23 de Junho de 2021, Quarta-feira: Cuidado com os falsos profetas: Eles vêm até vós vestidos com peles de ovelha, mas por dentro são lobos ferozes (v. 15).

12ª semana 4ª feira – Ano Ímpar

Leitura: Gn 15,1-12.17-18

Nossa leitura salta a campanha militar de Abrão (o nome muda para “Abraão” só no cap. 17) Ele juntou seus 318 pastores para resgatar seu sobrinho Ló sequestrado na guerra entre cidades-reinos (entre elas Sodoma e Gomorra; cf. 13,10-12; 18,16-19,29). Abrão conseguiu libertar seu sobrinho perto de Damasco e na volta foi abençoado por Melquisedec, rei de (Jeru-)Salém, a quem entregou o dízimo (14,18-20 leitura de Corpus Christi, Ano C; cf. Sl 110 e Hb 5-7). As narrativas sobre as migrações de Abrão refletem as relações entre diversos grupos de Israel no tempo posterior quando foram escritos (p. ex. o rei em Jerusalém recebendo tributos).

Hoje ouvimos sobre a primeira “aliança” de Deus com Abrão. As repetições no diálogo (cf. vv. 2.3), as duas cenas noturnas, uma serena (v. 5) e outra dramática (vv. 12.17) indicam uma mescla de tradições com os temas da terra, descendência e aliança.

O que um nômade e criador de animais como Abrão precisa para seu sustento, além de pastos e poços de água (cf. Gn 13, leitura de ontem)? Um filho e herdeiro que o sustenta na velhice, porque não existia previdência nem segurança social como hoje. É o que falta a Abrão, homem já com mais de 75 anos, e à sua mulher Sara que era estéril (cf. 11,30; 12,4). Mas ele foi chamado por Javé-Deus para sair da sua terra e da sua família com a promessa de terra e descendência e tornar-se uma benção para todas as famílias e nações da terra (12,1-6; 13,14-17; 22,18). Deus promete e o homem aspira; mas nada ainda acontece.

O Senhor falou a Abrão, dizendo: “Não temas, Abrão! Eu sou o teu protetor e tua recompensa será muito grande”. Abrão respondeu: “Senhor Deus, que me darás? Eu me vou desta vida sem filhos e o herdeiro de minha casa será Eliezer de Damasco”. E acrescentou: “Como não me deste descendência, um servo nascido em minha casa será meu herdeiro”. Então o Senhor falou-lhe nestes termos: “O teu herdeiro não será esse, mas um dos teus descendentes é que será o herdeiro” (vv. 1-4). 

Deus desafia novamente Abrão com uma afirmação tripla no estilo profético (vv. 1.4), lit.: “A palavra de Javé (Yhwh) veio a Abrão nestes termos” (vv. 1.4, expressão usada no pentateuco apenas aqui!). Também as outras expressões, “Não temas” (animação, cf. Gn 46,3; Dt 1,21; Js 8,1; Is 7,4; 41,10; Jr 1,8) e “Eu sou o teu protetor” (proteção divina; defesa, lit. “teu escudo”, cf. Sl 3,4; 18,3.31.36; 28,7; 33,20; 59,12; 115,9.10.11) e “Tua recompensa será muito grande” (promessa) indicam releituras que fazem de Abrão um profeta (a profecia dos vv. 13-16 foi omitida por nossa liturgia; cf. Ex 20,5; Nm 14,18; Jr 25,11s), cujo exemplo de fé (v. 6) anima os judeus no exílio e na volta a sua terra.

Abrão lamenta que seu herdeiro será Eliézer de Damasco (v. 2). No AT, ainda não se conta com outra vida após a morte (só nos escritos mais tardios), então morrer sem descendência é uma tragédia irreparável: morre o homem e o nome (cf. Eclo 30,4; Sl 49,11). O criado Eliezer, um “servo da minha casa”, não pode dar cumprimento à promessa divina. Mas o Senhor afirma: “Teu herdeiro não será esse, mas um dos teus descendentes” (lit.: “aquele que sairá de tuas entranhas”).

E, conduzindo-o para fora, disse-lhe: “Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz!” E acrescentou: “Assim será a tua descendência” (v. 5).

Abrão está encerrado na sua tenda com os problemas domésticos, com a herança. Mas o Senhor, “conduzindo-o para fora” (transcendência é um “sair” de si, palavra chave do êxodo), mostra a tenda celeste, dizendo: “Olha para o céu e conta as estrelas se fores capaz… Assim será tua descendência”. Na primeira promessa, Deus só falou (12,1-3), na segunda convidou para olhar a terra ao redor (13,14-17). Nesta terceira, convida para olhar para o alto (cf. Cl 3,1-2), para o poder do próprio criador do “exército” do céu (2,1), as estrelas que são exemplo de multidão (22,17; 26,4; Dt 1,10; cf. 17,5: o nome de Abraão significa “pai de uma multidão”). Deus não só conhece o número das estrelas, mas o nome de cada uma (Is 40,26; Sl 147,4). Com toda crítica da razão, o filósofo Immanuel Kant (1724-1804) confessou: “O céu estrelado acima e a lei moral dentro de mim fazem me acreditar na existência de Deus”.

Abrão teve fé no Senhor, que considerou isso como justiça (v. 6).

A fé de Abraão é confiança numa promessa humanamente irrealizável. A palavra “fé” aparece aqui pela primeira vez na Bíblia. Tem a mesma origem que o termo litúrgico “amém” e a mesma raiz hebraica que verdade, fidelidade, firmeza (confiança de um nômade num chão firme, não traiçoeiro, onde pode fixar sua tenda, cf. Mt 7,24-27). A fé de Abraão se mostra também na obediência (12,4a; cf. cap. 22). Paulo se refere a ela citando a frase de Gn 15,6 em Rm 4,3.9.22 e Gl 3,16: o apóstolo dos pagãos usa o texto para provar que a justificação depende da fé e não das obras da lei (a fé de Abraão é anterior à lei de Moisés). Mas como a fé de Abraão guia a sua conduta, é princípio de ação das suas obras, Tiago pode invocar o mesmo texto para condenar a fé “morta”, sem as obras da fé (Tg 2,22s). O Documento de Convergência (1999) reconcilia os dois aspectos que eram bandeiras confessionais (protestante/católica): A primazia é da fé, mas fé autêntica se traduz em obras de caridade.

Deus reconhece o mérito (“justiça”) deste ato (cf. Dt 24,13; Sl 106,31), coloca-o na conta de sua justiça, sendo “justo” o homem cuja retidão e submissão o tornam agradável a Deus. A justiça do homem consiste numa entrega confiante ao Deus que garante cumprir o que promete, quando ainda nada pode ser verificado (cf. Hb 11,1.8-12). A justiça aqui não é uma virtude moral, ela implica uma concordância com a vontade de Deus (expressa nas promessas dele). Ela se refere a uma palavra divina e dela decorrem a vida e a prosperidade.

E lhe disse: “Eu sou o Senhor que te fez sair de Ur dos Caldeus, para te dar em possessão esta terra” (v. 7). 

Deus se identifica solenemente com o nome Javé (Yhwh, traduzido por “Senhor”) e com a intervenção decisiva na vida de Abrão: “Eu sou o Senhor que te fez sair de Ur dos caldeus para te dar em possessão esta terra”; cf. Ex 20,2: “Eu sou o Senhor, teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão”). Ur fica na Baixa Babilônia, os caldeus são os babilônios. Para uns exegetas, esta origem de Abraão (cf. 11,31; Ne 9,7) é da redação exílica que quer criar um paralelo com os exilados na Babilônia (cf. Is 48,20) e motivá-los a voltar à terra de Israel atualizando para eles as promessas e bênçãos garantidas a seu ancestral Abraão.

Abrão lhe perguntou: “Senhor Deus, como poderei saber que vou possuí-la?” E o Senhor lhe disse: “Traze-me uma novilha de três anos, uma cabra de três anos, um carneiro de três anos, além de uma rola e de uma pombinha”. Abrão trouxe tudo e dividiu os animais pelo meio, mas não as aves, colocando as respectivas partes uma frente à outra (vv. 8-10).

Abrão pede um sinal (v. 8, cf. Lc 1,18.34) e Deus sela uma aliança, pedindo que Abrão fizesse um ritual que se parece com “macumba”, ou seja, rituais de magia: dividir animais ao meio formando um corredor (vv. 9-10). Temos aqui a terceira grande aliança no Pentateuco (primeiros cinco livros da Bíblia, chamados Torá, ou seja, Lei de Moisés), depois da criação com Adão (1,38-30) e da aliança com Noé (9,1-17). Ora, a aliança era um acordo em que ambos os contraentes se empenhavam entre si; era concluída com um rito. É um velho rito de aliança (cf. os reis em Jr 34,18s): os contraentes passavam entre as carnes sangrentas e chamavam sobre si a sorte que coube a esses animais mortos, se transgredissem seu compromisso. É um compromisso solene selado por um juramento imprecatório (a passagem entre os animais divididos). Hoje se cumpre um contrato por medo de consequências jurídicas, antigamente não havia sistema jurídico, cumpria-se por medo do efeito do ritual mágico. Daí a expressão bíblica “cortar” a aliança (v. 18) em vez de fazer, assinar, concluir, firmar ou selar, como é traduzido do hebraico geralmente.

Aves de rapina se precipitaram sobre os cadáveres, mas Abrão as enxotou. Quando o sol já se ia pondo, caiu um sono profundo sobre Abrão e ele foi tomado de grande e misterioso terror (vv. 11-12).

As “aves de rapina” (v. 11) podem ser mau agouro que anuncia o futuro da escravidão dos filhos de Abrão no Egito (vv. 13-16, omitidos pela leitura de hoje). O sono profundo e o grande e misterioso terror que caiu sobre Abrão (v. 12; cf. Jó 4,12-17) pode se referir ao mesmo anúncio ou à teofania em seguida.

Quando o sol se pôs e escureceu, apareceu um braseiro fumegante e uma tocha de fogo, que passaram por entre os animais divididos (v. 17).

Quem passa aqui pelo corredor dos pedaços, sob o símbolo do fogo (elemento da divindade), é o Senhor (Javé Deus) e ele passa sozinho, porque sua aliança é um pacto unilateral (cf. 9,9). A aliança com Abrão é um empenho exclusivo de Deus: só Deus pode realizar aquilo que prometeu. A contrapartida é a fé de Abrão (v. 6).

O Antigo Oriente conhece o braseiro como sinal de infelicidade e a tocha como sinal favorável. É uma teofania misteriosa: Deus passa sem imagem, ao mesmo tempo fulgor e escuridão (v. 17). No êxodo, Deus se manifestará novamente neste elemento, na sarça ardente (Ex 3,2), numa coluna de nuvem e fogo (Ex 13,21; 14,24; cf. Ex 40,38 prefigurando o culto no templo), no monte Horeb/Sinai (Ex 19,18). Chama atenção que já era noite quando Abrão olhou as estrelas (v. 5), no entanto volta a ser dia em que ele arruma e prepara os animais e depois o sol se põe novamente (vv. 12.17), são indícios de uma mescla de tradições.

Naquele dia o Senhor fez aliança com Abrão, dizendo: “Aos teus descendentes darei esta terra, desde o rio do Egito até o grande rio, o Eufrates” (v. 18). 

Aqui o ritual é usado para reforçar as promessas já dadas em 12,6 e 13,15s. Descendência incontável (v. 5; cf. 13,16; 22,17; 1Rs 4,20) e “esta terra, desde o rio do Egito até o grande rio, o Eufrates”, revelam os projetos expansionistas do rei Josias (640-609 a.C.; cf. 2Rs 22,1-23,30; Dt 11,24; 20,17; Js 1,4; 3,11; 15,4; z 3,5; 1Rs 5,1; Ne 9,8; Esd 9,1).

O esquema do êxodo (“saída”) é fortemente representado no texto: das entranhas “sairá” o herdeiro de Abrão (v. 4) que é “conduzido para fora” para ver as estrelas (v. 5). O Senhor fez Abrão “sair” de Ur para dar-lhe a terra (v. 7); da mesma forma, os descendentes de Abrão serão escravos no Egito por 400 anos e depois “sairão” para a terra prometida (vv. 13s.18-20). A presença de Deus em forma de fogueira e tocha é a mesma no êxodo: sarça ardente, coluna de fogo, teofania no monte Sinai (Ex 3,3; 13,21; 19,18). Sair para: é o movimento de libertação que torna possível, tanto para o indivíduo, como para o povo ao qual ele pertence, caminhar para a vida. Para os profetas e redatores judeus no exílio, a volta à sua terra é um novo êxodo (cf. Is 40,3-5; 43,16-21; 51,1-3).

Evangelho: Mt 7,15-20

No final do sermão da montanha (7,13-27), Jesus dá dicas para o cristão que deve tomar decisões a partir deste sermão e caminhar entre dificuldades e ambiguidades. Jesus o previne e lhe oferece critérios para distinguir, usando e renovando as imagens tradicionais do caminho (estreito ou largo, vv. 13-14), da arvore (frutos bons ou maus, vv. 15-20) e da construção (na rocha ou na areia, vv. 24-27, evangelho de amanhã).

Cuidado com os falsos profetas: Eles vêm até vós vestidos com peles de ovelha, mas por dentro são lobos ferozes (v. 15).

Profetas e profecias desempenharam um papel importante nas primeiras comunidades cristãs (At 2,17s; 11,27s; 13,1; 15,32; 19,6; 21,9-11; cf. 1Cor 12 e 14, etc.), não sem provocar distúrbios (Mt 24,11.24p; Mc 9,38-40; At 13,6; 20,29s; Tt 1,1-16; 2Pd 2,1; 1Jo 4,1-6; Ap 2,20; 16,13; 19,20; 20,10).

Os “falsos profetas” foram os pesadelos dos autênticos (cf. Jr 23; Ez 13; Dt 13 entre outros). Elogiam e não denunciam (Is 30,10); prometem falsamente a paz (Jr 6,14; 8,11). Não faltam falsos profetas nas comunidades cristãs (Mt 24,11.24; cf. 1Jo 2,18 “anticristos”), nem mestres que “elogiam os ouvidos” (2Tm 4,3). Doutores de mentira seduzem o povo com falsas aparências de piedade, enquanto no íntimo buscam fins interesseiros (cf. Mt 24,4s.24).

A metáfora da ovelha e do lobo é conhecida no AT (Is 11,1; 65,25; Eclo 13,17; cf. Mt 10,16), mas ”lobos vestidos com peles de ovelha” é expressão própria de Mt. Nada se parece tanto com um verdadeiro profeta, como um falso profeta. As ideologias que nos afastam da opção fundamental pelo Reino e sua justiça, são cheias de fascínio, e sempre trazem a aparência de humanidade e até mesmo de fé. Só podemos perceber a sua falsidade através daquilo que elas produzem (“frutos”) na sociedade: ex. a cobiça e a sede de poder, que levam à exploração e opressão.

Vós os conhecereis pelos seus frutos. Por acaso se colhem uvas de espinheiros ou figos de urtigas? Assim, toda árvore boa produz frutos bons, e toda árvore má, produz frutos maus. Uma árvore boa não pode dar frutos maus, nem uma árvore má pode produzir frutos bons. Toda árvore que não dá bons frutos é cortada e jogada no fogo. Portanto, pelos seus frutos vós os conhecereis (vv. 16-20).

Mt dá uma regra para discernir os espíritos. A comparação com os “frutos” também é tradicional (Eclo 27,6; Pr 1,31; 3,9; 10,16; 11,30; 31,3; Tg 3,12.17; cf. também as parábolas de Joatão em Jz 9 e a de Isaias em Is 5). Podem ser as ações ou os efeitos da pregação (cf. Jr 8,11; Ez 13,10). Mt copiou esta parábola da fonte comum (Q) com Lc 6,43-46 e a aplica também em Mt 3,8.10; 12,33; 21,43; designa o comportamento concreto do homem, seja nos atos, seja nas palavras, que permite discernir ou reconhecer (11,27; 14,35; 17,12) a autenticidade da atividade profética.

O site da CNBB comenta: Existem profetas que falam o que as pessoas gostam de ouvir e existem profetas que falam o que deve ser dito. O falso profeta é aquele que fala o que a pessoa gosta de ouvir, de modo que ela não muda de vida e não produz fruto algum, vive uma espiritualidade estéril; ele vive de acordo com a situação porque está lhe é favorável e satisfaz seus interesses. O verdadeiro profeta fala o que a pessoa precisa ouvir para converter-se, mudar de vida e produzir frutos que permaneçam, ele não aceita a situação atual, marcada pelos privilégios e pecados e quer que ela mude, porque o seu interesse é que o Reino de Deus aconteça na história dos homens.

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