24 de dezembro de 2017 – Domingo – Missa do Galo – Natal

1ª Leitura: Is 9,1-6

Nesta noite de Natal, a leitura do AT enfatiza uma grande luz e esperança que representa o nascimento de um menino real. Na época do profeta Isaias, as campanhas militares dos assírios humilharam o povo de Israel (cf. 8,23b). O rei assírio Teglat-Falasar III invadiu a Galileia em 733 a.C. e deportou seus habitantes para Assíria (2Rs 15,29). Isaías anuncia uma reviravolta, alegria em vez de desespero.

No oráculo que segue, Isaias anuncia um “dia do Senhor (Javé)” que trará a libertação aos deportados; ele anuncia ao mesmo tempo o reinado pacífico de um menino de estirpe real, o “Emanuel” de 7,14 (cf. leitura do dia 20 de dezembro e 25 de março). Talvez o oráculo tenha sido pronunciado na entronização do jovem rei Ezequias em Jerusalém, para dar esperança as regiões do norte que foram devastadas pela Assíria, em 724-722 a.C. (2Rs 17).

O aparecimento do messias Jesus na Galileia dará a esta profecia sua plena realização (cf. Mt 4,12-16).

O povo, que andava na escuridão, viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu (v. 1).

É o território das tribos Natali e Zabulon, ou seja, a Galileia, “o distrito das nações” (8,23b). Galileia significa distrito, mas longe de Jerusalém era considerada quase pagã (cf. Mt 4,12-16, onde Jesus escolhe esta região para morar). “Na escuridão”, símbolo do caos e da morte e do paganismo, surge de repente uma “grande luz” como uma nova criação (cf. Gn 1,3; Mt 28,1p). Lc alude a esta frase no cântico de Zacarias (Lc 1,78s) e na aparição luminosa do anjo aos pastores durante da noite do nascimento de Jesus (2,8s).

Fizeste crescer a alegria e aumentaste a felicidade; todos se regozijam em tua presença, como alegres ceifeiros na colheita, ou como exaltados guerreiros ao dividirem os despojos (v. 2).

São três os motivos de alegria: glória depois da humilhação (8,23b), luz nas trevas (9,1), alegria realizada (v. 2). A volta do exílio é alegria e fim da guerra. Se o plantio foi duro e sofrido, a alegria da colheita compensa muito (Sl 126,5s).

São três as razões da alegria: três vezes começam com “porquê” (vv. 3.4.5; incluo esta palavra entre parênteses nestes vv., porque na tradução da nossa liturgia não aparecem):

(Porque) Pois o jugo que oprimia o povo, – a carga sobre os ombros, o orgulho dos fiscais – tu os abateste como na jornada de Madiã (v. 3).

Primeiro “porque”: A opressão pelos assírios, exploração e trabalhos forçados acabam como num dia de Madiã, quando, na vitória do juiz Gedeão, as tochas brilharam a noite espantando o inimigo (cf. Jz 7). Para mostrar que era Javé que lutava por Israel, Gedeão venceu com um pequeno grupo de combatentes o poderoso exército dos madianitas que “oprimia o povo”.

(Porque) botas de tropa de assalto, trajes manchados de sangue, tudo será queimado e devorado pelas chamas (v. 4).

Segundo “porque”: a violência e a guerra acabam e o equipamento guerreiro será destruído (já em Is 2,4), então se anuncia uma época de paz (cf. 11,6-9).

Porque nasceu para nós um menino, foi-nos dado um filho; ele traz aos ombros a marca da realeza; o nome que lhe foi dado é: Conselheiro admirável, Deus forte, Pai dos tempos futuros, Príncipe da paz (v. 5).

Terceiro “porque”: Um menino nasceu, “foi nos dado”; o verbo está na voz passiva, sugerindo que o doador é Deus. A alegre esperança se concretiza na pessoa de um menino. Segue-se o esquema comum: anunciação do nascimento, nome e destino futuro (cf. 7,14; Gn 16,11s; 17,19; cf. Jz 13,3-5;18.23; Mt 1,20s; Lc 1,13-17.31-33)

O recém-nascido é caracterizado com “a marca da realeza”, evita-se o título de rei, mas recebe o nome quádruplo. Esses títulos são comparáveis ao protocolo que era preparado para o faraó quando a sua coroação. Cada um destes nomes, quatro ofícios na corte, recebe uma especificação, que o leva à esfera sobre-humana. O menino terá a sabedoria de Salomão (conselheiro), a bravura e a piedade de Davi (forte, príncipe), e as virtudes dos pais (patriarcas).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: O primeiro título, “conselheiro maravilhoso”, fala do rei como aquele que possui sabedoria, conselho, prudência. A referência a “maravilha” lembra os feitos prodigiosos, as ações do Senhor em favor de Israel, sobretudo aquelas realizadas por ocasião da libertação do Egito (cf. Ex 15,11). O menino-rei é, assim, alguém que estabelece planos capazes de realizar as maravilhas que Deus quer operar em favor de seu povo. O segundo título, “Deus forte”, indica que, por meio desse menino, Deus manifestará sua força, que realiza o direito, a justiça e a paz. O título “pai eterno” sugere que o rei deverá ser como um pai para o povo (cf. Is 22,21), e isso deverá ser permanente, durar para sempre. Por fim, “príncipe da paz” indica que, por sua autoridade, ele estabelecerá a tranquilidade política (cf. Is 39,8), eliminará toda angústia (cf. Is 38,17) e trará o total bem-estar, que inclui a comunhão com Deus (cf. Is 27,5).

Grande será o seu reino e a paz não há de ter fim sobre o trono de Davi e sobre o seu reinado, que ele irá consolidar e confirmar em justiça e santidade, a partir de agora e para todo o sempre (v. 6a).

Explica-se o nome múltiplo num horizonte sem limites com o centro na dinastia de Davi. Não há falta nem limitação nessa paz e justiça que se dilatam no espaço e no tempo (cf. Dn 7,14; Lc 1,32s). O binômio “justiça e santidade (piedade)” (cf. Lc 1,75) representa o resumo da Lei (as duas tábuas da Lei em Ex 20; Dt 5; o amor a Deus e ao próximo em Mc 12,38-31p).

O amor zeloso do Senhor dos exércitos há de realizar estas coisas (v. 6b).

O “Senhor (Javé) dos exércitos” (Is 1,24; 2,12; 3,1.15; 5,7.9.16.24; 6,3.5 etc.; as vezes traduzido por “todo-poderoso” ou “do universo”) não se refere apenas aos exércitos de Israel em ordem de batalha (Jó 10,17; 1Sm 17,45s; Ex 12,51), mas também às constelações das estrelas (Gn 2,1; Is 40,26) e finalmente a todos os elementos e poderes do universo. Este título aparece pela primeira vez ligado ao ritual da arca da aliança em Silo (1Sm 1,3.11; 4,4) e entra com ela em Jerusalém (2Sm 6,18; 7,8.27 etc.). Foi retomado pelos grandes profetas (salvo Ezequiel), pelos profetas do pós-exílio (principalmente Zacarias) e nos Salmos (cf. Sl 24,10; 46,8).

O “zelo” do Senhor pode simultaneamente castigar as infidelidades do povo e proporcionar-lhe a salvação (cf. Ex 20,5s; Dt 4,24; 5,9s). É ciúme, amor apaixonado (como traduz nossa liturgia: “amor zeloso”) que cumprirá essa promessa (cf. Zc 1,14; Jl 2,18; Ex 20,5; Dt 4,24).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A obra desse menino-rei será o oposto da obra do opressor: o opressor domina pela força (v. 3), pela violência (v. 4); o menino-rei agirá segundo o direito e a justiça e dominará estabelecendo a paz (v. 6). Como terá fim a opressão do inimigo, assim será perpétuo o reino inaugurado pelo menino: ele instituirá uma paz sem fim (v. 6a), seu trono será estável para sempre (v. 6b). Tudo isso acontecerá em favor do povo: ele nasceu “para nós”; ele “nos” foi dado – por Deus. Deus realizará, assim, por intermédio do menino-rei da casa de Davi, radical transformação da situação em que vivia o povo.

 

2ª leitura: Tt 2,11-14

A epístola a Tito e as duas a Timóteo são chamadas “Cartas Pastorais”, porque não se dirigem à uma comunidade, mas aos pastores (bispos) para dirigi-las. Muitos exegetas consideram estas cartas escritas por uma redação posterior ao apóstolo Paulo, porque refletem uma organização mais desenvolvida e preocupações diferentes das outras cartas do apóstolo Paulo. Aliás, era costume da época que discípulos de um mestre escreviam em nome dele para dar continuidade (por ex., a profecia de Isaías foi escrito tem três períodos, ou seja, por três autores em épocas diferentes: Is 1-39; 40-55; 56-66).

Tito era um grego que acompanhou o apóstolo na sua segunda viagem a Jerusalém (Gl 1,20; 2,1-3), e passou com ele por Troade, Corinto e a Macedônia (2Cor 2,13; 7,5-7), Éfeso (1Tm 1,3) e a Dalmácia (2Tm 4,10). Paulo o deixou como bispo na ilha de Creta (Tt 1,5) para organizar a comunidade, instituir presbíteros, a fim de que exortem à doutrina cristã e refutem todos os que a contradizem (cap. 1). O centro da carta é esta “sã doutrina” (1,9.13; 2,1.8; 1Tm 1,10; 6,3; 2Tm 1,2; 4,3), isto é, a vontade salvadora de Deus e a salvação gratuita trazida por Cristo (vv. 11-14).

A palavra “sã” (doutrina) indica que se quer evitar excessos e viver com “equilíbrio” (v. 12) e “sobriedade” (cf. 1,7; 2,1.4) e não dar motivos de rejeição na sociedade greco-romana (cf. vv. 5.8). Exorta idosos, mulheres, jovens e escravos para serem “um exemplo de boa conduta … honrando em tudo a doutrina de Deus, nosso salvador” (vv. 2-10). De todos, o autor pede humildade e moderação, para que sua fé cristã não seja objeto de críticas, mas de elogios e simpatia.

(Caríssimos), a graça de Deus se manifestou trazendo salvação para todos os homens. Ela nos ensina a abandonar a impiedade e as paixões mundanas e a viver neste mundo com equilíbrio, justiça e piedade, aguardando a feliz esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo. Ele se entregou por nós, para nos resgatar de toda a maldade e purificar para si um povo que lhe pertença e que se dedique a praticar o bem (vv. 11-14).

É a primeira síntese doutrinal da carta (cf. 1,1-3; 3,4-7) com duas exposições da obra da salvação, dos seus efeitos e exigências.

Um dos títulos clássicos de Javé Deus no AT é hanum (clemente, misericordioso), que dá seu favor e concede “graça” (Ex 34,6; Jl 2,13; Jn 4,2; Sl 86,15; 103,8; Ne 9,17). Agora “a graça de Deus se manifestou” na encarnação do Filho para a salvação de “todos os homens” (1Tm 2,4; cf. Jo 3,16s), na “entrega” (morte) de Cristo como “resgate” (“salvação”, cf. Sl 130,8; 1Pd 1,18a) e no anúncio da parusia (volta de Cristo) que funda a “esperança feliz” (este termo, aqui, designa o objeto da esperança cristã) e será “a manifestação da gloria”. Assim as duas epifanias (manifestações divinas), uma no passado (nascimento, vida de Cristo), outra no futuro (sua volta), delimitam todo o arco da salvação.

A “graça”, eficaz misericórdia de Deus (Ex 34,6; Os 3,21; 1Cor 1,4 etc.), sua “bondade e amor” (3,4) pelos homens, “manifestou-se” (v. 11) prenunciando aquela “manifestação” a que se referem o v. 13 e 1Tm 6,14.  Este termo é usado pelas cartas Pastorais, de preferência à “vinda” ou “revelação” nas cartas antigas (1Cor 1,7; 15,23 etc.), para designar a manifestação de Cristo, seja no seu triunfo na volta (parusia; v. 13; 2Tm 4,1.18; cf. Hb 9,28), seja na sua obra redentora (vv. 11.3,4; 2Tm 1,10).

Ao contrário das cartas antigas de Paulo (cf. Rm 1,16s; Gl 2,15-21 etc.), aqui não se fala da resposta humana da “fé” (que está implicada ao enunciar o texto), mas se detém logo nas consequências éticas para a conduta: afastar-se da “maldade” e “praticar o bem”, “abandonar a impiedade e as paixões mundanas e a viver neste mundo com equilíbrio, justiça e piedade”. Duas das três qualidades recomendadas fazem parte do quarteto das virtudes cardeais na filosofia grega (Sb 8,7): “equilíbrio” (temperança) e “justiça” (as outras duas seriam prudência e fortaleza).

Ao aceitar (com fé) a graça, os cristãos passam a viver estes valores condizentes. A vida cristã se volta, então, para a realização do projeto de Deus na terra, aguardando, na esperança, sua manifestação definitiva na glória. “Purificar para si um povo que lhe pertença” parece aludir ao batismo que substitui a função da circuncisão como sinal de pertença ao povo eleito (Gn 17,9-14; Ex 19,5s; Dt 7,6; At 15-16; Gl 3,25-29; 4,4-7; Ef 1,13s; Hb 10,22s; 1Pd 2,9; 3,21).

A graça oferecida por Deus se realizou em Jesus Cristo, a quem os primeiros cristãos já reconhecem como “Deus e Salvador” (v. 13; há quem traduza: “do grande Deus, e do nosso Salvador Jesus Cristo”). Parece ser uma clara afirmação da divindade de Cristo (cf. Rm 9,5; Hb 13,21; Jo 10,30; 20,28) como já indica a atribuição do título “Senhor” com o qual o AT grego traduz o nome divino Yhwh (“Javé”; cf. Ex 3,14; Fl 2,9-11; At 2,36; Ef 1,20-22; Hb 1,3s; Jo 20,28); o “Salvador” é cognominado também o “grande Deus” (cf. 1Tm 1,1).

José Luiz Gonzaga do Prado (Vida Pastoral, 2016) comenta: O Menino do presépio é a manifestação da graça salvadora de Deus. Aquele que teve como berço um cocho, onde se coloca alimento para os animais, e teve como leito de morte a vergonhosa cruz, ele é que nos revela a graça salvadora de Deus, ele é que mostra à humanidade o caminho da vida, ele é que mostra como é gratuita a salvação.

Ele não nos tira deste mundo, mas não nos deixa ser arrastados pela cobiça e pela arrogância que governam o mundo. Ao contrário, sua pobreza e humildade nos ensinam a viver com moderação, sem a gastança em que se converteu a celebração do nascimento do Menino; a viver humildemente, procurando a justiça e a piedade, sem procurar a glória do presente, na serena expectativa da glória que virá.

Evangelho: Lc 2,1-14

Lc escreveu para cristãos vindos do paganismo, gregos e romanos que tinham pouco conhecimento da religião judaica. Na sua narrativa, Lc apresenta a infância de Jesus e João Batista com simpatia pelos costumes judaicos, usando a linguagem do Antigo Testamento (AT, traduzido em grego na versão dos LXX). Mas ao mesmo tempo tem interesse na pesquisa histórica (cf. 1,1-4), assim insere a biografia de Jesus na história da humanidade. Nele, a salvação antes reservada aos judeus, torna-se universal (cf. o segundo volume de Lc, os Atos dos Apóstolos: 1,8 etc.).

Na exegese (interpretação científica), há um debate, se o nascimento de Jesus em Belém é histórico ou apenas simbólico, ou seja, uma narrativa para confirmar a fé de que Jesus é realmente o messias (que devia ser descendente de Davi, portanto, vir de Belém, cf. Jo 8,41s). Em Mt 2, Jesus também nasce em Belém, porém, a sagrada família já mora lá e se muda a Nazaré só anos depois.

Aconteceu que, naqueles dias, César Augusto publicou um decreto, ordenando o recenseamento de toda a terra. Este primeiro recenseamento foi feito quando Quirino era governador da Síria (vv. 1-2).

A história de Jesus não começa “era uma vez” como nos contos de fadas ou nos mitos antigos, mas com dados históricos. A pessoa de Jesus não é mito nem ficção, mas nasceu sob o imperador César Augustus, começou sua atividade pública sob César Tibério e “padeceu sob Pôncio Pilatos” (Credo; cf. 3,1). A palavra de Deus, que criou o universo, se fez carne (Jo 1,14), um homem concreto num tempo e lugar determinados.

“Síria” era a província romana da qual Palestina (nome grego por Israel) fazia parte. Em Israel, Herodes Grande governava pela graça de Roma. Ele morreu já em 4 a.C., portanto nossa contagem dos anos “depois (do nascimento) de Cristo”, que foi feita pelo monge Exíguo no séc. VI d.C., não é exata. Hoje sabemos que Jesus já nasceu alguns anos antes do começo da nossa era cristã (cf. Mt 2,19; Lc 1,5).

Na época de Jesus, contavam-se os anos depois da fundação de Roma (753 a.C.). Após vários séculos, a república em Roma havia se desgastado por corrupção e guerras civis. Com apoio popular, Júlio César se fez ditador vitalício. Depois do seu assassinato em 44 a.C., as rijas em Roma continuaram. Otaviano venceu seu rival Antônio em 31 a.C. e se fez imperador recebendo o título “Augusto” (venerável). Os povos estavam subjugados e unificados sob o mesmo Império que iniciou uma política de paz. O clima era de esperança de uma nova era trazida por Augusto como “salvador”. Mas para sustentar a política da capital e do seu exército, precisava de tributos das províncias. Então Augusto ordenou um “recenseamento de toda terra”. A palavra grega usada é oikumene (daí ecumenismo), significa toda terra habitada.

Segundo as informações do historiador judaico Flávio Josefo (contemporâneo de Lc), o recenseamento sob o governador Quirino aconteceu somente em 6 d.C. e provocou uma insurreição liderada por Judas Galileu (cf. At 5,37). Mas é possível que o recenseamento se tenha enrolado lentamente em dois períodos: primeiro o levantamento de todas as propriedades de terra e imóveis, e depois – em um segundo momento – a determinação dos impostos concretos a pagar. Assim, a primeira etapa ocorreu nos dias do nascimento de Jesus; e a segunda, mais irritante para o povo, suscitou a insurreição.

Todos iam registrar-se, cada um na sua cidade natal. Por ser da família e descendência de Davi, José subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na Judeia, para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida (vv. 3-5).

Na primeira etapa, para registrar-se no recenseamento, os interessados deviam-se apresentar na localidade onde tinham terras de sua propriedade. Podemos supor que José, descendente de Davi, possuísse um terreno em Belém, pelo que tinha de ir lá? Um pequeno proprietário de terra que não dava muito ou estava comprometida em herança ou arrendada, e por isso ele havia migrado para Galileia onde havia bastante trabalho na construção civil na nova cidade de Tiberíades, perto de Nazaré? De qualquer modo, José e Maria eram pobres, “não havia lugar para eles” (v. 7; cf. o sacrifício dos pobres em v. 24).

O decreto do imperador romano para o registro fiscal, porém, leva José, juntamente com sua esposa Maria, “à cidade de Davi, chamada Belém”, onde Davi era pastor de ovelhas (cf. 1Sm 16) e, segundo Mq 5,1-3, o messias, dominador e pastor de Israel, devia nascer (citado por Mt 2,6). Fora disso, a cidade de Davi no AT é sempre Jerusalém, capital do seu reinado (2Sm 5,7.9; 6,10,12; Is 22,9).

Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria (vv. 6-7).

O conteúdo principal, o nascimento do Cristo, é introduzido com fórmula “completaram-se os dias”, não apenas da gravidez (igual com Isabel em 1,57), mas também das profecias da AT.

Dentro dessa situação de dominação nasce Jesus, o Messias, que desde o primeiro instante de sua vida se identifica com os pobres (cf. Lc 6,20; Mt 25,31-36). Ao contrário de João Batista que nasceu no conforto de uma casa sacerdotal, rodeado por um largo círculo de parentes (1,5.57s), Jesus nasce nas incertezas de uma viagem, em um abrigo miserável; para Maria, a quem foi anunciado o “Filho do Altíssimo” (1,32), certamente uma dura provação da sua fé.

“Não havia lugar para eles na sala (da hospedaria)”, somente no espaço dos animais, onde Maria “o colocou na manjedoura”. De fontes do séc. II sabemos que foi numa “gruta” (S. Justino e o Protoevangelho de Tiago 13,1). Desde sempre, na região ao redor de Belém, se usavam grutas como estábulos. No séc. IV, o imperador Constantino construiu uma das mais antigas igrejas sobre este lugar.

Começa a inversão dos valores na vida de Jesus, expressa no cântico de Maria (1,46-55) e depois nas bem-aventuranças (6,20-26). Jesus não nasce num berço de ouro dentro de um palácio da capital (nem em Roma, nem em Jerusalém onde os magos o procuram primeiro, cf. Mt 2,1-3). O Senhor não tem lugar onde morar (Is 66,1; 2Sm 7) ou reclinar a sua cabeça (Lc 9,58p); também morre abandonado (Mc 14,56; 15,34), crucificado “fora” da cidade (Hb 13,12).

Em Sb 7,1-6, o rei Salomão (autor fictício) confessa que também ele é “homem mortal igual a todos, … feito de carne, … Ao nascer, também eu respirei o ar comum, … estreei minha voz chorando, igual a todos. Fui envolto em faixas e cercados de cuidados. Nenhum rei começou de outra maneira; idêntica é a entrada de todos na vida, e a saída.”

“Primogênito”, não quer dizer que Maria teve outros filhos depois, mas que não teve outros filhos antes. Os “irmãos” de Jesus em Nazaré (Mc 3,35p; 6,3p; At 1,14; Jo 7,3; Gl 1,19) não são declarados como filhos de Maria e podem significar outros parentes (cf. Gn 13,8). Todo “primogênito”, porém, precisa ser resgatado em agradecimento da libertação da morte dos primogênitos na última praga durante a escravidão no Egito (cf. Ex 13,1s.11-16). Por isso, na narrativa seguinte (vv. 22-38), Lc narra a apresentação do menino Jesus no templo de Jerusalém.

Paulo designa Jesus “o primogênito de muitos irmãos” (Rm 8,29), como ressuscitado é Aquele que inaugura uma nova humanidade, uma nova criação da qual podem participar todos quantos, no batismo, morreram e ressuscitaram junto com ele. Na pobre manjedoura já está presente o esplendor cósmico, o “primogênito de toda criação” (Cl 1,15; cf. Cl 1,18; Hb 1,6; Ap 1,5). O menino na manjedoura pode lembrar o menino Moisés colocado num cesto de papiro (Ex 2,3), assim o leitor pode adivinhar neste “sinal” (v. 12) um futuro especial para este menino.

A teologia dos ícones, com base na teologia dos Padres, interpretou as “faixas” e a “manjedoura” como alusão à eucaristia: O menino está rigorosamente envolvido com faixas, uma alusão antecipada às faixas mortuárias (23,53p). O nome de Belém (Bet-Lehem) significa “casa de pão”, e Jesus é colocado no lugar onde comem as criaturas (na manjedoura), isso evoca Jesus como “pão descido do céu” que dá vida, a eucaristia (cf. Jo 6). A liturgia de hoje traduziu aqui “hospedaria”, mas para esta, Lc emprega outro termo (cf. 10,34). Aqui Lc usa o termo “sala” (de hóspedes), como também na última ceia (22,11)!

Há uma linha que leva da manjedoura à cruz: Jesus nasceu para morrer por nós e nos dar a vida dele; é o “comércio admirável”, a troca dos bens entre céu e terra: Deus se faz humano (mortal) para nos fazer divinos (vida eterna).

O evangelho não fala de animais presentes, mas nos presépios montados colocam-se um boi e um jumento, que a tradição cristã relacionou com Is 1,3: “O boi não conhece seu dono, e o jumento, a manjedoura do seu senhor; mas Israel é incapaz de conhecer, o meu povo não pode entender”. Provavelmente teve influência também na versão grega de Hab 3,2: “No meio de dois seres vivos, … tu serás conhecido” que se pode entender como a presença de Deus no meio das figuras de dois anjos (querubins) colocadas na placa da arca da aliança (cf. Ex 25,18-20). Assim a manjedoura torna-se de certo modo a arca da aliança, onde Deus se manifesta (epifania) no meio de dois animais que representam a humanidade (judeus, gentios), por si mesma desprovida de compreensão, mas diante da aparição humilde deste menino chega ao conhecimento.

Com estes detalhes não se deve esquecer o motivo principal da narração: “Como o ancestral Davi pertencia aos pastores, assim o rebento prometido nasce no ambiente da vida pobre de pastores” (F. Hauck).

Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho. Um anjo do Senhor apareceu aos pastores, a glória do Senhor os envolveu em luz, e eles ficaram com muito medo (vv. 8-9).

Os primeiros a receber a Boa Notícia (Evangelho significa Boa Mensagem) são os pobres e marginalizados, representados pelos pastores. Com efeito, na sociedade da época, os pastores eram desprezados, porque não tinham possibilidade de cumprir todas as exigências da Lei. É para eles que nasceu o Salvador, o Messias e o Senhor. E serão também os primeiros a anunciar a sua chegada (v. 20). Eles representam os pobres, preferidos do amor de Deus em seu reino (cf. 1,48.52; 6,20) e mais receptíveis a Boa Notícia (cf. 10,21s).

Aíla L. Pinheiro de Andrade (na revista Vida Pastoral 2017) comenta: Se, por um lado, não tem lugar para nascer, por outro, é acolhido pelos pastores, acontecimento que é o cume teológico desta seção (v. 11). A promessa divina tinha sido feita a pastores como Abraão, Jacó, Moisés, Davi etc. Agora, Deus estava cumprindo sua promessa e, por isso, o anúncio aos pastores tem caráter de evangelho, que quer dizer “boa notícia”.

Jesus nasce em Belém no meio dos pastores como Davi que foi constituído pastor de Israel (1Sm 16,1-13; 17,15.28.34s; 2Sm 5,2; 7,8; Sl 78,70-72; cf. a profecia de Mq 5,1-3). Jesus será o “grande pastor” dos seres humanos (Hb 13,20; cf. 1Pd 2,25; cf. o motivo pastoral em 15,3-6p; Jo 10,11s).

A proclamação do anjo é o centro desta parte; desta vez não é Gabriel (como em 1,11.26), mas o “anjo do Senhor” que representa o próprio Javé (Gn 16,7; 22,11; Ex 3,2; Jz 2,1 etc.; cf. Mt 1-2; 28,2; At 5,19; 12,7). A reação comum dos pastores é “muito medo” (1,12.29).

Glória, luz e alegria formam a constelação inicial de Is 8,23-9,6 (cf. Br 5) que culmina no nascimento de um menino cujo título é “príncipe da paz” (cf. 1ª leitura de hoje). A “glória do Senhor” designa a manifestação visível do mistério divino (Ex 13,22; 24,6; 40,34s; 1Rs 8,10s; Ez 1,28; 9,3; 43,1 etc. e Rm 3,23; 9,4; 2Cor 4,6 …).

O anjo, porém, disse aos pastores: “Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal: Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (vv. 10-12).

As palavras do anjo têm elementos de outras aparições: “Não tenhais medo” (cf. Gabriel em 1,13.30; o anjo do Senhor em Mt 1,20; etc.). Ele é evangelista, portador de uma Boa Nova (cf. Is 40,9; 52,7-10) que anuncia “alegria” (cf. a exortação de Papa Francisco em 2013: Evangelii Gaudium = A Alegria do Evangelho).

Alegria é palavra chave em todo evangelho de Lc (cf. 1,14.28.46.58; 10,17.20s; 13,17; 15,7.32; 19,6.37; 24,41.52; cf. At 2,46; 5,41; Fl 1,4 etc.). Aqui a causa da alegria é o nascimento de uma pessoa (identidade-nome) que recebe três títulos: Salvador, Cristo, Senhor. O anjo também indica um sinal para verificar sua mensagem.

O anúncio se refere a “hoje”; em Lc, termo significante para salvação (cf. 2,11; 4,21; 5,26; 19,5.9; 23,43; cf. 19,47; Mc 1,15). Este “hoje” no início da mensagem faz o tempo parar para a transcendência (mundo eterno de Deus) entrar em nosso mundo e nossa história.

Jesus é o “Salvador”, porque traz a paz e libertação definitiva. O AT reserva, o mais das vezes, este título a Deus (Dt 32,15; 1Sm 10,19; Sl 24,5; 27,1.9; 62,2.7; 65,6; 79,9; 95,1 etc.; cf. Maria em Lc 1,47; 1Tm 1,1) e o dá às vezes aos juízes de Israel (Jz 3,9.15; 12,3; Ne 9,27). Os evangelistas só o dão a Jesus aqui e em Jo 4,42 (mas eles dizem Jesus salva os doentes: Mc 3,4; 5,23.28.34; 6,56; 10,52; 15,31 e par.). No resto de NT, Jesus é chamado de Salvador em At 5,31; 13,23; Ef 5,23; Fl 3,20, 2Tm 1,10; Tl 1,4; 2,13; 3,6; 2Pd 1,1.11; 2,20; 3,18; 1Jo 4,14. Este título parece ter sido usado mais nas comunidades do mundo grego, como demonstra uma inscrição que chama Augusto de Salvador.

Jesus é o “Cristo” = (rei) ungido = messias (cf. 1Sm 16,13; 2Sm 7,12-16 etc.), porque traz o Espírito de Deus, que convoca os homens para uma relação de justiça e amor fraterno (cf. Is 11,1-9; 42,1; 61,1).

Jesus é o “Senhor” (1,43), porque vence todos os obstáculos, conduzindo os homens dentro de uma história nova. Alguns manuscritos antigos têm: o Senhor Cristo, ou: o Cristo do Senhor. Esta última fórmula é usual no AT (1Sm 24,7.11; 26,9.11.23; 2Sm 1,14.16; 2,5; 19,22) e no judaísmo, e encontra-se também em 2,26. Mas o Cristo Senhor já se acha no grego de Lm 4,20 e no Salmo de Salomão 17,36 (apócrifo do séc. I); Paulo menciona muitas vezes o Senhor Jesus Cristo e nosso Senhor Jesus Cristo. Com estes títulos, que lhe é próprio nos evangelhos, Lc indica que Jesus é o Messias e sugere o caráter divino de seu senhorio régio (cf. At 2,36; Fl 2,9-11).

O “sinal” que os pastores encontrarão é o pobre menino na manjedoura, não é sinal do messias nem da divindade, mas sinal da verdade do que o anjo disse sobre este menino (cf. Ex 3,12; 1Sm 2,34; 14,10; 2Rs 19,29; 20,9; Is 37,30; 38,7). “A pobreza de Deus é seu verdadeiro sinal” (Bento XVI, A Infância de Jesus, p. 69). Na verdade, a estrebaria contradiz as expectativas messiânicas da época. Esperava se o nascimento de um rei. Mas se o messias-rei tivesse nascido no palácio, os pobres (pastores) nem poderiam entrar e encontrá-lo, seria um salvador apenas das elites, não a “salvação para todos os homens” (Tt 2,11; cf. 2ª leitura).

E, de repente, juntou-se ao anjo uma multidão da corte celeste. Cantavam louvores a Deus, dizendo: “Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados” (vv. 13-14).

Depois da proclamação do anjo, segue a aclamação do coro; conforme o conceito judaico são anjos que pertencem à “coorte celeste” (1Rs 22,19; 2Cr 18,18).

Os anjos dão “glória a Deus no mais alto dos céus” (cf. Sl 148,1s) por ocasião da salvação que ele concede em Jesus. O evangelista não diz que “cantavam”, mas escreveu: “louvaram dizendo: ‘Glória…’”. Mas a tradição cristã entendeu desde sempre que este louvor dos anjos só pode ser cantado, daí surgiu o canto de Glória na missa, um louvor à divindade de Jesus. A origem pode ser um canto (salmo) de entrada, como se pode ver na semelhança com a aclamação na entrada de Jesus em Jerusalém (19,38). Aqui, os anjos, atores da liturgia celeste, celebram a entrada de Jesus no mundo (Hb 1,6). A glória de Deus não é apenas seu aspecto luminoso (Ex 24,16s) e o louvor dos anjos à sua santidade (Is 6,3), mas sua atuação no mundo, aqui o envio do messias ao mundo onde se revela seu poder e sua misericórdia; a novidade é que a separação do céu e da terra foi superada e os seres humanos podem participar da glória de Deus.

O final da frase é mais conhecido na tradução em latim: “aos homens de boa vontade”. Mas na língua original (grega) é: “para os homens da (sua) benevolência (graça, amor, agrado)”. A fórmula dos homens que são objetos da benevolência divina, encontra-se também nos textos de Qumrã, nos quais designa os privilegiados de Deus (não por vontade humana, mas por iniciativa de Deus, cf. Is 49,8; Sl 30,6; 89,18). O sentido que Lc pretende dar a estas palavras não é claro: ou pensa no povo eleito como v. 10, ou sua perspectiva é uma universalidade em que são todos os homens (povos) objetos da benevolência, como em 3,6 (“toda carne verá a salvação de Deus”, cf. Is 40,5, grego)?

Uma pista pode ser a voz do céu no batismo de Jesus: “Tu és meu filho amado; em ti pus todo o meu agrado” (3,22p). O homem do agrado é Jesus. Portanto, as pessoas do agrado são aquelas que têm o comportamento do Filho; pessoas configuradas com Cristo. Graça, predestinação de Deus e a livre vontade do ser humano se penetram mutuamente.

O nascimento de Jesus é o penhor da paz messiânica (Is 9,5s; 52,7; 57,19; Mq 5,4); Lc insiste muito na paz (cf. 1,79; 2,14.29; 7,50; 8,48; 10,5s; 11,21; 12,51; 14,32; 19,38.42; 24,36). A verdadeira paz não veio de César Augusto, embora tenha iniciado uma era da paz romana que durou 250 anos com poucas exceções (p. ex. na Palestina, naquela época e ainda hoje, falta a paz). Como o reino de Jesus não é deste mundo (Jo 18,36), ele dá uma paz maior que a paz do mundo e de Augusto (Jo 14,27; 20,19.21.26; Ef 2,14-18). Augusto é passado. Jesus é presente e futuro: “ontem, hoje, e por toda eternidade” (Hb 13,8).

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