24 de janeiro de 2017 – Terça-feira, 3ª semana

Leitura: Hb 10,1-10

É discutido na exegese atual se, na época da redação de Hb, ainda havia o culto no Templo de Jerusalém com sacerdotes atuando. A datação de Hb (antes de 70 ou perto de 90 d.C.) depende desta resposta, porque o Templo foi destruído pelos romanos em 70 d.C. e nunca mais reconstruído (um santuário muçulmano está no lugar hoje). Na leitura de hoje, em 10,1-3.11, o autor anônimo de Hb descreve a liturgia do templo como atual, mas em 9,10 afirmou que ela estava destinada a desparecer.

A Lei possui apenas o esboço dos bens futuros e não o modelo real das coisas. Também, com os seus sacrifícios sempre iguais e sem desistência repetidos cada ano, ela é totalmente incapaz de levar à perfeição aqueles que se aproximam para oferecê-los. Se não fosse assim, não se teria deixado de oferecê-los, se os que prestam culto, uma vez purificados, já não tivessem nenhuma consciência dos pecados? Mas, ao contrário, é por meio destes sacrifícios que, anualmente, se renova a memória dos pecados, pois é impossível eliminar os pecados com o sangue de touros e bodes (vv. 1-4)

Como a Tenda no deserto ou o Templo em Jerusalém, também “a Lei possui apenas o esboço dos bens futuros e não o modelo real das coisas” (v. 1; cf. 8,1-5). O que o apóstolo Paulo disse sobre a Lei judaica, o autor anônimo de Hb repete sobre a liturgia da antiga aliança. Segundo Paulo, a Lei concretiza e condena o pecado, mas não é capaz de libertar dele. Só a graça de Deus e a fé em Jesus Cristo nos justificam e salvam (cf. Gl 2,16; 3,11.19.23; Rm 3,19-26 etc.).

A antiga Lei não tinha uma solução válida para remediar a culpabilidade humana. A liturgia judaica “com seus sacrifícios sempre iguais” (v. 2) faz reviver a experiência do pecado, “anualmente, se renova a memória dos pecados” (v. 3), no Dia do Perdão (Yom Kippur, cf. Hb 9,7; Lv 16), mas “é impossível eliminar o pecado com o sangue de touros e bodes” (v. 4). Isto já os profetas reconheceram nas suas críticas a um culto meramente exterior (cf. Am 5,21-23; Is 1,11-15).

A Lei estava circunscrita a recomeçar indefinidamente as mesmas tentativas ineficazes de mediação… consistindo em oferecer animais imolados, elas permaneciam obrigatoriamente exteriores ao homem (10,4) e exteriores a Deus (10,5). Em lugar esse culto ritual, Cristo oferece generosamente ao Pai a sua obediência pessoal (Vanhoye, p. 77).

Por isso, ao entrar no mundo, Cristo afirma: “Tu não quiseste vítima nem oferenda, mas formaste-me um corpo. Não foram do teu agrado holocaustos nem sacrifícios pelo pecado. Por isso eu disse: ‘Eis que eu venho’. No livro está escrito a meu respeito: ‘Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade’”. Depois de dizer: “Tu não quiseste nem te agradaram vítimas, oferendas, holocaustos, sacrifícios pelo pecado” — coisas oferecidas segundo a Lei — ele acrescenta: “Eu vim para fazer a tua vontade”. Com isso, suprime o primeiro sacrifício, para estabelecer o segundo (vv. 5-9).

O autor de Hb recorre ao Sl 40/39 (Salmo responsorial), no qual o orador agradece reconhecendo que Deus não queria sacrifícios pelo pecado, “vítimas, oferendas, holocaustos – coisas oferecidas segundo a Lei” (v. 8), mas que o homem realizasse a vontade divina (cf. Sl 50,18; Mq 6,6-8).

A palavra grega holocausto (em hebraico shoa) designa o sacrifício de um animal, oferecido e “queimado por inteiro” no altar (Lv 1). Hoje os judeus não oferecem mais sacrifícios, porque só podiam fazê-lo no templo (Dt 12), mas este foi destruído pelos romanos em 70 d.C. e nunca mais reconstruído (um santuário muçulmano está no lugar hoje). No séc. 20, a palavra holocausto simboliza o genocídio dos nazistas ao povo judeu, porque milhões foram queimados nos fornos dos campos de concentração de Auschwitz e outros.

A carta aos Hb identifica o orador do Sl 40 com Jesus: “Ao entrar no mundo, Cristo afirma: “… formaste-me um corpo… eu vim, o Deus, para fazer a tua vontade” (vv. 5-7; cf. Sl 40,7-9 versão grega).

Já nos evangelhos, o próprio Jesus critica que a observância da lei na interpretação dos fariseus não é suficiente, é preciso “praticar a vontade do Pai” (Mt 7,21). Cristo nos mostra, através da sua vida e morte, qual é a vontade de Deus, ou seja, a lei maior: “amar a Deus… e o próximo como a si mesmo é melhor do que todos os holocaustos” (Mc 12,28-34); devemos até “amar os inimigos” (Mt 5,43-48p; cf. Lc 23,34). A lei nova é amar como ele amou (Jo 13,34; 15,12.17; cf. 1Jo)

Este é o “segundo sacrifício”, não oferecer animais, mas sua própria vida por amor. Apesar de ser “leigo”, porque não nasceu numa família sacerdotal (o sacerdócio em Israel era hereditário), Jesus é um “sumo sacerdote” superior (cf. caps. 7-9): ele selou a nova e eterna aliança (13,20) com seu próprio sangue, não com o sangue alheio de animais (9,12).

É graças a esta vontade que somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo, realizada uma vez por todas (v. 10).

A oferenda de Cristo é evidentemente aceita por Deus, já que consiste em cumprir o que Deus quer (“submissão…obediência”, 5,7s; “fazer sua vontade”, cf. Mc 14,36p; Jo 6,38). E, longe de ser exterior ao homem, o toma inteiramente, pois parte do coração (na Bíblia, centro das decisões) e vai até a “oferenda do corpo”. Assim nos tira do impasse, do bloqueio do pecado que obstruiu nosso caminho (conexão) para Deus. Este era “sacrifício único pelos pecados” (v. 12; cf. 7,27; 9,26), eficaz e capaz de nos salvar: “somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo”. A. Vanhoye (p. 78) comenta: E graças a essa oferenda perfeita, Deus pôde por fim realizar o seu projeto de restabelecer uma comunicação vivificante entre ele e nós (10,10; cf. 2Cor 5,18-19).

Assim não precisamos mais de outros sacrifícios a não ser fazer a vontade de Deus, “é graças a esta vontade que somos santificados” (v. 10; cf. Mt 6,9-11; Jo 6,39s). A leitura de hoje destaca o momento em que Cristo “entra no mundo” e se “forma um corpo” no ventre de Maria (é a 2ª leitura na festa da Anunciação do Senhor em 25 de março, nove meses antes de Natal, cf. Gl 4,4). Sua missão é fazer a vontade do Pai que nos salva (cf. Jo 4,34; 6,40; Mt 6,10; 7,21; 26,42), oferecendo seu “corpo” em sacrifício único que nos santifica e salva “uma vez por todas” (v. 10; cf. 7,27; 9,12.26). Na Eucaristia, nós não repetimos este “sacrifício único” de Cristo, mas fazemos “memória”, ou seja, atualizamos seus efeitos na memória sacramental que o torna presente.

Evangelho: Mc 3,31-35

O evangelho de Mc não narra os acontecimentos da infância de Jesus. Ouvimos da família dele só em v. 21, aqui em 3,31-35 e em 6,1-6. No evangelho de Mc, ninguém compreende Jesus, nem os adversários, nem o povo, nem os discípulos, nem os próprios familiares (cf. v. 21; 4,13; 6,1-6; 8,32; 9,32 etc.; 15,35).

Chegaram a mãe de Jesus e seus irmãos. Eles ficaram do lado de fora e mandaram chamá-lo. Havia uma multidão sentada ao redor dele. Então lhe disseram: “Tua mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura” (vv. 31-32).

Jesus está no interior da casa (provavelmente a de Simão Pedro, cf. 1,19; 2,1; 3,20), “uma multidão sentada ao redor dele” (v. 32). Por “fora” deste círculo, os familiares procuram Jesus, define-se os “seus” que “saíram para agarrá-lo” (em 3,21), agora “chegaram a mãe de Jesus e seus irmãos” (v. 31). O termo “irmão” abrange, em linguagem bíblica, também os parentes (cf. Gn 13,8: tio e sobrinho). Não se menciona o pai José (também não em 6,3). Então, José já deve ter morrido e Jesus, como primogênito adulto tornou-se chefe desta família que quer agora romper o círculo dos seguidores e reclamar seu parente famoso (cf. 3,20-21, evangelho de sábado passado).

Ele respondeu: “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?” E olhando para os que estavam sentados ao seu redor, disse: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (vv. 33-35).

Jesus não despreza vínculos familiares, por isso, ele tem um “Pai” no céu (Lc 2,41-52; Mc 14,36; Mt 6,9p). Mas ele está criando uma nova família, não através da carne, mas através do Espírito (cf. Jo 1,12-13; Rm 8,14-17). “Quem faz a vontade de Deus” (cf. 14,36p; “do Pai”, cf. Mt 6,10b; 7,21; 12,50), fará parte desta nova família de Jesus (vv. 34-35). Quanto à Maria, ninguém como ela cumpriu a vontade do Pai e foi agraciada com o Espírito (cf. Lc 1,35-38).

O site do CNBB resume: Somos convidados pelo evangelho de hoje a descobrir a verdadeira família à qual nós pertencemos: a família dos filhos e filhas de Deus, que procura conhecer e pôr em prática a vontade do Pai e participar do seu projeto de construção do mundo novo, da civilização do amor, sinal do Reino definitivo. Participar dessa verdadeira família não significa negar a nossa família terrena, nem os nossos relacionamentos sociais e afetivos, mas subordinar essas duas realidades à realidade maior, que é a família dos filhos e filhas de Deus, fazendo, assim, com que haja uma verdadeira hierarquia de valores na nossa vida, que subordina o temporal ao eterno.  

 

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