24 de agosto de 2016 – Quarta-feira São Bartolomeu, apóstolo

Bartolomeu é um dos doze apóstolos e identificado com Natanael de Caná (cf. Evangelho de hoje). Segundo a tradição, ele sofreu o martírio na Armênia, o primeiro país que adotou o cristianismo como religião oficial em 300 d.C.; em 1915, sofreu um genocídio até hoje negado pelos turcos. No painel da Capela Sixtina que mostra o juízo final, Bartolomeu é retratado  segurando a sua pele (que foi tirada no martírio) com a feições do próprio pintor Miguelângelo (1540).

Leitura: Ap 21,9-14

A leitura faz alusão à visão anunciada no evangelho de hoje: “Vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem” (Jo 1,51). Nos capítulos finais do Apocalipse de S. João, a nova relação que existe entre Deus e os seres humanos é apresentada como “novo céu e nova terra” (v. 1; cf. Is 65,17-25). A Nova Jerusalém é a cidade que Deus vai construir como dom (vem “do céu”, v. 2) para os seres humanos. Na leitura de hoje, João descreve a nova humanidade como cidade perfeita e deslumbrante.

Um dos setes anjos … veio até mim e disse-me: “Venha! Vou lhe mostrar a esposa, a mulher do Cordeiro.” E me levou em espírito até um grande e alto monte. E mostrou para mim a Cidade Santa, Jerusalém que descia do céu, de junto de Deus, com a glória de Deus (vv. 9-11a).

A descrição da cidade-noiva (21,9-22,5) é inspirada em grande parte na última seção de Ezequiel, caps. 40-48. Mas não se encontra em Ez a visão desta cidade como noiva, a “esposa/mulher do Cordeiro” (cf. 5,6-13; 19,7; Jo 1,29; 3,29).

O Antigo Testamento (AT) preparou generosamente esse símbolo com a imagem de Yhwh (Javé – Senhor) esposo e a comunidade (ou capital) esposa (Os 2; Is 1,21-25; 5,1-7; 49; 54; 62; Jr 2,1; 3,1-5; 31,21-22; Ez 16; Br 4-5).

No Cântico dos Cânticos há imagens da amada como cidade: “formosa como Jerusalém” (Ct 6,4); “teu pescoço é a torre de Davi” (Ct 4,4); “sou uma muralha, e meus peitos são os torres” (Ct 8,10). Ezequiel foi conduzido à cidade construída sobre a montanha (Ez 40,2-3). João, do alto de uma montanha, contempla a cidade que “descia do céu”, porque é criação de Deus. Ela não tem resplendor próprio, mas o recebe da glória de Deus (cf. Br 5,1-4; 2Cor 3,18): “A glória de Deus a ilumina e sua lâmpada é o Cordeiro” (v. 23). Esta imagem mostra a beleza e a santidade da Aliança com Deus.

Seu esplendor é como de uma pedra preciosíssima, pedra de jaspe cristalino. Ela está cercada por alta e grossa muralha, com doze portas. Sobre as portas há doze Anjos. Cada porta tem um nome escrito: os nomes das doze tribos de Israel. São três portas no lado do oriente, três portas ao norte, três portas ao sul e três portas no lado do poente. A muralha da cidade tem doze pilares. E nos pilares está escrito o nome dos doze apóstolos do Cordeiro (vv. 11b-14).

A nova humanidade é a esposa, o reverso da prostituta. A cidade-prostituta Babilônia foi destruída no cap. 18 (ela significa Roma em 18,9). João apresenta Jerusalém celeste com traços da antiga Babilônia histórica: quadrada (v. 16), atravessada por uma avenida ao longo do rio e com jardins (22,1s). Sugere, assim, que a Jerusalém celeste é a Babilônia, prostituta purificada e transformada pelo Evangelho, ou recorre ao paraíso (Gn 2,10)?

Parece interessar muito ao autor a “muralha” da cidade, com suas portas (Ez 48,30-35) e alicerces, disposição e materiais (Is 54,11-12) e suas dimensões (Ez 40,3-5). As formas e medidas são perfeitas. Ela é quadrada e cúbica, como o Santo dos santos no Templo. Sua perfeição é inimaginável (doze mil). É uma cidade universal, aberta para toda a humanidade (vv. 24-25), portas voltadas para os quatro pontos cardeais (v. 13). Nela impera o numero “doze” das tribos de Israel e dos apóstolos (cf. os 12×12=144 mil em 7,4): doze mil estádios de lado, 144 (12×12) côvados e espessuras da muralha; doze pedras preciosas (vv. 11b.18-20) que recordam as no peitoral do sumo sacerdote (Ex 28,15-21); doze anjos guardam os acessos (v. 12; cf. Gn 3,24). Já para Paulo, os apóstolos são o fundamento (pilares) da Igreja e Jesus Cristo é a pedra principal (cf. Gl 2,9; Ef 2,20).

 

Evangelho: Jo 1,43-51

Os primeiros três discípulos, no Ev de Jo, foram chamados por outras pessoas para encontrarem e seguirem a Jesus (cf. vv. 33-42). João Batista indicou Jesus “Cordeiro” a dois de seus discípulos; um ficou anônimo (pode ser o autor do evangelho, o “discípulo amado” de 21,20-24; cf. 13,23-25; 18,15; 19,26s; 20,2-8; 21,7) e o outro, André, avisou seu irmão Simão a quem Jesus logo mudou o nome para Cefas (Pedro).

Deixando o lugar onde João batizava, Jesus decide partir à Galileia (nos outros evangelhos, só voltou para lá, depois que João Batista foi preso, cf. Mc 1,14p). Lá ele mesmo chama um homem com a palavra “Segue-me” (21,19; cf. Mc 1,17p; 2,14p). Era Filipe de Betsaida, mesma cidade de Pedro e André, onde o rio Jordão emboca no mar da Galileia (vv. 43-44). Talvez por seu nome grego (Filipos quer dizer: que ama cavalos), Filipe é ligado aos gregos; reaparecerá em 6,5-7 (alimentar a multidão na região pagã da Decápole); 12,21s e 14,8s (“ver” Jesus e o Pai)

Filipe encontrou-se com Natanael e lhe disse: “Encontramos aquele de quem Moisés escreveu na Lei, e também os profetas: Jesus de Nazaré, o filho de José” (v. 45).

Filipe, por sua vez chama Natanael que era de Caná (v. 45; 21,2), onde acontecerá o próximo episódio. Parece que Jesus foi convidado ir aos lugares de origem dos discípulos (a Betsaida por Pedro e André; e depois a Caná por Natanael em 2,1).

Na lista dos apóstolos nos evangelhos sinóticos (Mt 10,3; Mc 3,18; Lc 6,14; cf. At 1,13) não encontra-se o nome Natanael, mas “Filipe” é o quinto nome, “Bartolomeu” é o sexto. Provavelmente devido a esta sequência, a tradição da Igreja identificou Bartolomeu com Natanael.

Como André em v. 41 (“encontramos o messias”), também Filipe convida logo com uma profissão de fé: “Encontramos aquele de quem Moises escreveu na lei e também os profetas, Jesus de Nazaré, o filho de José” (cf. Dt 18,15-18; Is 7,14; 9,6; 53; Jr 23,5; Ez 34,23).

Diferente de Mc 1,9, o quarto evangelista fala de Jesus histórico só aos poucos: seu nome “Jesus” (com o título Cristo) é mencionado apenas no final do hino em v. 17; aqui em v. 45 sua cidadezinha “Nazaré” (reaparecerá no título da cruz em 19,19) e seu nome completo “filho de José” (cf. 6,41). Falará da mãe de Jesus em 2,1-5 e 19,25-27, mas nunca menciona o nome dela, “Maria” (cf. Maria de Betânia, Maria Madalena e outra no pé da cruz). Mc caracteriza Jesus como “filho de Maria” (mas não menciona José; cf. Mc 6,3). João falou da região “Galileia” em v. 43, mas só em 8,41 dirá que Jesus veio de lá. O lugar de nascimento “Belém” aparece apenas num questionamento em 7,41.

Natanael disse: “De Nazaré pode sair coisa boa?” Filipe respondeu: “Vem ver!” (v. 46).

O preconceito de Natanael a respeito do povo da roça de Nazaré é geral (cf. Jo 7,40-52; Lc 4,15-29): “De Nazaré pode sair coisa boa?” Filipe convida: “Vem ver” (v. 46; assim Jesus convidou no v. 39). O conhecimento de Jesus nasce do encontro com ele e da escuta da sua palavra. Natanael parece desconfiado, mas sério na procura; como Tomé diante da ressurreição (20,24-29).

Jesus viu Natanael que vinha para ele e comentou: “Aí vem um israelita de verdade, um homem sem falsidade”. Natanael perguntou: “De onde me conheces?” Jesus respondeu: “Antes que Filipe te chamasse, enquanto estavas debaixo da figueira, eu te vi” (vv. 47-48).

Jesus conhece misteriosamente todos que dele se aproximam (v. 48; 2,24-25; 4,15-19). O significado da figueira pode ser uma alusão rabínica ao estudo das Escrituras (cf. Os 9,10; 1Rs 5,5).

Natanael respondeu: “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel”. Jesus disse: “Tu crês porque te disse: ‘Eu te vi debaixo da figueira?’ Coisas maiores que esta verás!” E Jesus continuou: “Em verdade, em verdade, eu vos digo: Vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem” (vv. 49-51).

A figura de Natanael deve ser entendida sobre o pano de fundo do patriarca Jacó-Israel (cf. Gn 28; 32; Os 12): O nome de “Jacó” soa ao ouvido hebreu popular como “falso, traiçoeiro” (raiz do nome Yacob em hebraico?); ele viveu fiel ao seu nome armando ciladas para seu irmão (Gn 27,36; Os 12,4) e por isso tinha de fugir. A caminho, numa visão noturna contemplou uma escada ou rampa, que uniu terra e céu e pela qual subiam e desciam mensageiros divinos (Gn 28,10-22). Voltando para se reconciliar com seu irmão, em nova visão noturna ele lutou com Deus, que lhe mudou o nome para “Israel” (Gn 32,29). Natanael é “israelita de verdade, um homem sem falsidade” (v. 47).

Logo ele reconhece Jesus como messias (rei), “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és rei de Israel” (v. 49; cf. 2Sm 5,1-3; 7,14; Sl 2,7; Mc 1,1.10 etc.; Mt 3,17; 4,2 etc.), depois de André (v. 41) e Filipe (v. 45) e bem antes da confissão de fé de Pedro e de Marta (6,69; 11,27; cf. Mt 14,33; 16,16p), mas supera as anteriores, porque Natanael usa o termo chave em João: “Filho de Deus” (cf. vv. 12.18.34 etc.).

No v. 51, Jesus responde com uma revelação dirigida ao grupo: “Vereis o céu aberto”. O próprio Jesus é a verdadeira rampa que une o céu e a terra (“Filho de Deus”, “Filho do Homem”, cf. Dn 7,13s), o mediador das mensagens celestes e orações humanas, “a palavra que se fez carne” (1,14).

Natanael deve “ver” o Pai agir e habitar no Filho (cf. 14,9). Natanael-Bartolomeu será unido a ele inclusive na paixão, será humilhado, exaltado na cruz e introduzido na glória de Deus (segunda a tradição sofreu o martírio na Armênia). “Vem ver”; quem vem a Jesus, “verá coisas maiores”, verá o céu aberto e subirá com aquele que desceu do céu, o Filho enviado do Pai (cf. 3,13-15; 6,37-38; 14,1-9; cf. At 7,56; Mc 14,62p).

Há um canto de Pe. Marcelo Rossi que lembra este trecho bíblico: “… anjos subindo e descendo sobre o altar”.

Voltar