um mestre tem que ser facilitador; favor, facilite isso para nós.” Então Jesus falou: “Tudo bem. Amai o próximo como a si mesmo” (Mc 12,31, escrito em 70 d.C.). Os discípulos ficaram mais conformados, mas começaram discutir entre si: “Então, quem é o meu próximo?” (Lc 10,29, escrito em 80 d.C.). Seria demais amar um pagão ou ajudar um rival samaritano, uma pessoa odiada por ser de outra religião e etnia (cf. Lc 10,30-36; 9,52-55; 2Rs 17), de outra classe social ou outro time de futebol. Pediram: “A gente não chega a um consenso. Não dá para simplificar mais um pouco, Senhor?” Então o bom Jesus suspirou, disse: “Pelo menos, amai-vos uns aos outros” (Jo 13,34; 15,12.17, escrito em 95 d.C.) e se foi.

O site da CNBB comenta: Um dos valores mais determinantes da nossa vida é a justiça, mas na maioria das vezes deixamos de lado a justiça de Deus para viver a justiça dos homens, fundamentada na troca de valores e não na gratuidade de quem de fato ama. Quem ama verdadeiramente reconhece que Deus é amor e tudo o que somos e temos vem dele, como prova desse amor gratuito. Assim, as nossas atitudes não podem ser determinadas pelas diferentes formas de comportamento das pessoas que nos rodeiam, mas pelo amor gratuito de Deus que deve fazer com que sejamos capazes de superar toda forma de vingança em nome da justiça e procurar dar a nossa contribuição para que o mundo seja cada vez melhor.

 

 

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