23 de Janeiro de 2021, Sábado: Jesus voltou para casa com os discípulos. E de novo se reuniu tanta gente que eles nem sequer podiam comer (v. 20).

2ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Hb 9,2-3.11-14

Na parte central da sua exposição (cf. 8,1), o autor anônimo de Hb opôs à antiga aliança, imperfeita e provisória a nova aliança em Cristo (8,6-13, leitura de ontem), na leitura de hoje opôs às antigas instituições (o culto pelos sacerdotes no templo de Jerusalém) a nova instituição do sacrifício oferecido por Cristo.

Foi construída uma primeira tenda, chamada o Santo, onde se encontravam o candelabro, a mesa e os pães da proposição. Atrás da segunda cortina, havia outra tenda, chamada o Santo dos Santos (vv. 2-3).

A descrição funda-se na lei de Moisés (Ex 25-26; 36-37; 40), não se interessa pelo templo construído (por Salomão, 1Rs 6-8; reconstruído e após o exílio), mas usa a palavra “tenda” para o santuário seguindo a ficção do Êxodo, que projeta a disposição do templo de Jerusalém sobre um acampamento de nômades. Mesmo em tempos posteriores, podia-se chamar o templo de Jerusalém de “tenda” (p. ex. Sl 15,1; 27,5; 61,5). Pela mesma razão, fala de duas tendas sucessivas, que correspondem ao átrio e ao camarim.

O autor salienta a distinção entre a primeira e a segunda parte do lugar do culto (cf. Ex 26,33). A esta distinção corresponde a seguir a distinção entre “tenda” (Santo) e “santuário” (Santo dos Santos; Santíssimo). A tenda é a via de acesso; o santuário ou câmara sagrada é o objetivo a ser alcançado (cf. 9,11-12). Já a “primeira tenda” não é acessível ao povo, é acessível aos sacerdotes e serve de passagem ao sumo sacerdote para ter acesso ao camarim, “outra (segunda) tenda” ou “santíssimo”, com graves limitações.

Nossa liturgia imitiu os vv. 4-10 que descrevem o culto no interior do santíssimo: “atrás da segunda cortina” se encontrava o incensório (altar?) e a arca da aliança que estava coberta o propiciatório com imagens de dois anjos (querubins que sinalizam a presença de Deus) e continha as tábuas da lei (decálogo, os dez mandamentos), a vara de Aarão e o vaso com o maná. “Só o sumo sacerdote entra” nesse interior (segunda tenda) e só um dia por ano (no Dia do perdão ou da “expiação,” Yom kippur, Lv 16), e tem de repeti-lo a cada ano, “oferecer sangue por seus pecados e pelos do povo” (v. 7).

A tenda, mais que um acesso evidente, era uma barreira. “O Espirito Santo quis mostrar que o caminho do santuário não está aberto, enquanto existir a primeira tenda” (v. 8). Na antiga aliança, o povo não tem acesso a Deus e o sumo sacerdote não entrou na morada de Deus, apenas numa construção humana, material (cf. 9,1.24; mas Deus não habita em construções humanas; cf. At 7,48; 17,24). Na nova aliança, porém, Cristo será o caminho para ir ao Pai (Jo 14,6; cf. Hb 10,19). Na hora da sua morte de Jesus, a “cortina” que separava o Santo e o Santo dos Santos (Ex 26,33) rasgou dando acesso ao santíssimo (Mc 15,39p).

É discutido na exegese atual, se na época da redação de Hb (cerca de 90 d.C.) ainda havia o culto no Templo de Jerusalém com sacerdotes atuando. A datação de Hb (antes de 70 ou perto de 90 d.C.) depende desta resposta, porque o Templo foi destruído pelos romanos em 70 d.C. e nunca mais reconstruído (um santuário muçulmano está no lugar hoje). Em 10,1-3.11, o autor de Hb descreve a liturgia do templo como atual, mas em 9,10 afirma que ela estava destinada a desparecer (em 9,4s fala da arca da aliança que já havia sumida na primeira destruição do templo em 587 a.C. pelo babilônios, cf. Jr 3,16; 2Rs 25,8-15).

Cristo, porém, veio como sumo sacerdote dos bens futuros. Através de uma tenda maior e mais perfeita, que não é obra de mãos humanas, isto é, que não faz parte desta criação, e não com o sangue de bodes e bezerros, mas com o seu próprio sangue, ele entrou no Santuário uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna (vv. 11-12).

Ao culto antigo dos sacerdotes levitas no templo contrapõe-se o sacerdócio de Cristo que é o “sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec” (cf. 2,17; 3,1; 4,14-5,10; 6,19-28; Sl 110,4) e dos “bens futuros” (cf. 10,1). Alguns manuscritos trazem outro texto: “dos bens já chegados (realizados) ”. Em ambos os casos, trata-se das realidades definitivas, realidades “do mundo que há de vir” (6,5), cujo acesso, doravante, está aberto aos crentes graças ao sacrifício de Cristo.

Cristo realizou o que nenhum sumo sacerdote havia podido realizar, “ele entrou no Santuário uma vez por todas”, através de dois meios paralelos ao antigo culto: uma via de acesso e uma oferenda sacrifical. A via de acesso é “uma tenda maior” que substitui a primeira tenda criticada em v. 8; e a oferenda sacrifical consiste no “próprio sangue” de Cristo que substitui o “sangue de bodes e bezerros”, isto é os sacrifícios criticados em v. 9.

O que significa está “tenda maior e mais perfeita, que não é obra de mãos humanas, isto é, que não faz parte desta criação” (cf. 8,2; 9,24)? Alguns estudiosos pensam que a tenda designaria os céus que Cristo atravessou (cf. 4,14), o “Santo” da Tenda celeste (v. 11), e chegou à presença de Deus no “Santo dos Santos” (santuário, v. 12). Mas isso não coaduna com o que foi dito em v. 8: a via de acesso não estava aberta na época da primeira tenda. O autor parece ter em vista o mistério do corpo de Cristo ressuscitado, templo não feito por mão de homem e nova criação (cf. 10,20; Mc 14,58p; Jo 2,19-21; 2Cor 5,1.17). P

Albert Vanhoye (p. 74) comenta: Por meio da sua morte e ressurreição, Jesus constituiu um novo Templo, não material, mas espiritual que permite aos crentes entrar em contato com Deus…. Para entrar na glória da Pai, o próprio Jesus, enquanto homem, precisou da transformação da sua humanidade. Essa transformação se efetuou na Paixão. E é por meio de sua humanidade transformada que Cristo se colocou em contato com Deus…. Entretanto, a “tenda maior e mais perfeita” evidentemente, não constitui meio e acesso reservado para o uso exclusivo de Cristo. Ao contrário, ela foi constituída para nós. Todos nós somos convidados a entrar nela para encontrar união com Deus (cf. 10.19-22). Mas foi Cristo quem estabeleceu essa tenda (cf. 3,3) e também foi ele quem inaugurou esse caminho (10,20).

O “Santuário” (ou Santíssimo, segundo outra leitura) é a morada de Deus no céu, onde Cristo entrou “uma vez por todas” para uma “redenção eterna”. Esta libertação definitiva opõe-se às libertações temporárias, sucedidas no decurso da história de Israel (cf. Ex 6,6-7; Jz 2,16-23).

De fato, se o sangue de bodes e touros, e a cinza de novilhas espalhada sobre os seres impuros os santifica e realiza a pureza ritual dos corpos, quanto mais o Sangue de Cristo, purificará a nossa consciência das obras mortas, para servirmos ao Deus vivo, pois, em virtude do espírito eterno, Cristo se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem mancha (vv. 13-14).

Em 5,7 o autor descreveu a oferenda de Cristo dizendo que ele “apresentou pedidos e súplicas…”, agora diz que “se ofereceu a si mesmo a Deus”. Em sua prece suplicante abriu todo seu ser de homem à ação transformadora de Deus e foi “levado à perfeição” (5,8).

Nós costumamos conceber uma oferenda como meio de agradar a Deus e atrair suas boas graças. De alguma forma, procuramos fazer com que Deus mude sua atitude para conosco. Mas o autor de Hb mostra que o efeito do sacrifício deve ser muito mais transformar aquele que oferece do que aquele a quem é oferecido. Os sacrifícios antigos eram insuficientes, “sem eficácia para aperfeiçoar a consciência de quem presta o culto” (9,9). Não passaram de “ritos humanos” (9,9: lit.: ritos de carne) para “pureza ritual dos corpos” (lit. para a pureza da carne, pureza ritual exigida para participar no culto antigo.

O sacrifício de Cristo não é menos real que os sacrifícios antigos: o sangue foi derramado. Mas é incomparável superior, por ser um compromisso pessoal, de uma pessoa isenta de pecado, e que o Espírito Santo anima. Daí provém sua eficácia para a purificação dos pecados e para união dos homens com Deus (sua mediação sacerdotal): “purificará a nossa consciência das obras mortas (cf. 6,1) para servirmos ao Deus vivo”.

A “vítima sem mancha” (v. 14; cf. o cordeiro pascal em Ex 12,5) é Cristo com seu “próprio sangue” (v. 12; cf. Mt 26,28p), sua oferenda sacrifical. Por meio desta oferenda a humanidade de Cristo se transformou e se tornou “perfeita” (cf. 7,28; 5,9; 2,10).

Albert Vanhoye (p. 76) comenta: Passa-se de um culto ritual, exterior, separado da vida, a uma oferenda pessoal, total, que se realiza nos dramáticos acontecimentos da própria existência. Necessário no caso dos sacerdotes judeus, a distinção entre o sacerdote e a vítima é abolida na oferenda de Cristo, que foi ao mesmo tempo sacerdote e vítima, pois se ofereceu a si mesmo. E como é que isso foi possível?… Cristo pôde se oferecer a si mesmo porque era digno de ser oferecido, pois não tinha “mancha” e porque era capaz de se oferecer, “por um espírito eterno”. Diferentemente dos antigos sacerdotes, Jesus era absolutamente isento de qualquer pedado e de qualquer cumplicidade com o mal (cf. 4,15): ele era “santo, inocente, imaculado” (7,26). Assim, podia se apresentar a Deus sem se arriscar de desagradá-lo. Ademais, o Espirito Santo de que estava tomado (Lc 4,1) o tornava capaz de generosidade total…

“Em virtude do espírito eterno,…” (var.: “pelo Espírito Santo” (cf. Rm 1,4). Na oferenda de Cristo, o Espírito assume o papel que era atribuído ao “fogo do céu” que transforma e consagra (cf. Lv 9,24; 1Rs 18,38; 2Cr 7,1; 2Mc 1,22; 2,1).

O Corpo de Cristo é um corpo espiritual, o local de um Pentecostes perpétuo. Em Cristo, a Igreja é a Igreja do Espírito Santo. A celebração eucarística, que constitui a Igreja, está inteiramente estruturada com base na epiclese, essa súplica que o sacerdote – e com ele o povo –  dirige a Deus para que ele envie o seu Espírito Santo “sobre nós e sobre estes dons”, isto é, o pão e o vinho. E a primeira e original epiclese é a do Senhor ressuscitado “elevando-se” à direita do Pai e intercedendo junto a ele… para que envie o sopro e o fogo de Pentecostes à Igreja expectante. Na medida em que a comunhão eucarística nos integra ao Corpo de Cristo, nós entramos no lugar – o único sem obstáculos – em que a “vida na morte” se transforme em “vida no Espírito” (O. Clement, La Douloreuse Joie, pp. 5-6).

A Bíblia de Jerusalém (p. 245) comenta o rito antigo com “a cinza da novilha” em Nm 19,2-10: …água lustral (vv. 17-22), preparada com as cinzas de uma novilha vermelha imolada e queimada fora do acampamento (vv. 1-10), serve para apagar a impureza contraída no contato com um morto (vv. 11-16). Este ritual, ao qual somente um outro texto faz referência (Nm 31,23, além de Hb 9,13), legitima uma antiga prática colorida de magia, assimilando-o a um sacrifício de expiação pelo pecado (v. 17 e comp. Com Lv 16,27; v. 8 com Lv 16,28).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1475) resume: O sangue de animais dava a possibilidade às pessoas de participarem do culto, o que não se dirá do sangue de Jesus! De uma vez por todas, ele possibilitará à comunidade servir a Deus de forma mais adequada, pois está mais próxima dele do que estavam os sumos sacerdotes ao entrarem no santuário apenas uma vez por ano. O autor não entende a morte de Jesus em termos fatalistas, mas por solidariedade, e associa essa morte com a festa israelita do perdão apresentada em Lv 16. 

 

Evangelho: Mc 3,20-21

O evangelho de hoje apresenta a incompreensão dos familiares e faz parte de uma composição que os exegetas chamam de “sanduiche”, isto é, uma parte no meio de duas partes correspondentes em cima e em baixo, ou seja, antes e depois. Encontramos esta forma de composição também em Mc 5,21-43, 6,7-33; 11,11-21; 14,1-11.

Aqui, Mc intercala uma discussão com os escribas vindos de Jerusalém, vv. 20-30, numa cena em que Jesus se defronta com sua família, vv. 20-21 e 31-35. “Os parentes de Jesus saíram” (v. 21), e só “chegaram” (v. 31) depois da acusação dos escribas de Jerusalém (vv. 22-30)..

Jesus voltou para casa com os discípulos. E de novo se reuniu tanta gente que eles nem sequer podiam comer (v. 20).

Depois de cinco controvérsias com os fariseus (2,1-3,6), Jesus continuou seu caminho de cura libertação. O povo continuava o seguindo e ele escolheu os doze apóstolos (3,7-19). Estes vão “ficar com ele” (3,14), seus discípulos constituirão sua nova família (vv. 31-35). Depois da escolha dos doze numa montanha, “voltou para casa”.

Deve-se tratar da “casa de Simão” (1,29) em Cafarnaum onde Jesus estava, de certa maneira “em casa” (cf. 2,1; é o sentido da expressão em 1Cor 11,34; 14,35), a mesma casa de 3,31, onde seus familiares ficavam do lado de fora. Mc gosta de anotar a multidão em redor de Jesus, “tanta gente que eles nem sequer podiam comer” (cf. 6,31). Outras casas em 2,15 (Levi); 7,17 (no exterior); 9,28 (fora de Cafarnaum).

Quando souberam disso, os parentes de Jesus saíram para agarrá-lo, porque diziam que estava fora de si (v. 21).

As dificuldades de Jesus em levar adiante sua ação vêm agora de sua própria família: ela não compreende que ele tenha ido tão longe nos enfrentamentos na radicalidade de sua proposta.

O texto original em grego fala apenas dos “seus”, podem ser conterrâneos ou parentes. Mas eles “saíram para agarrá-lo” em v. 21, e em v. 31 “chegaram sua mãe e seus irmãos… e mandaram chamá-lo”. Então é o mesmo grupo de parentes. (“irmãos” não são necessariamente irmãos de sangue, podem ser parentes quaisquer, cf. Gn 13,8: tio e sobrinho).

Mc não diz como eles “souberam disso”, apenas menciona o seu julgamento: “Está fora de si”. Havia tentativas de atenuar a dureza da expressão, por ex.: ele está em êxtase; ele os enlouqueceu; também se lê: “porque (lhes) dizia que está fora de si”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2401) comenta: São provavelmente achegados que o conheceram num estilo de vida corrente, e não conseguem integrar sua nova figura. Como se para eles fosse uma personagem nova. Procuram dominá-lo, impedir sua atividade; julgam que delira ou que não sabe conter-se e, eventualmente, temem por ele (a interpretação é duvidosa).

Mas a palavra grega ao pé da letra é “está fora de si”, mas aqui no sentido de loucura, delírio (cf. Jo 10,20), falta de juízo, prepara a acusação de ser possuído pelo demônio (Beelzebu, vv. 22-30p; cf. Jo 7,20; 8,48.52). A resistência se infiltra entre seus familiares ou parentes próximos, embora seja mais incompreensão que hostilidade. Já no Antigo Testamento (AT), o profeta sofre hostilidade por parte dos seus familiares (Jr 12,6; 11,21; Zc 13,3; cf. Mc 6,4p) e Sb 5,4 considera-se a vida do justo “uma loucura”. Todos os evangelhos relatam certa incompreensão por parte dos familiares (irmãos) e conterrâneos de Jesus (cf. Lc 4,23-30; Jo 2,4; 7,3-5), porém, Mt e Lc só copiam Mc 3,31-35 e 6,1-6 e não o evangelho de hoje. Eles têm uma visão mais positiva da família de Jesus (cf. a narrativas de infância em Mt 1-2 e Lc 1-2; cf. At 1,14).

A incompreensão a respeito do mistério (segredo) do messias é característica do evangelho de Mc. Ele mostra a incompreensão dos familiares e, com mais frequência, a dos discípulos, além da hostilidade da elite dominante. Só no final do Evangelho, na cruz e na ressurreição, se entenderá o mistério do messias.

O site da CNBB comenta: A família humana pode fazer com que toda prática de uma pessoa seja vista apenas com olhos humanos, e o resultado disso é a interpretação incorreta dos fatos que devem ser analisados à luz da fé. Os parentes de Jesus não foram capazes de ver o dedo de Deus agindo, e, por isso, achavam que Jesus estava fora de si. Mas o povo foi capaz de ver o que realmente estava acontecendo, pois, os corações de todos estavam abertos ao momento presente e à ação do próprio Deus, procurando ver a vida e os ensinamentos de Jesus à luz da fé. Por isso, o povo se reunia em número cada vez maior em torno de Jesus, de modo que ele e seus discípulos nem sequer podiam comer.

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