24 de dezembro 2016 – Sábado, Advento 4ª semana

Leitura: 2Sm 7,1-5.8-12.14.16

A leitura de hoje apresenta um dos textos chaves do Antigo Testamento, a promessa do messias ao rei Davi. O texto faz parte da história deuteronomista, um conjunto de livros (Js; Jz; 1-2Sm; 1-2Rs) influenciada pela teologia do Dt (Deuteronômio significa “segunda [edição da] lei”), que centraliza o culto em Jerusalém e conta a história da ocupação da terra (1200 a.C.) até sua perda em 586 a.C. Por volta de 1000 a.C., Davi acabou de conquistar a cidade de Jerusalém e a tornou capital política do seu reino (5,6-11). Queria torná-la capital religiosa e trouxe a arca da aliança para uma tenda armada na cidade (cap. 6).

A profecia de Natã está construída sobre uma oposição: não será Davi que “fará uma casa” (templo) a Javé Deus (v. 5), mas será Javé que “fará uma casa” (dinastia) a Davi (v. 11). A promessa concerne essencialmente à permanência da linhagem davídica sobre o trono de Israel (vv. 12-16). É assim que ela é compreendida por Davi (vv. 19.25.27.29; cf. 23,5) e pelos Sl 80,30-38; 132,11-12. É o texto da “aliança de Javé com Davi” (cf. 23,5; Sl 89,4; Is 55,3) e sua dinastia.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 460) afirma: “7,1-17 é construída sobre uma dupla antítese: 1º, não é Davi quem construirá uma casa (o templo) para o Senhor (vv. 5-7), mas o Senhor é quem fará uma casa (uma dinastia) para Davi (vv.11b-12); 2º, não é Davi quem construirá o Templo, mas seu filho Salomão (v.13). A primeira antítese exprime uma ideia religiosa. Ela destaca a instituição da dinastia da obra do Templo para mostrar a gratuidade de favor divino concedido a Davi: ao fazer dele o fundador de uma linhagem real, o Senhor corou os seus benefícios, recordados nos vv. 8.9.11. A segunda antítese corresponde a uma realidade histórica: apesar de seus êxitos, Davi não teve tempo de realizar a intenção que o v. 2 lhe atribui, nem de empreender a construção, longa e onerosa, que será realizada por seu filho (1Rs 6). Ainda que sua justaposição pareça resultado de composição secundaria, essas duas afirmações podem remontar à época de Salomão e revelar a opinião dos escribas da corte, ligados à dinastia e ao Templo. A redação deuteronomista do discurso de Natã, claramente perceptível (cf. de modo particular vv. 1.10.13) não apagou a ideia mestra mais antiga. Posta na juntura da história da ascensão de David (cf. 1Sm 16,1) e da história de sua sucessão (cf. 9,1), a “profecia de Natã” é o ponto culminante dos livros de Samuel. Ao deixar clara a eleição da dinastia de David, ela é uma das fontes da ideia messiânica.

Tendo-se o rei Davi instalado já em sua casa e tendo-lhe o Senhor dado a paz, livrando-o de todos os seus inimigos, ele disse ao profeta Natã: “Vê: eu resido num palácio de cedro, e a arca de Deus está alojada numa tenda!” Natã respondeu ao rei: “Vai e faze tudo o que diz o teu coração, pois o Senhor está contigo” (vv.1-3).

Davi constituiu seu palácio em Jerusalém (2Sm 5,11) e transportou a arca da aliança à capital (2Sm 6), agora pensa em construir um templo para esta arca, substituindo a tenda que a abrigava.

O Senhor (Javé) “deu paz (segurança, repouso) livrando-o de todos seus inimigos” ao redor (as mesmas expressões agrupadas em Dt 12,10; Js 21,44; 1Sm 12,11). O “palácio (lit. casa) de cedro” foi construído com a cooperação do rei fenício Hiram de Tiro (5,11), como também será mais tarde o Templo (1Rs 5,20).

A “tenda de lona” é termo frequente em Ex 26 e 36, mas a tenda armada por Davi para a arca da aliança é distinta daquela antiga “habitação (morada)” do deserto ou “tenda da reunião ou “tenda do encontro” (cf. 6,17). A tenda erguida por Davi não é a “tenda do encontro” da qual falam as antigas tradições sobre Moisés e que estava armada fora do acampamento (Ex 33,7; cf. Nm 11,24.26; 12,5.10; Dt 31,14-15), nem a tenda da tradição sacerdotal (cf. Ex 27,21, etc.; 29,42-43; 30,36), da qual Js 18,1;19,51; 1Sm 2,22(cf. Sl 78,60) indicam a presença em Silo, 2Cr 1,3.6.13 em Gabaon, e 1Rs 8,4 em Jerusalém. Mesmo 1Cr 15,1; 16,1; 2Cr 1,4 distinguem a Tenda do encontro daquela que armou Davi e que existia ainda quando do advento de Salomão (1Rs 1,39; 2,28-30).

O profeta Natã (cf. Eclo 47,1) concorda com Davi (cf. Samuel na unção de Saul em 1Sm 10,7: “o Senhor está contigo”; cf. 1Sm 16,13). Natã é o profeta da corte que intervém para censurar David no cap. 12 e será o articulador da ascensão de Salomão (1Rs 1). A tradição fez de Natã um dos historiadores de David (cf. 1Cr 29,29).

Mas, naquela mesma noite, a palavra do Senhor foi dirigida a Natã nestes termos: ”Vai dizer ao meu servo Davi: Assim fala o Senhor: Porventura és tu que me construirás uma casa para eu habitar? (vv. 4-5).

Um verdadeiro profeta não é um bajulador do rei, sim o questiona quando a conduta do rei não é conforme os planos de Deus (cf. 2Sm 12 depois do adultério com Betsabeia).

“Residir, habitar, morar” (lit. sentar-se; vv. 1.2.5-6.18) é uma das palavras-chaves do capítulo. As interrogações de vv. 5-7 (vv. 6-7 são omitidos pela leitura de hoje) podem ser entendidas como protestos contra a construção, feita por um homem, de uma morada destinada a Deus. Percebe-se aí uma fonte da polêmica de At 7,48 contra o Templo: “O Altíssimo não habita em obras de mãos humanas” (cf. At 17,24). É possível que uma declaração do oráculo primitivo, referente a Davi, tenha sido ampliada no momento de sua redação (no exílio ou depois), num tempo em que a ruína de Jerusalém tinha motivado certo desinteresse em relação ao templo (cf. 1Rs 8,27; Is 66,1-2).

De fato, Natã é favorável à manutenção da velha tradição representada pela Arca, e contrária à novidade de um templo à moda de Canaã. O problema foi resolvido pela instalação da arca no Templo de Salomão (1Rs 8,1.10-12).

Fui eu que te tirei do pastoreio, do meio das ovelhas, para que fosses o chefe do meu povo, Israel. Estive contigo em toda a parte por onde andaste, e exterminei diante de ti todos os teus inimigos, fazendo o teu nome tão célebre como o dos homens mais famosos da terra. Vou preparar um lugar para o meu povo, Israel: eu o implantarei, de modo que possa morar lá sem jamais ser inquietado. Os homens violentos não tornarão a oprimi-lo como outrora, no tempo em que eu estabelecia juízes sobre o meu povo, Israel. Concedo-te uma vida tranquila, livrando-te de todos os teus inimigos (vv. 8b-11b).

Os vv. 6-11b resumem a história de Davi como a do povo de Israel. Depois de tirar os israelitas da escravidão no Egito, Deus conduziu o povo pelo deserto para a terra prometida (vv. 6-7), mas nesta terra precisava guerrear contra os povos cananeus e filisteus. Então, Deus “estabeleceu juízes” para defender o povo contra estes “homens violentos” (v. 11).

O último dos juízes, Samuel, ungiu o primeiro rei, Saul, mas este não obedecia à palavra de Deus (1Sm 8-15). Então Samuel ungiu outro, Davi, um pastor de Belém (v. 8b; 1Sm 16; Sl 78,70s) para ser “chefe do povo” (cf. este título militar e político em 2Sm 5,2-3; 6,21; 1Rs 1,35; 14,7; 16,2). Mais bem sucedido e popular do que o próprio rei, Davi acabou sendo perseguido por Saul (1Sm 18-30). Depois da morte de Saul, Davi foi aclamado rei por todas as tribos de Israel e escolheu Jerusalém como capital (2Sm 5-6).

Agora, estabelecido “instalado e livre dos inimigos” (cf. v. 1), Davi quer construir uma casa para Deus. Mas Deus não é doméstico, caseiro. Desde o tempo dos patriarcas, Javé Deus se revelou ao seu povo e a Davi sempre em movimento, “tirando, guiando, conduzindo”. O Deus de Israel é exatamente aquele que não se deixa fixar num lugar específico, é superior aos deuses pagãos locais. O Deus do universo não precisa de comida nem de bebida, nem de moradia (cf. Is 66,1s). Aquele que não tem casa nem onde reclinar a cabeça (cf. Lc 9,58p) é aquele que deu a Israel uma terra e a Davi uma capital com seu palácio e dará mais ainda.

E o Senhor te anuncia que te fará uma casa. Quando chegar o fim dos teus dias e repousares com teus pais, então, suscitarei, depois de ti, um filho teu, e confirmarei a sua realeza (vv. 11c-12).

Antes o Senhor questionou: “Porventura és tu que me construirás uma casa para eu habitar?” (v. 5) e continua aqui respondendo “E o Senhor te anuncia que fará uma casa para ti” (v. 11c). É um jogo de palavras com os significados bíblicos de “casa”: no sentido comum significa a construção com material fixo, lar que acolhe e protege sendo centro de convergência (cf. Gn 4,17; 11,4 etc.). Aqui, em sentido metafórico, a casa são as pessoas da casa: família, dinastia, servos (cf. Gn 16,2; At 10,2; 11,14; 16,15.31; 18,8; 1Cor 1,16). A família se constrói com filhos e sucessores. Deus promete outra estabilidade a Davi, não local, mas temporal, pela história: uma dinastia, uma permanência de linhagem davídica sobre o trono de Israel.

Quando Davi “completar seus dias e repousar com seus pais” (mesma expressão em Gn 47,30; Dt 31,16; muito frequente nos livros dos Reis, cf. 1Rs 1,21; 2,10 etc.), Deus firmará a realeza para seu “descendente” (nossa liturgia traduz “filho”; lit. “aquele que sairá de tuas entranhas” (cf. Gn 16,11; Gn 15,4). Este esclarecimento constitui uma transição entre o coletivo “descendência”, que designa a linhagem davídica (cf. 22,51; Sl 89,5.30.37 e Jo 7,42; Rm 1,3; 2Tm 2,8), e o “descendente/filho” imediato (cf. Gn 4,25 ) do qual fala o v. 13, isto é, Salomão. Ao invés, a promessa se refere à descendência, como a promessa feita a Abraão (Gn 12,7; 15,18; 17,7-10) que se individualiza em Gn 21,13 (Isaac).

Davi não vai construir o templo, seu filho Salomão será este construtor (1Rs 5,15-6,37; 7,13-8,66), como fala o v. seguinte, omitido pela leitura de hoje: “Será ele que construirá uma casa para meu Nome, e eu firmarei para sempre o seu trono real.” Este v. 13, que se refere evidentemente a Salomão, é geralmente considerado como uma adição ao oráculo original a Davi.

A referência ao “Nome” é um traço teológico deuteronomista (cf. Dt 12,5.11.21; 14,23-24; 16,2 6.11; 26,2; 1Rs 3,2; 5,17.19; 8.17.18.19.20.44.48; 9,3.7; 11,36; 14,21; 2Rs 21,4.7). “Estabelecer, (con)firmar” é ainda uma palavra-chave do capítulo (cf. vv. 12.13.16.24.26 e 1Sm 13,13; 2Sm 5,12; 1Rs 2,24). Mas a promessa vai para além de Salomão; o fim do v. 13 garante o trono à sua dinastia “para sempre”.

No paralelo posterior 1Cr 28, Davi relata: “Deus me disse: ’Não construas casa para meu nome, pois foste homem de guerra e derramaste sangue… É teu filho Salomão que construirá minha casa e meus átrios, pois foi a ele que escolhi como filho e serei para ele um pai’” (1Cr 28,3.6).

Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho (v. 14a).

É uma fórmula de adoção, como em Sl 2,7; 89,27; 110,3 (grego), mas é também a primeira expressão do messianismo real: cada rei da linhagem davídica será uma imagem (embora imperfeita, cf. o final do v. e Sl 89,31-34) do rei ideal do futuro. Os reis de Israel e do Antigo Oriente se consideravam adotados por Deus na hora da sua posse (consagração, unção, coroação; cf. Sl 2; 110). Em vez de Davi dar estabilidade a Deus (com a construção do templo), Deus dará estabilidade à dinastia de Davi, não só a Salomão, mas a toda sua descendência “para sempre” (vv. 13.16; Is 9,6; Lc 1,32, cf. a promessa feita a Abraão em Gn 12,2-3.7; 15,18; 17,7-10). A fórmula é aplicada, no NT, à entronização messiânica de Jesus (cf. Mc 1,11p; Lc 1,35; At 13,33; Rm 1,3s; Hb 1,5; 5,5).

Aplicando-a ao Messias, o paralelo 1Cr 17,13suprimiu a segunda parte do v. 14 (nossa liturgia omite vv. 14b-15): “Se ele falhar, eu o corrigirei como varas e golpes, como costumam os homens”. O rei em Israel não está acima das leis, suas faltas pessoais serão castigadas (cf. 2Sm 12,9-12), mas, contrariamente ao princípio de Ex 20,5; 34,7; Nm 14,18; Dt 5,9, sua descendência nada sofrerá por causa delas e continua segura de reinar para sempre (cf. v. 15). Encontra-se aí o essencial daquilo que 23,5 (e Sl 89,29; Is 55,3) chamam de “aliança (eterna)” do Senhor com Davi.

Tua casa e teu reino serão estáveis para sempre diante de mim, e teu trono será firme para sempre (v. 16).

Os reis depois de Salomão não seguiram mais os caminhos do Senhor, mas os profetas (cf. Is 9,6) alimentaram a esperança por um “messias” (=rei ungido) no povo judeu (que espera até hoje).

Esse texto fundou a concepção messiânica, elaborada tanto no Antigo como no Novo Testamento. Com o fracasso da realeza em Jerusalém, o Messias (rei descendente de Davi) torna-se o rei ideal que libertará o povo e o fará viver conforme a justiça e o direto (cf. Is 11,1-9). O Novo Testamento (NT) vê a pessoa de Jesus como a realização da promessa do Messias (“Cristo”=Ungido=Messias). Paulo declara Jesus “nascido da estirpe de Davi” (Rm 1,3). Em Mc, Jesus é chamado “filho de Davi” (Mc 10,47s; cf. 11,10; 12,35-37). Mt começa a genealogia de Jesus iniciando com Abraão passando por Davi e terminando com “José, esposo de Maria, de que nasceu Jesus, que é chamado o Cristo” (Messias; Mt 1,1.6.16s). Em Lc 1,32s, o anjo anuncia a Maria que seu Filho “será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó (=Israel), e o seu reino não terá fim.”

Vivendo por volta de 1000 a.C., Davi foi visto na história posterior como rei ideal e da sua “casa” (família, dinastia, descendência) sairia o messias. Esta promessa do messias (= ungido, Cristo=crismado), anunciada e reforçada pelos profetas (Is 7,14; 9,5s; 11,1-5; 42,1; Jr 23,5s; Mq 4,14; Ag 2,23), alimentou a esperança do povo de Deus por 1000 anos até a chegada de Jesus e continua ainda: muitos judeus de hoje ainda esperam pelo messias e consideram Jerusalém como capital inegociável. O que une cristãos e judeus hoje é apostar num futuro melhor (a vinda do messias, ou, para os cristãos, a volta dele), contra a falta de esperança e perspectiva no mundo atual.

 

Evangelho: Lc 1,67-79

Como o Magnificat de Maria (vv. 46-55) esse cântico Benedictus é uma peça poética (salmo) que Lucas adota e coloca nos lábios de Zacarias, acrescentando os vv. 76-77 para adaptá-la a situação. Não o inseriu na narrativa em prosa (v. 64), mas depois dela.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.1970) comenta: Este salmo, análogo ao de Maria em 1,46-55 e mais difícil ainda de repartir em versos e estrofes, é uma ação de graças pela salvação messiânica (vv. 68.78-79); ele pode provir da comunidade palestinense. Lc o emprega em paralelismo com os oráculos de Simeão e de Ana sobre a missão de Jesus (2,29-32.34-35.38), indicando nele a missão de João.

Zacarias, o pai de João, repleto do Espírito Santo, profetizou, dizendo:(v. 67)

O hino pode ser divido em duas partes: a primeira (vv. 68-75) é um hino de ação de graças, a segunda (vv. 76-79) é uma visão do futuro, profecia inspirada. Alguns sacerdotes foram também profetas de profissão, como Jeremias e Ezequiel. Davi o é numa só ocasião (2Sm 23,2).

A Bíblia do Peregrino (p. 2455) comenta: Na primeira parte (vv. 68-75) recorda a ação de Deus até esse momento; na segunda (vv. 76-79) anuncia o destino do menino. Com esse recurso a missão de João fica inserida na história do povo escolhido. É composto em puro estilo bíblico repleto de citações e reminiscências, como síntese teológica.

No princípio houve a promessa feita com juramento a Abraão (v. 73): Deus se compromete com ele, e a história vai sendo cumprimento progressivo. Depois a promessa se materializa na forma jurídica de um pacto mútuo (v. 72) “com nossos pais”; pela lealdade do Senhor, o povo não foi aniquilado por seus inimigos (vv. 71.74). Depois essa promessa se concretiza na promessa feita a Davi de fundar-lhe uma dinastia ou “casa” (v. 69; cf. leitura de hoje). A dinastia, aparentemente interrompida, renasce, porque Deus “suscita” nela uma força salvadora (v. 69). O messias restaura a dinastia de Davi, renova a aliança do Sinai e cumpre a promessa patriarcal.

“Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo (v. 68).

Inicia com aclamação litúrgica “Bendito Yhwh (Javé)” e variantes, que constituem fórmula clássica, para começar uma oração ou louvor (Gn 9,26; 1Rs 1,48 etc.; cf. a formula inteira em 1Sm 25,32; 1 Rs 1,48 etc.) ou para concluir (por ex. a primeira coleção de salmos: Sl 41,14).

Como é frequente no AT (Ex 3,16; cf. Gn 18; 21,1; 50,24s; Jr 29,10; Sl 65,10; 80,15; 106,4), a “visita” de Deus no NT se entende em sentido favorável (Lc é o único evangelista a empregar este termo: 1,78; 7,16; 19,44; At 15,14; cf. 1Pd 2,12; no sentido de castigo, cf. Ex 32,34; Is 10,12; Ez 23,21; 34,11s; Sl 59,6; 89,33).

O Senhor vem “redimir, resgatar” novamente o seu povo, segundo sua função tradicional (Ex 6,6; Is 43,1; Jr 31,11; Sl 77,16). Tratando-se de seres humanos, é libertação, resgate de alguma escravidão, e corresponde ao hebraico pedut (Is 50,2; Sl 119,9; 130,7). Este termo bíblico pode ser uma alusão à ressurreição de Jesus (cf. 7,14).

Fez aparecer para nós uma força de salvação na casa de seu servo Davi, como tinha prometido desde outrora, pela boca de seus santos profetas, para nos salvar dos nossos inimigos e da mão de todos os que nos odeiam (vv. 69-71).

“Força”, lit. “chifre da salvação”. Na linguagem bíblica o chifre é símbolo de poder (Sl 75,11; 89,18.25 davídico; 112,9; Sl 132,17). Davi tem o título de “servo” (2Sm 3,18; Sl 89,4.21). Competia ao rei “salvar” (Saul, 1Sm 10,27). ”Salvar dos nossos inimigos” é tema frequente nos salmos (p. ex. 18,31; 31,16; 106,10.45).Sem dar nomes, supõe-se que vários “santos profetas”(cf. At 3,21; 2Pd 3,2) anunciam o Messias.

Ele usou de misericórdia para com nossos pais, recordando-se de sua santa aliança e do juramento que fez a nosso pai Abraão, para conceder-nos, que, sem temor e libertos das mãos dos inimigos, nós o sirvamos, com santidade e justiça, em sua presença, todos os nossos dias (vv. 72-75)

Deus se “recorda” (cf. v. 54; Gn 8,1; 9,15; Ex 2,24…; o nome Zacarias, em hebraico ZacarYa, significa “Javé se recorda”), leva em conta a sua “santa aliança”, sendo coerente com seu compromisso (Ex 20,6; Sl 18,15; Sl 105,8). A promessa a Abraão (v. 73; Gn 17,7; 22,16) foi feito com juramento, uma aliança em forma de compromisso unilateral.

Os vv. 74-75 traduzem as promessas patriarcais em termos de serviço autêntico, “sem temor e libertos…”. Deus livrará do “temor” (v. 74) e do “pecado” (v. 77) para uma vida a “serviço”, também cultual: servir ao Senhor “em sua presença”; em “santidade (piedade) e justiça”, estas duas palavras representam o resumo da Lei (as duas tábuas de Ex 20; Dt 5; o amor a Deus e ao próximo em Mc 12,38-31p).

E tu, Menino, serás chamado profeta do Altíssimo, pois irás adiante do Senhor para preparar-lhe os caminhos, anunciando ao seu povo a salvação, pelo perdão dos seus pecados (vv. 76-77).

Lc reproduz as referências proféticas que apresentou em 1,17: João será o precursor (Ml 3,1; Is 40,3) e trará a experiência da salvação pelo perdão dos pecados (Jr 31,34; 33,8; Sl 130,4; cf. Lc 3,3). Lc pinta o papel do precursor com a ajuda dos textos que lhe eram tradicionalmente aplicados (cf. 3,4p; 7,27p) e descreve sua mensagem de acordo com os apóstolos nos Atos (cf. At 2,38; 5 31; 10,43; 13,38; 26,18).

A Bíblia do Peregrino (p.2456) comenta: O destino de João é sua missão de abrir caminho para o outro, para o “Senhor” (v. 76). Abre caminho como arauto, “anunciando a salvação” (v. 77) e dispondo o povo para o perdão pelo arrependimento (v. 77). Assim Ele poderá chegar: o esperado, a luz no caminho da vida e da história (v. 78).

Graças à misericordiosa compaixão do nosso Deus, o sol que nasce do alto nos visitará para iluminar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte, e dirigir nossos passos no caminho da paz” (vv. 78-79).

Deus é misericordioso, “entranhável” é título clássico de Deus (Ex 34,6; Dt 4,31; Sl 103,8). A expressão hebraica por misericórdia, compaixão é rahamim e vem a palavra “entranhas”

“Graças à misericordiosa compaixão do nosso Deus”, lit. “pelas entranhas da bondade de nosso Deus” é outra expressão clássica do AT (Is 54,7; 63,7.15; Jr 31,20; Zc 1,16; Sl 79,8; 119,77; 145,9), mas o AT grego não a aplica a Deus (cf. Cl 3,12).

“O sol que nasce do alto”: a palavra grega “anatolé” significa ao mesmo tempo o despontar de um astro e o brotar de uma planta. O AT o emprega para anunciar o descendente (rebento) de Davi (Jr 23,5; 33,15; Zc 3,8; 6,12) e usa o verbo correspondente para exprimir a estrela messiânica (Nm 24,17; cf. Ml 3,20; Is 60,1). O cântico de Zacarias deve visar aos dois sentidos, mas sobretudo ao segundo, muito popular então no judaísmo (cf. Mt 2,2). A luz deste astro vem do oriente, mas “nasce do alto”, do céu (cf. Is 60,1-2: “sobre ti amanhecerá o Senhor”).

Esta luz do alto nos “visitará” ou “visitou”? O sentido passado recomenda-se pelo paralelismo, com v. 68. A estrela do messias já despontou.

O messias vem “iluminar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte” é alusão à profecia de Is 9,1 (1ª leitura na noite de Natal) e42,7, como também à vida eterna e à ressurreição: à primeira luz do primeiro dia da semana (cf. Lc 24,1p).

“O caminho da paz” (Is 59,8). Na Bíblia, a paz é plenitude de vida; como tal é dom messiânico por excelência (cf. Is 9,5s; Mq 5,4); Lc insiste neste tema (cf. 2,14.29; 7,50; 8,48; 10,5s; 11,21; 12,51; 14,32; 19,38.42; 24,36).

O site da CNBB resume: João Batista é o precursor do Messias, aquele que veio para dar testemunho da verdadeira luz que ilumina todo homem que vem a este mundo, expulsando as trevas do erro, do pecado e da morte, para dar a todos a vida nova, a vida em abundância. Zacarias, no seu canto, nos mostra não apenas este fato, mas também que o nosso Deus é o Deus da misericórdia, que vem ao nosso encontro para nos trazer a salvação, nos libertar de todo poder do inimigo e fazer de todos nós um povo santo, que vive na sua graça e que é destinado à vida eterna.

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