23 de janeiro de 2018 – Terça-feira, 3ª semana

Leitura: 2Sm 6,12b-15.17-19

Davi acabou de conquistar a cidade de Jerusalém e fez dela a nova capital (2Sm 5; leitura de ontem). Para que Jerusalém tenha plena força de unificação, tem de ser também centro religioso das tribos de Israel. Saul descuidou desse aspecto.

Depois da vitória definitiva sobre os filisteus (5,17-25), Davi decide transladar a arca para sua nova capital e concentrar aí os principais sacerdotes. Por ser protagonista da narração, a arca é mencionada catorze vezes no cap. 6, sete vezes como “arca de Deus”, sete vezes com “arca do Senhor”.

A arca é o objeto religioso por excelência, paládio na guerra (cf. Jz 6; 1Sm 4) e testemunho da aliança, cujo documento (as tábuas da lei, os dez mandamentos) guarda (Ex 25,10-22). A arca da aliança esteve em Silo no tempo do sacerdote Eli (1Sm 1-3), foi capturada pelos filisteus (1Sm 4), e quando a devolveram, passou a Vila Moitas (Cariat-Iarim; 1Sm 7,1). Por seu turno, a família sacerdotal dos élidas (descendentes de Eli; cf. 1Sm 1-4) se estabeleceu em Nob, dissociada da arca (1Sm 21,2-10; 22,6-23).

O Sl 132,6 diz que a arca se encontrava “nos Campos de Jaar” (que parece ser Vila Moitas); Baalá (v. 2) é outro nome da mesma localidade (cf. Js 15,9-11.60; 18,14; 1Cr 13,6).

Davi pôs-se a caminho e transportou festivamente a arca de Deus da casa de Obed-Edom para a cidade de Davi (v. 12b).

Davi se dirigiu primeiramente a Baala, onde a arca estava na casa de Abinadab (v. 3). Davi quis fazer da trasladação um acontecimento nacional, uma ocasião para robustecer a consciência de unidade religiosa, cujo centro doravante será Jerusalém.

Assim a arca deixa de ser sinal da presença de Deus no meio das tribos e passa a legitimar a monarquia de Davi. O santuário popular de Silo (do tempo de Eli) é substituído pela cidade-estado de Jerusalém. A nova Bíblia Pastoral (p. 343) comenta: O conceito de um Deus tão próximo ao povo, dentro da casa de Abinadab (v. 3), passa a ser o temível Javé dos exércitos 9v. 2), que ninguém pode tocar, sob pens de morte 9v. 7), e que infunde medo até ao rei (v. 9). Essa teologia ganha força no pós-exílio (cf. Ex 25,10-16; Nm 4,5-20).

Por causa de um acidente no caminho que resultou na morte de um homem, Davi teve medo de transportar a arca para cidade e a deixou na casa de Obed-Edom (vv. 3-11). Mas quando ouviu que o Senhor havia abençoado Obed e sua casa, Davi criou coragem de trazer a arca para sua capital numa procissão alegre e festiva.

A cada seis passos que davam, os que transportavam a arca do Senhor, sacrificavam um boi e um carneiro. Davi, cingido apenas com um efod de linho, dançava com todas as suas forças diante do Senhor (vv. 13-14).

Dançar diante da arca é para o narrador o mesmo que dançar “diante do Senhor” (cf. vv. 5.16). Davi, que acaba de sacrificar e que vai abençoar (v. 18) endossa uma vestimenta sacerdotal: “efod de linho” (cf. 1Sm 2,18; 22,18), uma tanga (cf. Ex 20,26) que se distingue do colete que continha objetos divinatórios (1Sm 2,28) e fazia parte das alfaias do sumo sacerdote (cf. Ex 28,6-14).

Davi e toda a casa de Israel conduziram a arca do Senhor, soltando gritos de júbilo e tocando trombetas (v. 15).

A “casa de Israel” significa o povo todo. Casa na Bíblia significa também as pessoas que moram numa casa, assim é metáfora por família (cf. 2Sm 7 leitura de amanhã; Gn 16,2; At 10,2; 11,14; 16,15.31s; 18,8; 1Cor 1,16). A “casa de Israel” é o povo que descende do patriarca Jacó (neto de Abraão) que recebeu o apelido Israel (Gn 32,29), equivale à “casa de Jacó” (Lc 1,33). As doze tribos de Israel descendem dos doze filhos de Jacó (cf. Gn 35,22b-26).

Introduziram a arca do Senhor e depuseram-na em seu lugar, no centro da tenda que Davi tinha armado para ela (v. 17a).

A própria tenda armada por Davi indica que a tenda do deserto do tempo de Moisés não é conservada (cf. Ex 26; 33,7-11; Nm 11,24.26; 12,5.10; Dt 31,14s; Js 18,1; 19,51). A arca já teve uma casa própria em Silo (1Sm 1,7.9) e casa emprestada em outros povoados.

Em seguida, ele ofereceu holocaustos e sacrifícios pacíficos na presença do Senhor. Assim que terminou de oferecer os holocaustos e os sacrifícios pacíficos, Davi abençoou o povo em nome do Senhor Todo-poderoso (vv. 17b-18).

Davi oficia como sacerdote vestido com o efod de linho (v. 14), oferecendo sacrifícios e ainda abençoando o povo (cf. Lv 9,22; Nm 6,22-27) como depois Salomão fará solenemente em 1Rs 8,14-55).

O rei oferece os “holocaustos” (cf. 24,25; 1Rs 3,4.15; 8,63s; 9,25; 2Rs 16,12s). Trata-se de um antiga prerrogativa contra a qual 1Sm 13,7b-15a parece opor-se; 2Cr 26,16-20 reserva ao sacerdote a oferenda do incenso e a recusa ao rei. Em Gn 14,17-20, Melquisedec, o “rei de Salém e sacerdote de Deus Altíssimo” abençoa Abraão e recebe dele o dízimo (cf. 1Sm 8,15.17), e é apresentado pelo Sl 110,4 como figura de Davi que por sua vez prefigura o messias, rei e sacerdote.

Na Antiguidade, os reis costumavam se atribuir ou intrometer em funções sacerdotais (por ex. os faraós no Egito, César Augusto em Roma, etc.). Ainda a Idade Média é marcada pelas intervenções de reis e imperadores nos assuntos da Igreja. Só na Idade Moderna começa a independência das duas esferas política e religiosa até a separação de Estado e Igreja (cf. Mc 12,17).

O “Senhor Todo-poderoso” traduz o hebraico Yhwh (Javé) Sebaot, lit. o “Senhor dos Exércitos”, dos exércitos de Israel ou dos exércitos celestes, astros, anjos, ou de todas as forças cósmicas (cf. Gn 2,1; Is 6,3 em nossa liturgia traduzida por “Senhor do universo”). O título aparece pela primeira vez em 1Sm 1,3.11; 4,4 e está ligada ao culto da arca da aliança em Silo. Esse título permanece ligado ao ritual da Arca e entra com ela em Jerusalém (no tempo de Davi: 2Sm 6,2.18; 7,8.27). É retomado pelos grandes profetas (salvo Ezequiel; cf. Is 25,6 etc.), pelos profetas pós-exílicos (principalmente Zacarias) e nos Salmos.

E distribuiu a toda a multidão de Israel, a cada um dos homens e das mulheres, um pão de forno, um bolo de tâmaras e uma torta de uvas. Depois todo o povo foi para casa (v. 19).

Jerusalém, recebendo a Arca onde Javé Deus se torna presente (Ex 25,8-22; Dt 4,7), tornou-se agora capital religiosa e não mais somente política de Israel, agora é a “cidade santa”.

Nossa liturgia omitiu a continuação da leitura como Micol, filha de Saul e esposa de Davi, desgostou da dança entusiasmada do seu marido. Por isso Micol não teve filhos (vv. 16.20-23). Um filho de Davi, nascido da filha de Saul, teria sido o herdeiro ideal do reino unido. Quem será rei depois de Davi (cf. as leituras dos próximos dias)?

A Nova Bíblia Pastoral (p.343) comenta: Davi unifica em sua pessoa o poder político e religiosos. O traslado é autêntico ato litúrgico. O rei vira sacerdote e vice-versa. A atitude de Davi dançando nu (cf. Gn 9,20-27; Ex 20,26; 1Sm 19,22-24), própria dos ritos de cidades-estado, é desaprovada por Micol, filha de Saul 9vv. 16.e 20). O motivo da discórdia está na resposta de Davi: Javé em preferiu a seu pai e a toda casa dele” (v. 21). A arca em Jerusalém significa o fim da descendência de Saul, pois javé dos exércitos fecha o útero de Micol (v. 23; cf. Gn 20,17-18). A arca e Micol tem o mesmo fim.

Evangelho: Mc 3,31-35

O evangelho de Mc não narra os acontecimentos da infância de Jesus. Ouvimos da família dele só em v. 21, aqui em 3,31-35 e em 6,1-6. No evangelho de Mc, ninguém compreende Jesus, nem os adversários, nem o povo, nem os discípulos, nem os próprios familiares (cf. v. 21; 4,13; 6,1-6; 8,32; 9,32 etc.; 15,35).

Chegaram a mãe de Jesus e seus irmãos. Eles ficaram do lado de fora e mandaram chamá-lo. Havia uma multidão sentada ao redor dele. Então lhe disseram: “Tua mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura” (vv. 31-32).

Jesus está no interior da casa (provavelmente a de Simão Pedro, cf. 1,19; 2,1; 3,20), “uma multidão sentada ao redor dele”. Por “fora” deste círculo, os familiares procuram Jesus, são “a mãe de Jesus e seus irmãos”. O termo “irmão” abrange, em linguagem bíblica, também os parentes (cf. Gn 13,8: tio e sobrinho). Não se menciona o pai (cf. 6,3). Então, José já deve ter morrido (Mc nunca o menciona) e Jesus adulto tornou-se chefe desta família que quer agora romper o círculo dos seguidores e reclamar seu parente famoso (cf. 3,20s).

Ele respondeu: “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?” E olhando para os que estavam sentados ao seu redor, disse: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (vv. 33-35).

Jesus não despreza vínculos familiares, por isso, ele tem um “Pai” no céu (Lc 2,41-52; Mc 14,36; Mt 6,9p) e chamou duas vezes dois irmãos como seguidores (1,16-20). Mas ele está criando agora uma nova família, uma geração não através da carne, mas através do Espírito (cf. Jo 1,12-13; Rm 8,14-17). “Quem faz a vontade de Deus” (cf. 14,36p; “do Pai”, cf. Mt 6,10b; 7,21; 12,50) fará parte desta nova família de Jesus. Quanto à Maria, ninguém como ela cumpriu a vontade do Pai e foi agraciada com o Espírito (cf. Lc 1,35-38).

O site do CNBB resume: Somos convidados pelo evangelho de hoje a descobrir a verdadeira família à qual nós pertencemos: a família dos filhos e filhas de Deus, que procura conhecer e pôr em prática a vontade do Pai e participar do seu projeto de construção do mundo novo, da civilização do amor, sinal do Reino definitivo. Participar dessa verdadeira família não significa negar a nossa família terrena, nem os nossos relacionamentos sociais e afetivos, mas subordinar essas duas realidades à realidade maior, que é a família dos filhos e filhas de Deus, fazendo, assim, com que haja uma verdadeira hierarquia de valores na nossa vida, que subordina o temporal ao eterno.

 

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