23 de novembro de 2017 – Quinta-feira, 33ª semana

Leitura: 1Mc 2,15-29

Depois de ouvir as narrativas de martírio durante a perseguição do rei greco-sírio Antíoco Epífanes IV (2Mc 6-7), voltamos hoje ao primeiro livro dos Macabeus para a continuação da história com o surgimento da resistência e da luta armada. A Bíblia do Peregrino (p. 957) comenta:

A primeira resistência é fuga ao campo aberto e às montanhas, para não colaborar (1,38.53), já expressa nos salmos 11 e 55. A segunda é a resistência passiva dos mártires, aos quais pertencem os que morrem no sábado e os que 2Mc 6-7 comemora. A terceira é a rebelião armada, que começa em forma de guerrilhas e chega a ser um exército guerreiro. Entramos de cheio na terceira etapa.

A faísca saltará num contexto cultual e numa família sacerdotal. Para o que vai acontecer mais tarde, é fundamental que os chefes da revolta sejam sacerdotes. Tal atitude remonta genericamente aos levitas de Ex 32, no episódio do bezerro de ouro e concretamente na historia de Finéias, mencionado e explorado pelo narrador.

A cena é dramática e é contada com força expressiva. Para a concepção do autor esta cena é capital, porque justifica a futura ascensão de seus heróis ao poder político e religioso (sumos sacerdotes). Não basta que sejam protagonistas militares para ascender ao cargo supremo religioso e civil, deve haver uma justificação mais profunda.

Também fica muito claro o motivo da resistência: é estritamente religioso. Os funcionários são encarregados “de fazer apostatar”. Matatias nega obediência ao rei no que tange à religião e à Lei. Não restam ambiguidades culturais ou políticas.

Os delegados do rei Antíoco, encarregados de obrigar os judeus à apostasia, chegaram à cidade de Modin para organizarem os sacrifícios. Muitos israelitas aproximaram-se deles, mas Matatias e seus filhos ficaram juntos, à parte (vv. 15-16).

“Os delegados do rei”, provavelmente Filipe, preposto em Jerusalém (2Mc 5,22) e sua comitiva, chegaram também às cidades do interior para obrigar os judeus à “apostasia”, ou seja, abandonar seus costumes e negar sua religião fazendo sacrifícios ao Zeus Olímpico, deus preferido do rei Antíoco.

Por causa desta profanação e perseguição, Matatias e seus cinco filhos haviam se retirado de Jerusalém para o Modin (a noroeste da capital, perto de Emaus, 4,3); eles pertencem à uma família sacerdotal antiga (cf. vv. 1-14).

Este cap. 2 não tem paralelo em 2Mc, que ignora Matatias em proveito do personagem de seu filho Judas Macabeus, restaurador do templo profanado (1,54; 4,36-59; leitura de amanhã). O nome de Matatias é a transcrição helenizada de Mattityá, “dom do Senhor”. O historiador judaico Flávio Josefo nomeia Asmoneu, ancestral da dinastia asmoneia (=macabeia) que governará depois da vitória dos rebeldes até a invasão pelos romanos em 63 a.C.

Tomando a palavra, os delegados do rei dirigiram-se a Matatias, dizendo: “Tu és um chefe de fama e prestígio na cidade, apoiado por filhos e irmãos. Sê o primeiro a aproximar-te e executa a ordem do rei, como fizeram todas as nações, os homens de Judá e os que ficaram em Jerusalém. Tu e teus filhos sereis contados entre os amigos do rei. E sereis honrados, tu e teus filhos, com prata e ouro e numerosos presentes” (vv. 17-18).

Esta família é capaz de representar o povo em suas atitudes e decisões mais graves. Sua decisão não é puramente pessoal, mas vai arrastar muitos. Os inimigos lhes reconhecem o prestígios e a capacidade de guiar outros, eles honrarão essa capacidade. É como se Deus lhe falasse pela boca do inimigo. A tentativa de persuadir o fiel com ofertas que parecem razoáveis faz parte das narrativas dos martírios (2Mc 6,21s; 7,24s).

Aqui são promessas para aqueles que aderiam ao projeto régio de helenização: serem considerados “amigos do rei”, distinção honorífica herdada da corte de Pérsia. Os amigos do rei tinham acesso ao soberano (3,38; 6,10.28; 10,16-20; 11,26.57; 14,39), que eventualmente lhes confiava missões (6,14; 7,8; 15,28), dava direito a regalias, méritos e isenções; acesso fácil junto ao soberano; ocupação de importantes cargos no reino (3,38; 7,8; 10,16.20.60.65; 11,27.57; 14,39; 15,28; 2Mc 8,9).

O título costumava incluir a corte e diversas funções administrativas. É um prêmio para Matatias e ao mesmo tempo valiosa aliança para o rei.

Com voz forte, Matatias respondeu: “Ainda que todas as nações, incorporadas no império do rei, passem a obedecer-lhe, abandonando a religião de seus antepassados e submetendo-se aos decretos reais, eu, meu filhos e meus irmãos, continuaremos seguindo a aliança de nossos pais. Deus nos guarde de abandonarmos sua Lei e seus mandamentos. Não atenderemos às ordens do rei e não nos desviaremos de nossa religião nem para a direita nem para a esquerda” (vv. 19-22).

Nas respostas do sacerdote ressoa a decisão de Josué ao renovar a aliança em Siquém (Js 24,15): “Ainda que todos não…, eu e minha casa serviremos ao Senhor…”.

“Todas as nações, incorporadas no império do rei” lit.: na casa da realeza do rei (aramaísmo, cf. 7,2; Dn 4,27; 1Mc 3,32).

Religião e aliança estão em rigoroso paralelismo de Daniel e seus amigos, especialmente em Dn 3,17-18 (o livro de Dn foi escrito no contexto histórico da mesma perseguição por Antíoco IV Epífanes)

“Deus (lit. Ele) nos guarde de abandonarmos sua Lei” (v. 21). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.1610) comenta: Deus talvez esteja subentendido por escrúpulo teológicos (cf. 3,18) e ter-se-ia lit.: “(Que Deus) nos (seja) misericordiosos (nos guarde) de abandonar…”, mas 2Sm 20,20 tem a mesma expressão e pode-se traduzir esse hebraísmo “longe de mim (lit. interdito)”. O gr. responde a essa expressão hebraica insistindo na misericórdia.

“Não nos desviaremos de nossa religião nem para a direita nem para a esquerda” é expressão hebraica (cf. 2Sm 14,19; etc.)

Mal ele concluiu estas palavras, um judeu adiantou-se à vista de todos para oferecer um sacrifício no altar de Modin segundo a determinação do rei. Ao ver isso, Matatias inflamou-se de zelo e ficou profundamente indignado. Tomado de justa cólera, precipitou-se contra o homem e matou-o sobre o altar. Matou também o delegado do rei, que queria obrigar a sacrificar, e destruiu o altar. Ardia em zelo pela Lei, como Finéias havia feito com Zambri, filho de Salu (vv. 23-26).

“Um judeu adiantou-se…”, um colaboracionista (cf. 1,11-15), que quer os benefícios do rei, nega sua fé judaica para “oferecer um sacrifício no altar de Modin” (v. 15) segundo a determinação do rei (cf. 1,41-43). Segundo o redator, Matatias age com zeloso amor à Lei, tal como o sacerdote Finéias (Nm 25; Eclo 45,23-26).

A Bíblia do Peregrino (p. 959) comenta o antecedente do sacerdote Finéias: Era filho de Eleazar, filho de Aarão. O paralelismo é marcado e não mostrado como simples ilustração. Matatias, como Finéias, conta com a garantia de Deus, embora nenhum oráculo profético tenha sido pronunciado… A palavra-chave da cena é “zelo”, ou seja, o amor exclusivo e apaixonado. O Senhor é um Deus zeloso/ciumento (Ex 20,5; 34,14; Dt 5,9; 6,15) por seu lugar único e também por seu povo (Dt 32,19). Seus fiéis participarão desse zelo pela causa de Deus, por sua lei e sua aliança. Além de Finéias (Nm 25,6-15) poderíamos recordar o profeta Elias (1Rs 19,10.14). Esse zelo é como a senha e o grito de guerra da rebelião armada. Mas tarde surgiu dele um grupo político violento, os Zelotes ou Fanáticos, ativos sob a dominação romana, opostos ao colaboracionismo dos saduceus e à resistência passiva dos fariseus.

“Tomado de justa cólera”, lit. segundo o julgamento, i. é, conforme à Lei”. O zelo (ciúme) pela Lei de Moisés é característico da piedade da época (inspirado em Dt 13,7-12). Flávio Josefo (Ant. XII, 270) dá o nome do delegado: Apeles. No século seguinte, a cólera tomará uma feição mais política, com o partido dos zelotes (terroristas).

E Matatias saiu gritando em alta voz pela cidade: “Quem tiver amor pela Lei e quiser conservar a aliança, venha e siga-me!” Então fugiu, ele e seus filhos, para as montanhas, abandonando tudo o que possuíam na cidade. Também muitos, seguidores da justiça e do direito, desceram para o deserto e ali se estabeleceram (vv. 27-29). 

Começam a surgir aqui e acolá grupos em oposições às ordens do general selêucida. O grupo fiel é apresentado como amante da justiça e do direito; em resposta ao que está acontecendo no país, se refugia em cavernas do deserto, “fugiu, … ele e seus filhos, para as montanhas” (cf. 2Mc 5,27), trata-se das montanhas e grutas de Judá (cf. Ne 8,15 e talvez Lc 1,39,65).

Nos tempos atuais, podemos comparar a atração de jovens por guerrilhas ou pessoas religiosas e radicais (Osama Bin Laden etc.) que se instalam no deserto (já Daví, cf. 1Sm 22,1s) enfrentando um império poderoso (ocidente) e incitando uma guerra santa contra os “infiéis”.

A Bíblia do Peregrino (p. 959) comenta os “seguidores da justiça e do direito” que buscam uma vida justa pela observância dos preceitos da Lei (na linha de Dt 6,25): A expressão abre a coleção profética que costumamos chamar Terceiro Isaias, Is 56,1; é o programa de Ez 18. Aqui o deserto se opõe radicalmente à “polis” grega e ao ideal de vida civil dos gregos. A passagem pelo deserto é tradicional no itinerário de salvação dos israelitas: saída do Egito, volta de Babilônia, Elias, até a comunidade cenobítica de Qumrã.

A Bíblia de Jerusalém (p. 791) comenta: A perseguição provoca um despertar da consciência religiosa. A oposição ao helenismo toma a forma de intervenções violentas (2,15-28), ou de resistência passiva (2,29-38), finalmente de uma guerra santa: já sob Matatias (2,39-48), mas sobretudo sob Judas Macabeus (3 – 5). Este compreendera que a preservação da religião estava ligada à independência nacional, motivo por que a luta prosseguiu mesmo depois de a liberdade religiosa ter sido reconhecida (6,57-62). Mas essa transparência do conflito para o campo político abria a porta aos compromissos e à lutas partidárias, que ocupam toda a parte final do livro. Essas lutas prescindirão, pouco a pouco, das preocupações religiosas e desacreditarão, aos olhos dos homens verdadeiramente religiosos, a dinastia dos Asmoneus, saída dos Macabeus.

Evangelho: Lc 19,41-44

O trecho que ouvimos hoje, é próprio de Lc. Como já falou da figueira infrutífera em 13,6-9, podia omitir a maldição dela (Mc 11,12-14) e apresentar agora a dor de Jesus a respeito da Cidade Santa na hora de entrar nela para ser aclamado de messias (19,28-38).

A visita de Deus à cidade (cf. 1,68) realiza-se aqui pela vinda régia de Jesus. É agora que Jerusalém deveria acolhê-lo. Os discípulos o aclamaram rei (vv. 37s), os fariseus não (vv. 39s). Jesus se lamenta sobre a cidade que vai rejeitá-lo. Lc coloca aqui o primeiro dos seus três anúncios da ruína da cidade (19,43-44; 21,20-24; 23,28-31). Lc vê neste acontecimento um julgamento histórico prefigurando o julgamento escatológico. A profecia sobre Jerusalém tem paralelos em 13,34s (vindo de Q, cf. Mt 23,37-39) e 21,5s.20-24 (de Mc 13).

O nome Jerusalém significa “cidade da paz”. A Bíblia do Peregrino (p. 2521) comenta: Para os ouvidos do povo, Jerusalém leva a paz impressa no seu nome como um destino. Os peregrinos a saúdam com a paz (Sl 122), o arauto lhe anuncia a chegada do rei e da paz (Is 52,7; Zc 9,9-10 citado na entrada de Jesus por 19,29-37p). Jerusalém não aceita a saudação da paz (cf. 10,5s), não recebe a visita do Senhor (cf. 1,68). Em consequência, a cidade “compacta” será destruída. O pranto por Jerusalém faz eco aos da outra destruição (Jr 9,19-20; 13,17; Lm 1,2.16; 3,48-51).

Quando Jesus se aproximou de Jerusalém e viu a cidade, começou a chorar. E disse: “Se tu também compreendesses hoje o que te pode trazer a paz! Agora, porém, isso está escondido aos teus olhos! (vv. 41-42).

Enquanto “toda multidão começou louvar alegremente” (v. 37), Jesus “começou a chorar” (v. 41). “Se tu”, numerosos manuscritos acrescentam: “ao menos”. ”Também”, como “todos os discípulos” que acharam a paz em Jesus, aclamando (vv. 37-38: “Paz no céu e glória…”; cf. 2,14). “Hoje” (lit. neste dia) em Lc, é termo significante para salvação (cf. 2,11; 4,21; 5,26; 19,5.9; 23,43; cf. 19,47; Mc 1,15). “O que te pode trazer a paz!” Trata-se aqui da paz messiânica (v. 38; cf. Is 9,5; 11,6-19; Os 2,20). Para lamentação sobre Jerusalém, cf. Jr 15,5 etc.

A Bíblia do Peregrino (p. 2521) comenta: Jesus chora ao pronunciar sua trágica predição. Não a pronuncia irado e com sentimentos de vingança. Pode repetir com o salmo: “Teus servos amam suas pedras, dói-lhes até o pó” (Sl 102,15); e chora com Jeremias: “Meus olhos se desfazem em lágrimas, dia e noite sem cessar, pela terrível desgraça da filha (capital) de meu povo, por sua ferida incurável” (Jr 14,17).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1281s) comenta: Jesus chega com líder popular, disposto a encarar os conflitos e enfrentar os grupos que se armam para eliminá-lo. Nesses dias, que iniciavam a semana da Páscoa, em outra cerimonia entrava triunfalmente na cidade o governador Pilatos, representante do poderio e da religião imperiais. Jerusalém vive a contradição de ser considerada a cidade santa e ao mesmo tempo abrigar instituições promotoras da dominação; por isso, não consegue identificar na visita de Jesus a ela a possibilidade de trilhar um caminho de paz e justiça.

Dias virão em que os inimigos farão trincheiras contra ti e te cercarão de todos os lados. Eles esmagarão a ti e a teus filhos. E não deixarão em ti pedra sobre pedra. Porque tu não reconheceste o tempo em que foste visitada” (vv. 43-44).

“Farão trincheiras” (lit. paliçada); trata-se das obras de assédio para investir contra a cidade; “te cercarão de todos os lados” (cf. Ez 4,2; is 37,33). Lc descreve o cerco de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C. (cf. 21,20-24) como o assédio e o arrasamento antigos. Isaías o prediz de longe e introduz como sujeito o Senhor (Is 29,3). Ezequiel está próximo e tem de gravá-lo em tijolo, esboço da tragédia (Ez 4,2). Cf. ainda Am 9,14, a lamentação de Sl 79,1-2 e o terrível detalhe em Sl 137,9 (cf. Os 10,14, Jerusalém como mãe). É a última ocasião oferecida por Deus; compare-se com a vigorosa imagem de Os 13,13. “Não deixarão em ti pedra sobre pedra” (cf. 21,5-6p a respeito do próprio templo).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1967) comenta: Esse oráculo, inteiramente tecido de reminiscências bíblicas (perceptíveis sobretudo no texto grego, v. 43: cf. Is 29,3; 37,33; Jr 52,4-5; Ez 4,1-3; 21,27 [22]; v. 44; Os 10,14; 14,1; Na 3,10; Sl 137,9), evoca a ruína de Jerusalém em 587 a.C., tanto e mais ainda que a de 70 d.C. da qual não se descreve nenhum traço característico. Não é possível concluir desse texto, portanto, que está já se tenha realizado (cf. 17,22s; 21,20s).

Mas se consideramos a obra de Lc escrita por volta do ano 80 d.C. (a partir de outras observações, por ex. sua dependência de Mc 13,14-23 que escreveu no meio da guerra judaica cerca de 70 d.C. e as modificações de Lc 21,20-24), Lc deve aludir a este fato histórico da destruição da cidade pelos romanos, mesmo com expressões da profecia do AT.

Lc não especifica os exércitos inimigos, mas menciona a causa do desastre: “Tu não reconheceste o tempo em que foste visitada”. Jerusalém está cega e não reconhece o messias (cf. 24,15s) quem o “visita” (1,68.78; cf. Sb 3,7.13; Jó 10,12; Ex 3,16). A entrada em Jerusalém foi a última oferta da salvação, mas a decisão já está tomada. A rejeição dos conterrâneos de Nazaré (4,16-30) se confirma em Jerusalém.

O site da CNBB comenta: A cidade de Jerusalém abre as suas portas para Jesus, mas não abre o seu coração. Não aceita as suas palavras e rejeita a sua doutrina, pois os seus olhos estão voltados para outra direção, a direção que a levará até a destruição e a morte. É necessário que abramos o nosso coração e reconheçamos que somos visitados pelo Deus da Vida e que rejeitar essa visita significa para nós trilharmos os caminhos da morte, resultado de uma vida de quem apenas está preocupado em olhar para seus interesses mesquinhos e não para os verdadeiros bens que são destinados a quem acolhe o Senhor e vive segundo os valores do Evangelho.

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