24 de abril de 2018 – terça-feira: A Bíblia do Peregrino (p. 2655s) expõe em síntese seletiva o que a narrativa do autor Lucas em Atos supõe:

Leitura At 11,19-26

A leitura de hoje nos apresenta o início da missão sistemática aos pagãos. A conversão do eunuco da Etiópia (8,26-40) e do centurião romano Cornélio (cap. 10) foram fatos individuais, embora significativos. A fundação e a consolidação da igreja da Antioquia significa uma abertura e erradicação institucional. Antioquia fica no sul da atual Turquia, a margem do rio Orontes, era capital da província romana da Síria e terceira cidade do império (depois de Roma e Alexandria do Egito).

A Bíblia do Peregrino (p. 2655s) expõe em síntese seletiva o que a narrativa do autor Lucas em Atos supõe:

Roma, Alexandria e Antioquia são as três grandes metrópoles do mediterrâneo central e oriental. Roma representa o poder imperial e a nova cultura romana; Alexandria recolhe a herança cultural grega; Antioquia é a ligação com mundo oriental. As três são populosas e pluraristas em raças, povos, culturas, línguas e religiões. A língua grega é o meio mais frequente da comunicação. É curioso que Lucas não tenha incluído Alexandria em sua história, só menciona a sinagoga dos alexandrinos (6,9) e um alexandrino chamado Apolo (18,24). Os que vivem nessas cidades estão acostumados a encontrar-se com gente diversa; ao invés, Jerusalém é uma cidade relativamente fechada.

Antioquia tinha sido a capital selêucida das lutas dos macabeus (cf. 1-2 Mc). Já então tinha favorecido os contatos e provocados tensões entre judaísmo e cultura grega.

Quanto às pessoas que vão intervir (e já intervieram), vamos propor um quadro esquemático sacrificando matizes. Em ambos os extremos se encontram judeus puros e pagãos puros. Entre os judeus se destacam o grupo fechado e hostil à nova “seita dos nazarenos” (primeira etapa de Saulo-Paulo, sinagogas locais) e os tolerantes (Gamaliel). Segue-se o grupo dos judeus que sem deixar de ser judeus abraçam a fé cristã (os apóstolos); entre eles um partido defensor da circuncisão e da lei como condição para tornar-se cristão (Tiago). Vêm depois os helenistas convertidos, judeus da diáspora de língua grega; menos ligados a práticas judaicas e mais abertos (Estevão, Filipe). Pagãos prosélitos, simpatizantes da religião judaica que abraçam a fé (o eunuco, Cornélio), pagãos sem relação com o judaísmo, que passam diretamente à fé cristã.

Aqueles que se haviam espalhado por causa da perseguição que se seguiu à morte de Estêvão, chegaram à Fenícia, à ilha de Chipre e à cidade de Antioquia, embora não pregassem a Palavra a ninguém que não fosse judeu (v. 19).

O evangelho se espalha para fora de Israel, aqui em direção ao norte. O v. 19, retomando 8,1 e 8,4, introduz o episódio da fundação da igreja de Antioquia como consequência do martírio de Estevão, do qual foi separado pela inserção dos Atos de Filipe (8,5-40) e de Pedro (9,31-11,18). A narrativa supõe, contudo a história da vocação de Saulo (9,1-30), ela também relacionada com o martírio de Estevão.

Contudo, alguns deles, habitantes de Chipre e da cidade de Cirene, chegaram a Antioquia e começaram a pregar também aos gregos, anunciando-lhes a Boa Nova do Senhor Jesus. E a mão do Senhor estava com eles. Muitas pessoas acreditaram no Evangelho e se converteram ao Senhor (vv. 20-21).

Por seu pluralismo cultural e religioso, a cidade de Antioquia oferece um campo de operações oportuno para novas experiências. Inicialmente gerada pela igreja de Jerusalém, converte-se logo no grande centro de irradiação do “Evangelho” (Boa Nova).

Aqui se mencionam brevemente duas fases da evangelização, a primeira a dos helenistas, dirigida exclusivamente aos judeus (v. 19; cf. Mt 10,5s). Não diz que êxito tiveram. A outra audaz de cipriotas e cirenaicos, dirigida aos pagãos, aos “gregos” (v. 20; var: “helenistas”, cf. 9,29), em oposição a “judeus” (v. 19) designa os incircuncisos em geral. Deus os apóia, “a mão do Senhor estava com eles” (cf. Lc 1,66), e o êxito é notável. Isso significa que em Antioquia começa a existir uma numerosa comunidade cristã sem vínculos precedentes com o judaísmo.

O titulo “Cristo” correspondia à expectativa particular dos judeus, mas a pregação aos gentios (pagãos) prefere dar a Jesus o título de “Senhor” (cf. o título aplicado ao imperador em 25,26). Jesus é “Senhor”; pela sua exaltação à direita de Deus tornou-se o soberano do reino do fim dos tempos (cf. 2,21.36; 7,59-60; 10,36; 1Ts 4,15-17; 2Ts 1,7-12; Rm 10,9-13).

A notícia chegou aos ouvidos da Igreja que estava em Jerusalém. Então enviaram Barnabé até Antioquia. Quando Barnabé chegou e viu a graça que Deus havia concedido, ficou muito alegre e exortou a todos para que permanecessem fiéis ao Senhor, com firmeza de coração. É que ele era um homem bom, cheio do Espírito Santo e de fé. E uma grande multidão aderiu ao Senhor (vv. 22-24).

Segundo o autor dos Atos, a igreja de Jerusalém conservava a alta direção e a responsabilidade última (cf. a necessidade da justificação de Pedro em 11,1-18) pela transmissão da fé autêntica. Esta igreja, como origem e centro da Igreja primitiva, usa de um direito de vigilância sobre as outras igrejas (cf. 8,14; 11,1; Gl 2,2). Diante a nova situação em Antioquia, tem de tomar partido, informando-se e agindo.

Aqui o narrador introduz dois personagens que já apareceram no livro: Barnabé e Paulo. O primeiro, embora cipriota helenista, não pertence ao grupo de Estevão, mas colaborou com os apóstolos. Foi um dos protagonistas na experiência da comunidade de bens (4,36s). Parece uma pessoa apta para conduzir as relações entre Jerusalém e Antioquia. “Exortou a todos”, jogo de palavras, parecido com o nome de Barnabé, “filho de exortação/consolação” (4,36). O texto de hoje o elogia (v. 24): “homem bom, cheio do Espírito Santo e de fé”, dotes que lhe permitem apreciar e discernir os fatos e planejar para o futuro.

Então Barnabé partiu para Tarso, à procura de Saulo. Tendo encontrado Saulo, levou-o a Antioquia. Passaram um ano inteiro trabalhando juntos naquela Igreja, e instruíram uma numerosa multidão (vv. 25-26b).

O segundo personagem é Saulo, cujos dotes Barnabé parece conhecer ou intuir. Ele busca Saulo-Paulo na cidade natal dele, Tarso (no sul da atual Turquia, perto de Antioquia) para onde se havia refugiado (cf. 9,11.30; 22,3). E ambos “trabalharam juntos”, sentido incerto; poder-se-ia entender: agiram de acordo, juntos ou: “foram ambos recebidos (pela igreja)”, isto é foram hóspedes dessa igreja local.

Notamos que no começo é Barnabé que dirige. Sua colaboração durante o ano inteiro em terreno privilegiado deve ter incluído dois aspectos: a pregação direta do evangelho a grupos diversos, e a elaboração de novas formas de pregação para os pagãos.

Em Antioquia os discípulos foram, pela primeira vez, chamados com o nome de cristãos (v. 26c).

O grupo dos fiéis recebe dos de fora um nome que é todo um símbolo. O conteúdo judaico chamado Messias (=Ungido) é traduzido livremente para o grego com o particípio passivo Christós; e quando os romanos lhe acrescentam o morfema latino de adjetivo, resulta christianos = “cristão”, isto é partidário ou sectário de Cristo (o grego Christos exisitu também na forma popular Chrestós). Ao criarem esta alcunha, os gentios de Antioquia tomaram o título de “Cristo” (ungido, Messias) por um nome próprio.

A perseguição tinha efeito de semeadura: os cristãos espalhados eram sementes jogadas sobre a terra, germinando em todos os campos e terrenos. A intenção inicial dos apóstolos era ficar somente em Jerusalém, pelas perseguições é que eles saíram, como que obrigados. E ficaram surpreendidos, porque eles não esperavam tanto sucesso. É que a evangelização não é obra nossa, é obra da “mão do Senhor” (v. 21).

 

Evangelho: Jo 10,22-30

O discurso sobre o bom pastor (vv. 1-18) provocou reações diversas entre o povo judeu (vv. 19-21; cf. 7,12s.25ss. 40ss), uns eram hostis (“endemoninhado e louco”, v. 20; cf. 8,48), outros ficaram em dúvida e queriam saber mais.

Celebrava-se, em Jerusalém, a festa da Dedicação do Templo. Era inverno. Jesus passeava pelo Templo, no pórtico de Salomão (vv. 22-23).

Novamente e pela última vez em Jo, Jesus se encontra no templo. O leitor já sabe que o verdadeiro templo, lugar de adoração e encontro com Deus é o próprio Jesus (2,21; cf. 1,14; 4,23; 7,37ss; 8,19.24.32; 10,36). A festa da Dedicação celebra a purificação do templo e nova consagração do altar no tempo de Judas Macabeu (164 a.C.; cf. 1Mc 4,59). Como a festa cai em dezembro, no frio do “inverno”,o povo se refugia nos pórticos do templo (cf. At 3,11). A lembrança da luta dos  macabeus atualizava a esperança messiânica de libertação e a polêmica seguinte versará sobre dois títulos: Messias e Filho de Deus.

Os judeus rodeavam-no e disseram: “Até quando nos deixarás em dúvida? Se tu és o Messias, dize-nos abertamente” (v. 24).

Os (chefes dos) “judeus” rodeiam Jesus e exigem uma resposta “aberta” (não mais em parábolas, cf. v. 6; 16,25.29) e inequivocada sobre sua condição de messias (2,18; 5,16; 6,30; 8,25); a situação é semelhante em 7,2ss e 8,24ss (cf. o interrogatório de João Batista em 1,19-28). Nos evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) é o sumo sacerdote que põe esta pergunta no sinédrio antes da paixão (cf. Mc 14,61p). Em Jo 18,19, Jesus responderá ao sumo sacerdote: “Sempre falei abertamente diante de todo mundo, no templo e na sinagoga…” (18,19).

 

Jesus respondeu: “Já vo-lo disse, mas vós não acreditais. As obras que eu faço em nome do meu Pai dão testemunho de mim (v. 25).

A resposta exigida pelos judeus mostra sua falta de fé (cf. 7,4s). Se quisessem crer, as palavras já ditas a eles bastariam. Nelas Jesus já declarou, quem ele era, o “enviado” de Deus (cf. 2,19; 5,17s.39; 6,32s; 8,24.28s.56ss; 9,37), disse até que era o Messias usando a metáfora do “bom pastor” em vv. 11 e 14. Suas palavras se confirmaram através do “testemunho” da suas “obras” (cf. 5,36; 9,4). Para quem quer crer, é suficiente. Uma palavra mais aberta não adiantaria em nada.

O título Messias é ambíguo despertando expectativas por um guerreiro do cunho de Davi ou de Judas Macabeu. Jesus o evita e dá em troca o conteúdo da sua missão, isto é, “dar vida eterna” (v. 27) e proteger e agir em nome do Pai. As obras dele são a garantia da sua missão.

Vós, porém, não acreditais, porque não sois das minhas ovelhas. As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem (vv. 26-27).

Jesus pronuncia a sentença sobre os judeus: “Não acreditais, porque não sois das minhas ovelhas” (v. 26; cf. 8,47). Se fossem suas ovelhas, escutariam sua voz e seguiriam (cf. v. 27).

Ser ovelha dele não é simples predestinação, mas presupõe a decisão da fé: em vv. 1-4, a separação das ovelhas se faz pela voz do pastor que inclui a decisão das ovelhas. Quem se decide a ouvir e segui-lo, pretence aos “seus” (1,11ss). Mas a fé também é dom de Deus (cf. Mt 16,17) e depende de condições fora da decisão consciente do ser humano. Como amor é evocado pelo amor do amado e amizade pelo amigo, assim também a fé. É atração (12,32) e condução (6,44). Para acreditar em Jesus, precisa sentir-se atraído e ligado a ele, ou seja: ser “de cima, do alto” (8,23), “de Deus” (8,47), “da verdade” (18,37) e pertencer aos “seus” (1,11; cf. 10,14).

Eu dou-lhes a vida eterna e elas jamais se perderão. E ninguém vai arrancá-las de minha mão. Meu Pai, que me deu estas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatá-las da mão do Pai. Eu e o Pai somos um“ (vv. 28-30).

Esta relação interior e íntima com Jesus (como a dele com o Pai) permanece para a “vida eterna” e nenhum poder do mundo poderá acabar com ela (cf. Mt 16,18). Ninguém poderá “roubar” esta ovelhas (cf. vv. 8-10; em vv. 28 e 29, o mesmo verbo foi traduzido diferente: arrancar, arrebatar; outra tradução de v. 29 seria: “Meu Pai que me deu isto,… e ninguém pode roubá-lo…”).

Jesus está cumprindo a missão do Pai que “é maior que todos” e ninguém pode frustrá-lo. A segurança que Jesus dá é estar na “mão do Pai”. Quem está na mão de Jesus, também está na mão de Deus, cf. Sb 3,1: “As almas dos justos estão na mão de Deus e nenhum tormento os pode atingir”.

Conclui-se com uma afirmação, que reflete um estado maduro da fé cristã, o primeiro cume da teologia joanina: “Eu e o Pai somos um“ (v. 30; cf. 1,2). Esta frase chave provocará mais uma vez a fúria dos “judeus” que queriam “apedrejar” Jesus pela “blasfêmia” (cf. Lv 24,16), “porque sendo homem te fazes Deus” (vv. 31-33). Eles tomam a frase no sentido forte que contradiz o monoteísmo exclusivo de Israel (cf. Dt 6,4: “Javé, nosso Deus, é único”; Ex 20,3: “Não terás outros deuses fora de mim”, etc.).

No contexto, se refere à ação, às obras. A união mística vale embora Jesus esteja na terra e o Pai no céu, embora Jesus soubesse “que de Deus tinha saído e para Deus voltava” (13,3). Não se afirma uma unidade de identidade, mas um paradoxo. O Filho não é o Pai em pessoa, no entanto pode revelar-se com a fórmula “Eu sou” (Is 43,10; Ex 3,14). “Eu sou” é o nome divino revelado a Moises (Ex 3,14: Javé, na tradução grega: “Eu sou aquele que sou”. Em Jo se aplica também a Jesus (cf. Jo 6,20; 8,24.28.58; 13,19 e também 6,35; 18,5.8). Em Jesus, Deus mesmo aparece na terra, no tempo e na história, e se faz presente (1,1s.14). Esta frase resume o que Jesus já falou sobre sua união com o Pai: 3,35; 5,17.19-29; 6,20.45; 8,19.24.28.58 (cf. 2,11; 14,7-9; 17,11.21).

A reflexão teológica posterior, meditando sobre este texto e semelhantes, cunhará a fórmula trinitária das “pessoas” e da “natureza” (cf. o Credo dos Concílios de Niceia e Constantinopla): o paradoxo de “um” Deus (uma natureza divina) em “três” pessoas (Pai, Filho, Espírito) e Jesus de Nazaré tendo duas naturezas (uma divina, um humana).

O site da CNBB comenta: Colaborar na missão salvífica de Jesus através da ação pastoral da Igreja significa levar as pessoas a reconhecerem nele o Deus vivo encarnado para a salvação de todos os que nele crerem. Para que esta ação surta efeito, o anúncio é necessário, mas por si só é insuficiente. Não basta apenas falar de Jesus, é preciso obras, é necessária a vivência dos valores evangélicos, o amor precisa ser concretizado. Mas acima de tudo, é necessária a consciência de que somos participantes da divina missão de salvação dos homens e que quem realiza esta obra não somos nós, mas sim o próprio Deus, é ele quem pastoreia através de nós. Somos na verdade canais de graça para que os homens ouçam a voz de Jesus, sintam-se integrantes do seu rebanho e o sigam rumo à vida eterna.

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