23 de junho de 2018, sábado: Ninguém pode servir a dois senhores: pois, ou odiará um e amará o outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro

1ª Leitura: 2Cr 24,17-25

Na ótica dos sacerdotes e levitas de Jerusalém, o (grupo) Cronista faz uma revisão de toda história do povo de Deus até o exílio da Babilônia (1-2 Cr); e ainda escreve sobre o pós-exílio (Esd e Ne). Tem muitas paralelas com a história deuteronomista em 1-2Sm; 1-2Rs, da qual se inspira, mas concentra-se na história do reino do Sul.

Ouvimos ontem (2Rs 11,1-4.9-18.20), como o sacerdote Joiada salvou a dinastia de Davi em Jerusalém, apresentando ao povo como rei legítimo o menino Joás que estava escondido no templo para escapar da perseguição pela rainha Atalia, filha de Jezabel, viuva de Jorão de Judá e mãe de Ocozias que foi morto por Jeú (2Rs 8,16-26; 9,27-29). Mas Joás, quando adulto, esqueceu-se do benefício dado por Joiada.

A Bíblia de Jerusalém (p. 666) comenta: Não se encontra em 2Rs vestígios desta mudança de política, mas é verossímil que, após a morte de Joiada, o rei tenha rejeitado a tutela clerical e seguido seus conselheiros leigos – Conforme seu costume, o Cronista aponta aqui a intervenção de profetas.

Depois da morte de Joiada, os chefes de Judá vieram prostrar-se diante do rei Joás, que, atraído por suas lisonjas, se deixou levar por eles. Os chefes de Judá abandonaram o templo do Senhor, o Deus de seus pais, e prestaram culto a troncos sagrados e a imagens esculpidas, atraindo a ira divina sobre Judá e Jerusalém por causa desse crime. O Senhor mandou-lhes profetas para que se convertessem a ele. Porém, por mais que estes protestassem, não lhe queriam dar ouvidos (vv. 17-19).

A Bíblia do Peregrino (p. 788) comenta: A morte de Joiada tem um efeito igual à morte de Josué, conforme Js 2. Diríamos que o autor polemiza sobre a capacidade da nobreza em aconselhar (conhecia a história de Jeremias), em oposição aos sacerdotes.

A mudança de conduta e de situação é violenta e não justificada. Não sucedeu a Joiada um sacerdote competente? Ou careceu a Joiada ascendência benéfica sobre o rei? Exatamente esse sucessor, num arroubo de inspiração profética, foi a ocasião da catástrofe, pelo endurecimento do rei.

Então o espírito de Deus apoderou-se de Zacarias, filho do sacerdote Joiada, e ele apresentou-se ao povo e disse: “Assim fala Deus: Por que transgredis os preceitos do Senhor? Isto não vos será de nenhum proveito. Porque abandonastes o Senhor, ele também vos abandonará”. Eles, porém, conspiraram contra Zacarias e mataram-no à pedrada por ordem do rei, no pátio do templo do Senhor. O rei Joás não se lembrou do bem que Joiada, pai do profeta, lhe tinha feito, e matou o seu filho. Zacarias, ao morrer, disse: “Que o Senhor veja e faça justiça!” (vv. 20-22).

“Apoderou”; lit.: “revestiu”. “Ele também vos abandonará” lit.: “vos abandonou”; novo exemplo do perfeito profético (20,37): uma coisa futura é apresentado no passado, para mostrar que a decisão de Deus já está tomada e que se realizará infalivelmente.

Ao falharem os profetas (v. 19), surge um sacerdote inspirado (como o levita inspirado que pronunciou o oráculo na batalha de Josafá, cf. 20,14). A Bíblia do Peregrino (p. 788s) comenta: Sublinham-se os agravantes do crime: em recinto sagrado e contra a lei da gratidão. A um delito de idolatria segue-se um delito de sangue (ver o caso de Hanani sob o rei Asa, 16,10); a dinastia e o templo continuavam vinculados na história. O apelo de Zacarias (v. 20) tem valor de programa: é o sacerdócio e a profecia ante a realeza (Amós era a profecia contra o sacerdócio e a realeza, Am 7,10-17). Para isso Joás salvou a vida e reconstruiu o templo? Procura se silenciar a denúncia profética, mas o sangue sacrilegamente derramado prolonga o pedido de justiça do inocente assassinado.

No discurso contra os fariseus e mestres da Lei, Mt 23,35 fala da perseguição: “desde o sangue do justo Abel até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que matastes entre o santuário e o altar”. Como 2Cr é o último livro do cânone judaico, o assassínio de Zacarias é último narrado no AT, então o evangelista se refere a esse profeta (“filho de Baraquias” deve vir da confusão com outro Zacarias, cf. Is 8,2).  

Ao cabo de um ano, o exército da Síria marchou contra Joás, invadiu Judá e Jerusalém, massacrou os chefes do povo, e enviou toda a presa de guerra ao rei de Damasco. Na verdade, o exército da Síria veio com poucos homens, mas o Senhor entregou nas mãos deles um exército enorme, porque Judá tinha abandonado o Senhor, o Deus de seus pais. Assim, os sírios fizeram justiça contra Joás. Quando eles se retiraram, deixando-o gravemente enfermo, seus homens conspiraram contra ele, para vingar o filho do sacerdote Joiada, e mataram-no em seu leito. Ele morreu e foi sepultado na cidade de Davi, mas não no sepulcro dos reis (vv. 23-25).

Os vv. 23-26 narram como 2Rs 12,18-22, a invasão síria e a morte de Joás, mas os dois relatos não dependem um do outro (cf. o “midraxe do livro dos reis” em v. 27). O das Cr insiste mas na gravidade do castigo.

Os sírios (=arameus) tem sua capital em Damasco. Na vitória da minoria síria, cumpre-se a maldição ameaçada em Dt 32,30. A Bíblia de Jerusalém (p. 666) comenta: 2Rs fala de uma guerra entre filisteus e arameus, que se retiram de Judá depois do pagamento de um pesado tributo, e menciona a seguir o assassínio de Joás. O Cronista parece ter usado uma outra fonte, que talvez apresentasse já a morte violenta de Joás como castigo de sua impiedade.

A Bíblia do Peregrino (p. 789) comenta: E assim sobrevém logo o castigo, mais grave que o descrito em 2Rs e antecipando um pouco o de Nabucondonosor: invasão, matança, saque. Recordemos que Asa estimulou os sírios, os quais agora são executores da sentença divina; os cortesões só dão o golpe de misericórdia. E assim a conspiração contra o profeta se volta contra o rei. Com ênfase soa “todos os chefes, todos os despojos.”

“Ao cabo de um ano”; o início do ano era é o período de março-abril, fim da estação chuvosa e começo da estação seca, favorável as expedições militares (cf. 2Sm 11,1).

“Vingar o filho”, lit.: “filhos” (no hebr. e no sir.), mas ler-se-á de preferência o singular de acordo com o texto grego e o contexto (24,22).

“Não no sepulcro dos reis”, um detalhe especificado para opor a sorte do rei a do sacerdote Joiada “que foi sepultado com os reis na Cidade de Davi” (v. 16).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 480) resume: Intenção dos cronistas é mostrar que o reino prospera e todos vivem bem, quando o rei segue as orientações sacerdotais. Do contrário, seu reino é um desastre a acaba em sangue. Na sua ira, o rei persegue e mata os sacerdotes e profetas. Em Mt 23,25, Jesus recorda a morte deste profeta Zacarias.

 

Evangelho: Mt 6,24-34

No sermão da montanha, Jesus se dirige ao povo e aos discípulos (cf. 5,1s; 7,28), e no evangelho de ontem e hoje, fala sobre os bens materiais e a preocupação certa. O evangelista Mt juntou material de uma coleção catequética chamada Q, que se perdeu na história, mas deixa-se restaurar porque Lc também a usou (cf. Lc 16,13; 12,22-31).

Ninguém pode servir a dois senhores: pois, ou odiará um e amará o outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro (v. 24).

A experiência mostra que é difícil servir a dois senhores sem entrar em conflito. O dinheiro aqui é personificado e seu serviço torna-se idolatria (cf. Ex 20,3-5: não servir a outros deuses). Mt escreve em grego, mas usa aqui uma palavra aramaica: mamon. Este termo pode ter provindo da ideia de um deposito confiado, abastecimento, propriedade e depois significar o Dinheiro como uma potência que escraviza o mundo a si (cf. Lc 16,9.11.13), o deus do dinheiro, da cobiça: rival inconciliável do Deus verdadeiro que é doador e generoso (Sl 21,5; 37,4; 136,25 etc.) e ensina a dar. “A cobiça é idolatria”, diz Cl 3,5. O cobiçoso não possui, mas é possuído por seus bens e suas ânsias.

Depois desta sentença, Jesus ensina no estilo sapiencial (cf. Ecl) sobre a preocupação certa (o Reino de Deus, v. 33) e a errada/exagerada:

Por isso eu vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida, com o que havereis de comer ou beber; nem com o vosso corpo, com o que havereis de vestir. Afinal, a vida não vale mais do que o alimento, e o corpo, mais do que a roupa? (v. 25).

Exatamente para viver é preciso de alimentos e roupas, mas a preocupação exagerada e consumista faz esquecer o mais essencial (vida, corpo). Já Ben Sirac denunciava essa preocupação “que acaba com a saúde” (Eclo 31,1-2; cf. Lc 12,16-21).

Olhai os pássaros dos céus: eles não semeiam, não colhem, nem ajuntam em armazéns. No entanto, vosso Pai que está nos céus os alimenta. Vós não valeis mais do que os pássaros? Quem de vós pode prolongar a duração da própria vida, só pelo fato de se preocupar com isso? (vv. 26-27).

Jesus justifica sua despreocupação material com a observação da natureza: Os pássaros não são exemplos a imitar, mas testemunham a providência de Deus. A palavra grega em v. 27 pode significa “duração de vida” ou “altura do corpo”. No judaísmo, acreditava-se que a altura de Adão foi diminuída pelo pecado original. Ao desejo de ser o maior entre os discípulos, Jesus opôs uma criança (cf. Mc 9,33-37p). Nenhum homem pode mudar a medida, o limite que Deus lhe determinou. O pessimismo deste v. 27 contrasta com o otimismo da comparação com pássaros e lírios.

E por que ficais preocupados com a roupa? Olhai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam. Porém, eu vos digo: nem o rei Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é queimada no forno, não fará ele muito mais por vós, gente de pouca fé? (vv. 28-30).

A palavra grega para lírios (cf. Os 14,6) designava também várias flores do campo: margarida, asfódelo etc.; as imagens tiradas da natureza, embora a serviço do ensinamento, revelam algo da sensibilidade contemplativa de Jesus que prolonga textos do AT (p. ex. Sl 36,7; 104,27-28; sobre Salomão, cf. 1Rs 10). A erva e a flor do campo são símbolos de que a vida humana é passageira, enquanto “a palavra de nosso Deus subsiste para sempre” (Is 6,6-8; citado por 1Pd 1,24s; cf. Tg 1,10s; Is 51,12; Sl 37,2; 90,5; 103,15s).

Portanto, não vos preocupeis, dizendo: O que vamos comer? O que vamos beber? Como vamos nos vestir? Os pagãos é que procuram essas coisas. Vosso Pai, que está nos céus, sabe que precisais de tudo isso (vv. 31-32).

É típico de uma mentalidade pagã (v. 32) um afã excessivo de segurança e a falta de confiança em Deus: “gente de pouca fé” (expressão predileta do evangelista: 8,26; 14,31; 16,8; 17,20; cf. Lc 12,28).

Jesus não faz um apelo à incúria, mas à confiança que se exprime na oração (no Pai-nosso pelo pão de cada dia: 6,11; cf. 7,7-11; Fl 4,6), dirigida a Deus Pai celeste, que livra das preocupações exageradas (16,5-12; cf. 1Pd 5,7; Mc 13,15).

Pelo contrário, buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo (v. 33).

Em vez de se perder em preocupações superficiais e banais, Jesus recomenda a concentração nos valores do reino e a confiança em Deus Pai. Os dois correlativos devem ser entendidos ligados, para não excluir a previsão econômica razoável. “O reinado de Deus e sua justiça” buscam também uma ordem justa entre os homens, a busca pelo reino não é só esperar passivamente, mas praticar a justiça como o sermão da montanha ensina (cf. 3,14; 4,17; 5,20). O reino e a justiça correspondem ao segundo e terceiro pedido do Pai-Nosso (6,10) e às ações de Deus e do homem. Deus estabelecerá seu reino e desde já, quase “por acréscimo”, dará alimento e roupa aos seus filhos (discípulos). A aquisição de bens necessários para viver se torna ansiedade contínua e pesada, se não for precedida pela busca da justiça do reino, isto é, a promoção de relações de partilha e fraternidade. O necessário para a vida virá junto com essa justiça, como fruto natural de uma árvore boa (em acréscimo).

O texto é paradoxal: Sob uma superfície agradável circula uma exigência dramática. Jesus não ensina a despreocupar-se com nada, mas a mudar o objeto da preocupação. De fato, se o afã humano buscasse o autêntico reinado de Deus, seguir-se-ia um tranquilo e simples bem-estar. Ideal que não poucos cristãos viveram.

Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá suas preocupações! Para cada dia, bastam seus próprios problemas (v. 34).

O que foi traduzido “dia de amanhã” pode significar também o futuro em geral (cf. Gn 30,33; Ex 13,14; Js 4,6). Os “problemas” designam também maldades, mas em geral dificuldades e fadigas. Pode se escolher entre uma interpretação otimista e pessimista: a otimista quer incentivar o viver plenamente no tempo presente (carpe diem – aproveite o dia); a pessimista corresponde ao final do v. 34 dizendo que todo planejamento humano é em vão, porque o ser humano mal consegue carregar o fardo de cada dia (cf. 11,28; Tg 4,13-14). Entre os primeiros cristãos, a esperança escatológica (reino de Deus) e uma crítica realista e pessimista do mundo podiam andar juntos.

Na recepção do texto na história da Igreja alternam-se interpretações do texto que o relacionam aos discípulos decididos ou ao povo todo em geral. Interessa a questão da propriedade e do trabalho. Outros textos como Gn 3,17-19; 2Ts 3,10-12 e o exemplo do apóstolo Paulo (cf. At 18,3; 1Cor 9 etc.) influenciaram para que o trabalho ganhasse um destaque positivo também entre os monges, p. ex. nas regras de S. Basílio, de S. Bento (ora et labora – reze e trabalhe) e de S. Francisco. Stº. Agostinho polemizou contra monges preguiçosos, mas defendeu a isenção do clero de trabalhos comuns. O conselho ao jovem rico (Mt 19,16-22) contribuiu para entender o texto como conselho evangélico para os mais perfeitos, não como ordem para todos. Assim permite-se a propriedade, mas depende do seu uso (obrigação social, dar esmolas). Distingue-se entre preocupação lícita e ilícita (cf. v. 34): preocupar-se com o tempo presente é permitido, mas “amanhã” existe só no tempo; nós devemo-nos preocupar com a eternidade. Preocupar-se por amor é lícito, também a preocupação do rei, do pai de família, do funcionário pelo pessoal confiado é lícita, mas não a preocupação egoísta, exagerada e medrosa.

A exigência de Jesus pode se esvaziar com a justificação perpétua da propriedade e da ética protestante do trabalho (cf. M. Weber sobre as raízes do capitalismo). Mas a vida alternativa que Jesus propõe também não é um estilo de vida entusiasta moderna (p. ex. a boêmia, os hippies), mas o serviço do reino de Deus e sua justiça.

O filósofo Kierkegaard (1813-1855) diz que, através deste evangelho, o homem vê “na dispersão dos pássaros outra coisa do que sua preocupação; poderia contemplar como é maravilhoso poder trabalhar e ser humano. E se ele se esquecer disso durante o trabalho, então o pássaro pode lembrá-lo do esquecido.” Kierkegaard conta também a história de um candidato luterano à teologia, L. Fromm (palavra alemã que significa “piedoso”). “Primeiro”, ele busca um emprego real como pastor, por isso faz as provas e os exames “primeiro”, depois faz o noivado “primeiro”, e antes de começar seu ofício precisa negociar “primeiro” um bom salário. Finalmente, num domingo, está no púlpito para proferir sua primeira homilia, que é justamente sobre o evangelho: “Buscai primeiro o reino de Deus” (v. 33). O bispo se mostra impressionado com esta pregação com tanta doutrina salvífica e autêntica, principalmente como o candidato enfatizou a parte do “primeiro”. – “Mas V. Reverendíssima acha que aqui está a coerência de pregação e vida?” questiona Kierkegaard.

O site da CNBB comenta: A vida moderna é cada vez mais marcada pela satisfação de necessidades urgentes criadas pela sociedade e pela cultura. A busca da satisfação dessas necessidades nos ocupa praticamente o tempo todo e nunca obtém pleno sucesso, pois sempre fica faltando alguma coisa. Por que acontece isso? É porque a pessoa contemporânea deixou de lado o Deus verdadeiro para se colocar ao serviço dos deuses que marcam o paganismo moderno, como o dinheiro, o prazer e o poder, e esses deuses nunca estão satisfeitos e nem trazem satisfação para o coração humano. É claro que não devemos nos alienar, nos afastar do mundo como se ele fosse uma coisa má, mas não-distanciamento não pode significar servidão aos deuses e mitos da modernidade.

 

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