24 de Novembro de 2019, Domingo – Solenidade de Cristo Rei do Universo: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado.”

34º Domingo do Tempo Comum – Solenidade de Cristo Rei do Universo

Antes de comentar os detalhes de cada leitura, apresento uma visão de conjunto neste Dia do Cristo Rei e dos Leigos e Leigas, ou seja, do povo deste rei:

Dizer “Cristo Rei” é sinônimo, ou seja, significa a mesma coisa. “Cristo” não é nome próprio (como Jesus), mas um título que vem de christos, palavra grega que traduz o hebraico massiach (messias) e significa “ungido” (de crisma – unção com óleo, azeite). Dizendo “Jesus Cristo”, já estamos professando que Jesus é o messias, o rei esperado pelo povo judeu para libertá-lo, para salvá-lo dos inimigos. O messias é descendente de Davi (cf. a promessas do messias em 2Sm 7 e as profecias: Is 7,14; 9,1-6; Jr 23,5; Ez 34,23s; Mq 5,1-3; Ag 2,23 e Sl 2; 72; 110).

A 1ª leitura da nos apresenta Davi sendo “ungido rei de Israel”. No Antigo Testamento, os reis (e depois também sacerdotes e um profeta) eram ungidos com óleo, sinal de força. A força divina, ou seja, o espírito Santo se precipitou sobre Saul e Davi após sua consagração com óleo (1Sm 10,1.6.10; 16,13). Davi era pastor de ovelhas, mas foi escolhido para ser rei de Israel.

A 2ª leitura apresenta Cristo como rei do universo, mais do que rei de Israel é rei da humanidade e mais ainda, o princípio de todo do universo (cf. Jo 1,1-14; Hb 1,1-4), acima de todas a criaturas, forças cósmicas e dominações. Deus não quer escravidão e violência para seu povo, mas liberdade e paz: “Ele nos libertou do poder das trevas e nos recebeu no reino de seu Filho amado, … Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude, … realizando a paz pelo sangue da sua cruz”.

No Evangelho, Jesus na cruz não é reconhecido como rei, mas escarnecido pelas autoridades judaicas que esperavam um messias guerreiro com Davi, e também pelos soldados romanos que trazem a pax romana (paz romana) através da violência, oprimindo os povos com a força do seu exército. O poder de Jesus é diferente dos reis e imperadores da época e dos presidentes e primeiros ministros de hoje. Ele não tem exército para defendê-lo, mas é o bom pastor que dá a vida pela ovelhas (Jo 10,11), ou seja, o bom rei que dá seu próprio sangue pelo povo, em vez de sugar o sangue do povo, como fazem os corruptos e violentos. Também não é presidente que pode ser derrotado na próxima eleição (ou por impeachment), mas é rei que vive e reina para sempre, por isso pode prometer ao criminoso arrependido o paraíso, a felicidade eterna. Seu reino é “eterno e universal, reino da verdade e da vida, reino da santidade e da graça (misericórdia), reino da justiça, do amor e a paz” (prefácio de hoje).

Hoje também é o Dia dos leigos e leigas, i. é do povo de Deus. A palavra “leigo” tornou-se pejorativa, designando alguém que não entende do assunto, que não é especialista. Mas a palavra vem do grego Laos, “povo”; Leigo, portanto, é membro do povo, do povo particular que Deus elegeu, porque a Bíblia grega usa a palavra Laos para o povo eleito de Israel, não para as nações pagãs.

Na Idade Média, quando os padres rezavam a missa em latim, o povo apenas assistia e não entendia nada, daí o significado atual como pessoa que não entende. O Concilio Vaticano II redescobriu a Igreja como “Povo de Deus”, não apenas a hierarquia do clero, mas a importância dos leigos (cf. os documentos LG e AA). A missão específica dos leigos não é apenas ajudar o padre distribuindo a comunhão, fazer uma leitura e contribuir no dízimo, mas testemunhar e atuar onde é o leigo cristão é especialista, viver os valores do reino na família, na profissão, no lazer, na cultura das artes, na ciência e técnica, na economia, na política, etc. praticando as leis do Cristo Rei (amar a Deus e ao próximo).

1ª Leitura: 2Sm 5,1-3

Depois da morte do rei Saul e seu filho Jônatas na batalha contra os filisteus, o caminho para o trono para Davi está perto, apesar da concorrência pelos partidários da família de Saul. As pessoas que estão entre Davi e o trono são eliminadas uma depois da outra, mas Davi é inocentado de todas mortes (caps. 2-4). Davi já havia ganhado a simpatia da sua própria tribo, Judá (1Sm 27,10-12; 30,26-31).

Davi já foi ungido por Samuel quando Saul ainda governava (1Sm 16,13). Depois da morte do rei Saul, Davi foi ungido rei pelos homens de Judá em Hebron (2,4), mas Isbaal (Isboset), outro filho de Saul, foi constituído rei de Israel (2,9) pelas outras tribos. Em seguida, estourou a primeira guerra entre Israel e Judá. Houve disputas internas pelas quais Isbaal e o Abner, general de Saul, foram assassinados.

Na leitura de hoje, Davi é agora reconhecido pelos israelitas (pelas outras tribos), mas os dois grupos continuam distintos: Davi é rei “sobre todo o Israel e sobre Judá” (v. 5). É uma monarquia dualista, um Reino Unido, agita pelas lutas internas até a cisão depois de Salomão (1Rs 12) num reino do Norte (Israel) e do Sul (Judá).

Nos caps. 5-8 se descreve o início do reino de Judá sobre Israel, sonhado pelo rei Josias da casa davídica que reina em Jerusalém séculos depois em 640-609 a.C., mas somente realizado pelos asmoneus (dinastia dos macabeus, 164-63 a.C.). Também nestes caps. podemos encontrar três níveis redacionais: um antigo, outro do período do rei Josias e outro do pós-exílio.

(Naqueles dias) Todas as tribos de Israel vieram encontrar-se com Davi em Hebron e disseram-lhe: “Aqui estamos. Somos teus ossos e tua carne. Tempo atrás, quando Saul era nosso rei, eras tu que dirigias os negócios de Israel. E o Senhor te disse: ‘Tu apascentarás o meu povo Israel e serás o seu chefe’” (vv. 1-2).

Por sete anos e seis meses, Davi reinava somente sobre Judá e residia em Hebron (cf. v. 4; 2,1), lugar significativo onde ficam os túmulos dos patriarcas (cf. Gn 23). Mas os soldados de Davi (Judá) e o exército de Saul (Israel) continuavam em guerra. Mesmo contra a ordem de Davi, o general do exército de Saul, Abner, e outro filho de Saul, Isbaal, foram mortos (cf. caps. 3-4). Restava só Meribaal, o filho aleijado de Jônatas, para seguir ao trono de Saul. Então Davi atrai todas as esperanças. A antiga oposição de Israel a Judá fica coberta por um sentimento mais forte de irmandade e se lembra das qualidades de Davi quando servia no exército de Saul (1Sm 17-18).

“Somos teus ossos e tua carne”, uma fórmula que expressa parentesco (cf. Gn 2,23; 29,14; Jz 9,2; 2Sm 19,13s). Foi o que Abimelec disse aos habitantes de Siquém para apoiarem sua candidatura real (Jz 9,2), agora as tribos o confessam a Davi. Este não é um estrangeiro imposto, e poderá livrar os seus do poder estrangeiro.

Um oráculo de Javé Deus confirma a esperança de anos melhores: “Tu apascentarás o meu povo Israel e serás o seu chefe.” Este oráculo usa a tradicional imagem do chefe-pastor, que no caso de Davi adquire ressonâncias particulares (cf. 7,7; Jr 23,1-4; Ez 34; Sl 78,70-72). No NT, Mt 2,6 combina este oráculo com a profecia de Mq 5,1.

A Bíblia do Peregrino (p. 558) comenta: Como vemos nas leituras precedentes, Davi começou destacando-se por suas qualidades numa série de circunstâncias militares, externa e internamente; os acontecimentos mostrarão um dia que Davi é o homem de quem se precisa. Esse modo de descobrir, reconhecer, designar, é uma eleição de Deus. Os oráculos não são operações milagrosas. É curioso que esses oráculos sejam recordados mais tarde, à luz dos acontecimentos: 3,10 (Abner), 3,18 (Abner), 5,2.

Vieram, pois, todos os anciãos de Israel até ao rei em Hebron. O rei Davi fez com eles uma aliança em Hebron, na presença do Senhor, e eles o ungiram rei de Israel (v. 3).

O v. 1 fala de “todas as tribos de Israel” (cf. 1Sm 2,28; 9,21; 10,19s; 15,17; 2Sm 15,2.10; 19,10; 20,14; 24,2). O v. 3 só fala de “todos os anciãos de Israel” que ungem o eleito. Essa tradição (cf. 2,4) ignora a unção de Davi por Samuel (1Sm 16,1-13), quando ainda era jovem. Os vv. 1-2 são obras de um redator que aparentemente quis fazer prevalecer a escolha do rei sobre a investidura popular do qual v. 3 conserva a memória.

Esta unção é um marco referencial para a dinastia davídica (cf. 1Sm 16; 1Cr 11,1-3). Davi se torna rei dos israelitas em virtude de uma aliança que ele próprio lhes concede (cf. a negociação em 3,12-21). A Bíblia do Peregrino (p. 558) comenta: O pacto entre rei e povo tem algo de constituição: implica juramento de lealdade mútua e contém normalmente uma série de cláusulas. Os anciãos, como responsáveis de todo o povo, agem como intermediários na unção.

Entre Judá e Israel existirá uma união pessoal, frágil em caso de crise. A Nova Bíblia Pastoral (p. 341s) comenta: As revoltas constantes, como a de Absalão (15,1-18,18), de Seba (20,1-22) e de Jeroboão (1Rs 12) são provas que nunca foi unânime a submissão do norte a Jerusalém. Tudo não passa de um sonho dos reis de Judá, como Josias (640-609 a.C.), para legitimar seu projeto expansionista.

Obs.: Antigamente só os reis foram ungidos (e depois os sacerdotes), mas hoje todos os cristãos são ungidos (no batismo e na crisma), portanto, são reis (e sacerdotes e profetas). Hoje isso exige uma responsabilidade maior do que antigamente quando só os reis determinaram a vida e o povo não teve nem voz nem vez. Hoje vivemos numa “democracia”, palavra grega que quer dizer, o povo dos cidadãos tem poder e governa através do seu voto. Os leigos e leigas da Igreja de hoje, portanto, devem se conscientizar da sua dignidade e se dispor a trabalhar pelo bem comum de todos, não apenas votar de dois e dois anos nas eleições, mas se candidatar também e acompanhar os eleitos no dia a dia e transformar este país numa sociedade que segue os valores do reino de Deus, votar em Cristo Rei todo dia.

 

2ª Leitura: Cl 1,12-20

Na segunda leitura de hoje, o autor da carta aos colossenses (Paulo ou um discípulo dele, talvez Epafras, cf. v. 7) nos apresenta um hino cristológico que celebra a grandeza universal de Cristo em duas estrofes (após uma introdução vv. 12-14). A primeira, (vv. 15-17), mais transcendental, tem como centro a criação (“Ele é a imagem de Deus…”), a segunda, mais eclesial, a ressurreição (“Ele é o começo…”), mas as duas partes combinam os atributos cósmicos (vv. 15.16.19) com os da redenção (vv. 14.18.20). A linguagem diferente dos vv. 13-14 indica que o hino é um material do qual o autor (um discípulo de Paulo) se apossa e cita de maneira mais completa, provavelmente acrescentando alguns complementos (p. ex. “isto é, da igreja” em v. 18).

A origem do hino pode ser uma adaptação de um hino helenístico (a expressão de v. 19 “plenitude” era abundante na filosofia estóica e gnóstica, mas é também bíblica, cf. Cl 2,9; Is 6,3; Jr 23,24; Sl 24,1; 50,12; 72,19; Sb 1,7; Eclo 43,27), ou é uma composição cristã de inspiração sapiencial. Os livros sapiências do AT (Antigo Testamento) cultivaram um gênero especial: o elogio da Sabedoria como personagem feminina. Da personificação o NT (Novo Testamento) salta para a pessoa, do feminino ao masculino. Como a Sabedoria, Cristo é “imagem de Deus” (Sb 7,26), preexiste toda a criatura (Pr 8,22-26), toma parte ativa na criação (Pr 8,27-30) e conduz os homens a Deus (Pr 8,31-36).

No NT, dois outros hinos celebram igualmente o papel universal e pré-existente de Cristo: Jo 1,1-18 e Hb 1,1-4 (cf. 1Cor 8,6 e Fl 2,5-11), ambos lidos em 25 de dezembro. Em Fl 2,5-11, o próprio Paulo já incorporou um hino que parte da pré-existência de Jesus. Estes hinos provavelmente tiveram sua origem na liturgia (cf. ainda 1Tm 3,16 e 1Pd 2,22-25).

(Irmãos) Com alegria dai graças ao Pai, que vos tornou capazes de participar da luz, que é a herança dos santos. Ele nos libertou do poder das trevas e nos recebeu no reino de seu Filho amado, por quem temos a redenção, o perdão dos pecados (vv. 12-14).

Antes do próprio hino, o autor utiliza o esquema básico do êxodo, repetido inúmeras vezes no AT, se articula em duas fases: tirar de, levar ou introduzir em (do Egito à Canaã, da Babilônia à pátria etc.). Cristo nos “libertou” (tirou, arrancou) “do poder das trevas”, i. é. “a redenção, o perdão dos pecados” (esta expressão não ocorre nas cartas indiscutivelmente paulinas, cf. Mt 26,28; Ef 1,7; Hb 9,22; 10,18).

“Trevas” para o judeu não é simples ignorância, escuridão mental, mas significa a morte, inclusive o não ser (cf. Jó 3). Seu oposto, a “luz”, é a vida; ver a luz é viver (Jo 3,21). O reino de Cristo é reino de Luz. Ao esquema binário básico acrescentam-se dois elementos tradicionais: o resgate de escravos (Ex 6,6; 15,13) e a partilha da terra. O resgate é agora o “perdão”, e partilhar a terra é “partilhar a sorte” (terminologia do livro de Josué).

A visão é inteiramente comunitária, não individualista. Os vv. 12-14 têm um paralelo notável em At 26,18: o poder das trevas, a transferência de um reino para outro, a herança, o perdão dos pecados, a entrada na sociedade dos santos. A “herança dos santos” é a salvação antes reservada a Israel (Ex 19,6; Dn 7,18), para a qual são agora chamados os gentios (Ef 1,11-13.18; 1Pd 2,5.9; Rm 1,7). Os “santos” designam ou os cristãos chamados desde este mundo a viver na luz da salvação (Rm 6,19; 13,11-12; cf. At 9,13), ou os anjos que vivem com Deus na luz escatológica (Jó 5,1; Mc 8,38p; Jd 14; Ap 14,10).

A expressão “Filho amado (filho do seu amor)” lembra o batismo e a transfiguração de Jesus (Mc 1,11; 9,5; cf. 12,6); é o título no hino de Ef 1,6.

A mudança de “vós” (v. 12) para “nos” (v. 13s) sinaliza o uso de material litúrgico e prepara o hino que se segue (vv. 15-20; leitura de amanhã).

Cristo é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois por causa dele, foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e poderes. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele existe antes de todas as coisas e todas têm nele a sua consistência (vv. 15-17).

Primeira parte do hino: Cristo é exaltado como cabeça do universo (e da Igreja em v. 18): um entrelaçado de alusões envolve esse tema. Em hebraico, começo, primícias, chefe derivam da mesma raiz, a de cabeça; a própria Bíblia começa com esta palavra: Be-reshit…, “No início,…” (Gn 1,1; cf. Jo 1,1).

O Deus invisível e inatingível se torna visível e acessível em Jesus, o Filho que se encarnou no mundo e na história. Jesus é, portanto, o verdadeiro Adão (Gn 1,26s; cf. 2Cor 4,4). Existindo “antes de todas as coisas” (criatura), ele se torna modelo, cabeça e único mediador do universo criado (cf. Hb 1,2s; Jo 1,2s.10).

Cristo é a “imagem de Deus” (2Cor 4,4) como homem criado por Deus (cf. Gn 1,26), mas também como Sabedoria (Pr 8,22-36; Sb 7,26; cf. Pr 3,19; 9,2-4). O filósofo grego Platão identificou esta imagem com o mundo; o filósofo judeu Filon, com o logos (palavra); Paulo e João, com Jesus (cf. 2Cor 4,4; Jo 1,14). Paulo fala também dos seres humanos à imagem de Cristo ou de Deus (Rm 8,29; 1Cor 11,7; 15,49; 2Cor 3,18).

Enquanto Deus era invisível, a proibição de fazer imagens (Ex 20,3-5; Dt 5,7-9; etc.) valia para não confundir Deus com uma criatura qualquer ou com deuses monstruosos (no Egito, eram apresentadas com cabeças de animais). Mas em Jesus Cristo, a Palavra invisível se tornou carne, Deus se tornou visível no seu Filho (cf. Jo 1,14.18; 12,45; 14,9; Tomé tocou nele, cf. Jo 20,27s). Aos poucos os cristãos entenderam a nova situação, a nova aliança (NT), a partir daí fazer imagens de Jesus (e dos santos) não poderia ser mais proibido, e mudou-se o primeiro mandamento, como mudou também o terceiro (do sábado para o domingo).

“Primogênito” implica em Israel, preeminência e consagração (Ex 13,11-16; Lc 2,7.23); o termo designa também o papel privilegiado da Sabedoria (Pr 8,22). “Primogênito de toda criação (ou de toda criatura)”, trata-se do Cristo preexistente (“anterior a toda criatura”), mas sempre considerando (cf. Fl 2,5) a pessoa histórica e única do Filho de Deus feito homem. É esse ser concreto, que é “imagem de Deus” enquanto reflete numa natureza humana visível “a imagem do Deus invisível” (v. 15; cf. Rm 8,29; 2Cor 4,4) e é ele que pode ser chamado “criatura”, mas “primogênito” na ordem da criação, como um primado de excelência e de causa, assim como de tempo. O Credo Niceno-Constantinopolitano especifica: o Filho de Deus é “gerado, não criado”, contra a heresia de Ário (séc. IV) que queria aceitar Jesus só como se fosse a primeira criatura e não como pessoa divina da Trindade (no séc. 19 nos EUA, as Testemunhas de Jeová surgiram e retomaram a esta mesma heresia).

“Por causa dele, foram criadas todas as coisas” Ele é o primogênito de toda criatura porque tudo o mais que foi criado por sua intercessão. Algumas expressões em seguida mostram o alcance da criação: começa com a antítese – “céus e terra, visíveis e invisíveis” – e continua com sinônimos de força e poder: “tronos, soberanias, principados e autoridades” designam aqui as potências invisíveis (angélicas ou astrais) do mundo sincretista sobre as quais se especulava em Colossas (cf. 2,15; Ef 1,21; 3,10; 6,12; Rm 8,38; 1Cor 8,4-6; 15,24; Fl 1,21; 2,10s; 1Pd 3,22; em 2Pd 2,10 e Jd 8 estes poderes são terrenos).

Ele é a Cabeça do corpo, isto é, da Igreja. Ele é o Princípio, o Primogênito dentre os mortos; de sorte que em tudo ele tem a primazia, porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres, os que estão na terra e no céu, realizando a paz pelo sangue da sua cruz (vv. 18-20).

Segunda parte do hino: Primeiro a ressuscitar dos mortos, Cristo é o novo Adão (1Cor 15,20-22), pois na nova criação ele é o “primogênito” (Rm 8,29; 1Cor 15,20; Ap 1,5). Assim, o poder vital de Deus se torna acessível aos homens por meio de Cristo, reconduzindo a criação à paz. A pacificação do universo está na remissão dos pecados (v. 14) realizada por Cristo dando sua vida (semitismo: seu sangue) na cruz. O cálice na ceia pascal é o cálice da paz, o qual Jesus identificou com seu sangue na última ceia (cf. Mt 26,28).

No hino primitivo, o termo “corpo” (v. 18) significava o corpo cósmico, o “universo”; com o acréscimo da expressão “que é a Igreja”, passou a indicar a comunidade da nova criação, da qual Cristo é a “cabeça”, tema importante em Cl (1,24.27; 2,17.19; 3,15).

Paulo já comparou a Igreja com o Corpo de Cristo (cf. 1Cor 6,15; 10.16s; 12,12-27; Rm 12,4s), mas entendia a igreja como entidade local e não fez distinção entre corpo e cabeça. Em Rm 12 e 1Cor 12, o corpo designa a comunidade dos fiéis (em 1Cor 12,21 a cabeça é só um membro do corpo); em Ef e Cl, Cristo, chefe das potências e do universo, torna-se chefe da Igreja universal como cabeça personificada (v. 18; Ef 1,23; 4,15s; 5,23). Cristo é a cabeça, por sua prioridade no tempo (v. 1; ele é o primeiro ressuscitado, cf. 1Cor 15,23), como também por ser “princípio” na ordem da salvação (v. 20).

“Deus quis habitar nele com toda a sua Plenitude” ou “Deus, a Plenitude total, quis nele habitar” (v. 19). No gnosticismo, a Plenitude era todo o corpo de poderes celestiais e emanações espirituais procedente de Deus. No ensinamento errôneo, que o autor da carta criticará no cap. 2, provavelmente estavam presentes ideias gnósticas.

Já no AT celebrava-se o mundo cheio da presença e da glória de Deus que nele habita (cf. Is 6,3; Sl 24,1; 68,17) ou a sabedoria considerada morada de Deus que vem habitar na terra (cf. Pr 8,12-21; Eclo 24,7s.10; Br 3,38; cf. Jo 1,14). Esta plenitude reside agora em Cristo, “pois nele habita corporalmente toda plenitude da divindade” (2,9; cf. 2,2; Ef 1,10.23; 3,19; 4,13; Jo 1,16). No NT, o termo é geralmente determinado (plenitude de tempo, das nações, da Lei, de Deus), aqui empregado de modo absoluto (então próximo de “Espírito”).

“Quis reconciliar por ele e para ele todos os seres, na terra e nos céus” (v. 20). O sujeito de reconciliação é sempre Deus (Rm 5,10; 2Cor 5,18-20). Aqui, adquire sua maior extensão, englobando o céu e a terra.

 

Evangelho: Lc 23,35-43

A paixão de Cristo narrada por Lc segue a de Mc, mas tem suas peculiaridades. No cap. 23, Jesus é acusado de subversão e negação de impostos, e interrogado também por Herodes; no caminho ao Calvário, faz um profecia às mulheres de Jerusalém; na cruz, pede perdão por seus inimigos e promete o paraíso ao ladrão arrependido que foi crucificado com ele. Ao morrer, Jesus reza outro salmo. Estas mudanças se explicam pela situação de Lc (já escreve depois da destruição de Jerusalém e do templo em 70. d.C.) e sua intenção de destacar Jesus misericordioso para com os pecadores e confiante (rezando) ao Pai.

(Naquele tempo) os chefes zombavam (de Jesus), dizendo: “A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido!” Os soldados também caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, e diziam: “Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo!” Acima dele havia um letreiro: “Este é o Rei dos Judeus” (vv. 34b-38).

Narrando a distribuição das roupas por um sorteio (v. 34b; cf. Sl 22,19) e a zombaria dos chefes (cf. Sl 22,7s), Lc segue Mc, mas sem a menção da hora e da destruição e reconstrução do templo (Mc 15,23-32).

A ironia incrédula dos chefes, Lc opõe o silencio respeitoso do povo. “Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido!” lembra a tentação do diabo no deserto (4,3) e a palavra em Nazaré, “Médico, cura-te a ti mesmo” (4,23);

“O Cristo de Deus”, como Pedro na sua profissão de fé (9,20); alguns manuscritos têm: “O messias, o filho de Deus” (cf. Mt 24,40,43). O “Escolhido”; como na palavra do Pai na transfiguração (9,35). Este título alude ao Servo de Javé (Is 42,1). Em Is 49,7 designa o Servo desprezado pelos homens, mas escolhido por Deus para a sua obra de salvação.

“Acima dele havia um letreiro” (vários manuscritos acrescentam: em letras gregas, latinas e hebraicas; cf. Jo 19-20): “Este é o Rei dos Judeus”; Lc reúne nos vv. 37-38.42 traços que marcam a realeza de Jesus. Além do significado da acusação jurídica, Lc entende o título da cruz também como zombaria. Em Jo 19,21 os sacerdotes entenderam o título como escárnio do povo judeu por parte de Pilatos.

A Bíblia do Peregrino (p. 2536) comenta: Também as zombarias correspondem à profecia (Sl 22,7-8). “Vamos ver se é verdade o que diz, comprovando como é sua morte; se esse justo é filho de Deus, este o auxiliará e o arrancará das mãos de seus inimigos” (Sb 2,17-18)… Oferecem vinagre como bebida refrescante; também recordando o salmo (69,21). A zombaria dos soldados faz eco à dos chefes judeus: a “Messias” corresponde “rei dos judeus”. A zombaria está no tom, pois o que dizem é verdade, embora o título clássico seja Rei de Israel. O título infamante da cruz é título honorífico. Jamais esqueça o cristão que Jesus era judeu e da dinastia real.

Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!” Mas o outro o repreendeu, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal.” E acrescentou: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado.” Jesus lhe respondeu: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (vv. 39-43).

Outra vez, Lc insere um passagem que demonstra a misericórdia de Jesus para com os pecadores até na hora da morte. Os vv. 40-43 são próprios de Lc, que se interessa por cenas de conversão (7.36-50; 19.1-10; At 9,1-25; 10; 16,14s.29-34). Em Mc e Mt, também os dois ladrões na cruz o insultaram. Em Lc, só um insulta, outro se converte na última hora, temendo o juízo de Deus. Os conceitos do reino de Deus, do reinado do messias e do paraíso se fundem neste diálogo.

A Bíblia do Peregrino (p. 2536s) comenta: A cena é própria de Lucas e é elaborada com cuidado. Dois malfeitores do mesmo tormento e os destinos opostos por sua relação com Jesus. À direita e à esquerda: como as bênçãos e maldições da aliança (cf. Js 8,33), como no julgamento de Mateus (Mt 25,31). A separação e oposição tratam do tema da realeza. Para um, serve à zombaria do desesperado, não ao pedido sério de um milagre; não há milagre que os salve. Para outro, é revelação misteriosa e acolhida com fé. Dá por descontado que esse condenado um dia será rei e lhe pede que então se lembre de seu companheiro de suplício (como José no cárcere, Gn 40,41).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2536) comenta: O “mau ladrão” interpela a Jesus como “Cristo” (v. 39); o “bom ladrão” reconhece-o como “Rei” (v. 42): são os dois títulos, religioso e político, em redor dos quais girou todo o processo de Jesus, primeiro perante aos judeus, depois diante de Pilatos.

“Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal.” A fé do bom ladrão passa pela confissão do crime e pela aceitação da pena, por compreender que zombar desse homem é não respeitar a Deus. Reconhece a própria culpa e condenação justa e declara Jesus inocente “ele não fez nada de mal”. Ainda confia-se a Jesus como messias/rei: “Jesus (outros manuscritos tem: Senhor), lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado” (cf. Sl 106,4). “Lembra-te” é pedido frequente nos salmos (Sl 25,6; 74,2; 119,49) e repete uma fórmula de oração de moribundos frequente no judaísmo.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1288) comenta: A inscrição no ato da cruz inspirou a atitude de um dos que com Jesus eram executados, e o reconhecimento de que Jesus passou a vida fazendo o bem, particularmente aos pobres. Seu pedido se justifica por ter reconhecido que a ação deste rei era a de promover a vida em um cenário de tanta morte. É o que ocorre nessa hora derradeira.

“Quando entrares no teu reinado” ou: “quando vieres com teu reino” (isto é, de posse de teu reino); ou: “quando viras a teu reino”, isto é, para inaugurá-lo. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2032) traduz “quando vieres como rei” e comenta: Vários mss. trazem: ao teu Reino (no sentido de: ao entrar nele). Mas aqui trata-se antes da dignidade régia com a qual Jesus aparecerá revestido em sua volta (cf. 19,12; 24,26).

Jesus responde solenemente: “Em verdade (lit. Amém) eu te digo” (cf. 4,24; 21,37; 18,17.29; 21,32), e promete mais do foi pedido: “Ainda hoje estarás comigo no Paraíso”.

Ao pedido “quando” responde a promessa “hoje” (cf. Fl 1,23). Para os judeus já é escandaloso um pecador (aqui um criminoso) estar em comunhão com o messias, mas até para os cristãos parece problemática a palavra “ainda hoje”. Jesus não vai descer primeiro à mansão dos mortos antes de ressuscitar “no terceiro dia”? Lc, porém, não quer oferecer uma doutrina escatológica, mas entende “hoje” de maneira enfática como palavra que comunica a salvação (cf. 2,11; 4,12; 19,5.9). O decisivo é “estar com Jesus”, sinônimo do paraíso para Paulo (Fl 1,23; 1Ts 4,17).

Para certos judeus da época, o paraíso é o lugar onde os justos falecidos esperam a ressurreição (cf. Lázaro em Lc 16,22-31). A palavra “paraíso” que vem dos jardins na Mesopotâmia e Pérsia, no sentido original, “parque”. No judaísmo, foi outrora representado pelo Jardim do Éden. A Bíblia do Peregrino (p. 2537) comenta: “Paraíso” (no sentido original, “parque”) é imagem de uma vida feliz após a morte, na qual Jesus exercerá seu reinado. Jesus já possuiu o poder e pode prometer com segurança e generosidade régia. A salvação é “estar com ele” (cf. 1Ts 4,17).

Obs.: Na tradição posterior, o nome do bom ladrão é Dimas (pela primeira vez no evangelho apócrifo de Nicodemos). A Wikipedia informa: Pela tradição cristã, São Dimas é o protetor dos pobres agonizantes, sobretudo daqueles cuja conversão na última hora parece mais difícil. Entregam a São Dimas a proteção das casas e propriedades contra os ladrões. Invocam-no nas causas difíceis, sobretudo nos negócios financeiros, para a conversão e emenda dos bêbados, dos jogadores e ladrões. É protetor dos presos e das penitenciárias, dos carroceiros e condutores de veículos. A Igreja Católica celebra dia 25 de março como dia de São Dimas.

Voltar