24 de julho de 2016 – 17º Domingo Ano C

Leitura: Gn 18,20-33

A 1ª leitura combina com o ensinamento sobre a oração que Jesus dá no evangelho. Na leitura do domingo passado (18,1-10a), ouvimos como Senhor apareceu a Abrão e Sara em forma dos “três homens” (Deus e dois anjos) “de junto ao carvalho de Mambré” em Hebron (cf. 13,18; 14,13; 15,1). Abraão os acolheu e serviu generosamente a seus hóspedes que renovaram a promessa da descendência.

Na 1ª leitura da hoje, Abrão intercede num diálogo pelo seu sobrinho Ló que morava em Sodoma (13,12), uma das cidades que o Senhor pretende destruir (cap. 19). Ao que aparece, um ciclo de Ló (caps. 13-14) foi ligado ao ciclo de Abraão recolhendo e transformando uma velha lenda sobre a destruição de Sodoma e Gomorra.

A Nova Bíblia Pastoral (p.37s) comenta: Os pastores praticam o sagrado direito da hospitalidade (18,2-7; 19,1-8; 24,30-32; Jz 19,16-21; Jó 31,32). Inspirados pelo aspecto das rochas e da depressão do mar Morto, os pastores contavam histórias contra as cidades que despeitavam com violência esse costume deles (19,5-8; cf. 12,10-20; Jz 19,22-25). Para seus filhos continuarem como pastores, mostravam Deus do seu lado e as cidades como lugar do mal (18,20; cf. 13,13… Jr 23,14; Mt 11,23; Ap 11,8), onde não havia nenhum justo (18,23-33).

(Naqueles dias,) o Senhor disse (a Abraão): “O clamor contra Sodoma e Gomorra cresceu, e agravou-se muito o seu pecado. Vou descer para verificar se as suas obras correspondem ou não ao clamor que chegou até mim.” Partindo dali, os homens dirigiram-se a Sodoma, enquanto Abraão ficou na presença do Senhor (vv. 20-22).

Por motivos de brevidade, nossa liturgia omitiu a partida dos dois homens (anjos) em direção a Sodoma e o monólogo de Javé Deus que ficou com Abraão (vv. 16-19). Continua um diálogo sobre a justiça divina inspirando-se no questionamento (teodiceia) que catástrofes evocam quando morrem milhares de pessoas culpadas e inocentes. O autor adota um esquema judicial. Chegou ao juiz uma denúncia (v. 20); despacha funcionários para comprovar se é certa (vv. 21-22); sem interrogatório, o juiz vai proceder à sentença; mas antes concede a palavra a um defensor (vv. 17.23). Não sendo suficiente a defesa, passa-se a execução ou condenação (cap. 19). O juiz é Deus, os investigadores são os dois anjos, o defensor é Abraão, cujo sobrinho Ló escolheu morar naquela cidade de pecadores (13,10-13).

Aplica-se o esquema forense do juiz que investiga da denúncia (cf. Dt 17,4-5), porém, quem desce, são os dois anjos, Javé fica com Abraão. Em outros textos se diz que Deus vê tudo e nem precisa averiguar (Sl 11,4-5; Jó 34,24; Pr 15,3. Eclo 16,17-23). Em Ex 3,7-10, o Senhor “viu” a miséria, “ouviu” o clamor do seu povo oprimido e “desce” para libertá-lo (fazer sair/subir) através de Moisés.

Então, aproximando-se, disse Abraão: “Vais realmente exterminar o justo com o ímpio? Se houvesse cinquenta justos na cidade, acaso iríeis exterminá-los? Não pouparias o lugar por causa dos cinquenta justos que ali vivem? Longe de ti agir assim, fazendo morrer o justo com o ímpio, como se o justo fosse igual ao ímpio. Longe de ti! O juiz de toda a terra não faria justiça?” O Senhor respondeu: “Se eu encontrasse em Sodoma cinquenta justos, pouparia por causa deles a cidade inteira”. Abraão prosseguiu dizendo: “Estou sendo atrevido em falar a meu Senhor, eu que sou pó e cinza. Se dos cinquenta justos faltassem cinco, destruirias por causa dos cinco a cidade inteira?” O Senhor respondeu: “Não destruiria, se achasse ali quarenta e cinco justos”. Insistiu ainda Abraão e disse: “E se houvesse quarenta?” Ele respondeu: “Por causa dos quarenta, não o faria”. Abraão tornou a insistir: “Não se irrite o meu Senhor, se ainda falo. E se houvesse apenas trinta justos?”. Ele respondeu: “Também não o faria, se encontrasse trinta”. Tornou Abraão a insistir: “Já que me atrevi a falar a meu Senhor, e se houver vinte justos?” Ele respondeu: “Não a iria destruir por causa dos vinte”. Abraão disse: “Que o meu Senhor não se irrite, se eu falar só mais uma vez: e se houvesse apenas dez?” Ele respondeu: “Por causa dos dez, não a destruiria” (vv. 23-33).

Abraão se atreve questionar uma sentença coletiva e interceder barganhando como que estivesse num mercado oriental: 50? 45? 40? 30? 20? 10? Abraão exagera o respeito para dissimular a audácia, mas sua audácia supõe alto grau de confiança previamente adquirida: “Estou sendo atrevido em falar a meu Senhor, eu que sou pó e cinza” (v. 27; cf. 2,7; 3,19; Jó 34,15; Sl 90,3; 104,29).

O diálogo discute um problema ético e teológico, um problema de todos os tempos: devem os bons sofrer com os maus e por causa deles? Problema desde a educação (castigo coletivo) até a justiça divina (teodiceia).

Supondo que Deus rege a história, qual é a sua responsabilidade em casos de conflitos? Devem ser castigados justos com pecadores (cf. Ez 21,8-9)? Não é castigo – ou é castigo para uns e desgraça para os inocentes. Para salvar os inocentes, não será justo deixar de castigar os culpados, afirma Abraão: “Longe de ti, agir assim, fazer morrer o justo com o ímpio, como se o justo fosse igual ao ímpio. Longe de ti! O juiz de toda terra não faria justiça?” (v. 25, cf. Rm 3,5-6). Observe o tom apaixonado da pergunta: Abraão dispara a falar, numa explosão de indignação ante a possível e colossal injustiça. Há mais injustiça em condenar alguns inocentes do que em poupar uma multidão de culpados? Eis aqui a grande questão da teodiceia (cf. Sb 12,12-18). Que Deus é justo, também como juiz, o afirmam muitos textos (Sl 33,5; 99,4; Jó 34,10-13 etc.).

Sendo forte, no antigo Israel, o sentimento da responsabilidade coletiva, não cabe aqui a pergunta, se os justos poderiam ser individualmente poupados (compare-se com as afirmações de Ex 34,7; Jr 18,7-10 corrigidas por Dt 7,9s; 24,16; Jr 18,31,29-30; Ez 14,12-20). Na última suposição, o defensor vai abaixando o número e se detém ao chegar até dez. Porque não continua? Num bazar (mercado oriental), se não barganhar, o outro se sente até ofendido, mas se abusar demais, o negócio não sai e o preço volta ao nível inicial. Segundo Jr 5,1 e Ez 22,30, Deus perdoaria a Jerusalém, se aí se encontrasse um só justo. Enfim, em Is 53, é o sofrimento único do Servo que deve salvar todo o povo, mas este anúncio não será compreendido senão quando for realizado por Cristo (1Pd 2,22-25; 3,18; Jo 1,29; 10,50 etc.).

Deus está pronto para salvar a cidade, não por causa da justiça dos seus habitantes, mas pelo “pequeno resto” de justos que nela se encontram (cf. Is 1,9; 4,3 etc.). Em Ez 16,53-55 se diz que mesmo para Sodoma condenada existe uma salvação possível.

Deus salvará Ló e sua família (19,15s). Abraão pediu somente, já que todos deviam sofrer a mesma pena, se alguns justos não poderiam obter o perdão para muitos culpados. As respostas do Senhor sancionam o papel salvador dos Santos no mundo. No final, não se salva toda cidade, mas se salva a família de Ló. A solução de Deus é distinguir entre justos e pecadores.

 

2ª Leitura: Cl 2,12-14

A 2ª leitura de hoje soa como eco de alguns atributos mencionados no hino lido no domingo retrasado (1,15-20; cf. Jo 1,14-16). O autor da carta (um discípulo de Paulo) continua aplicando o hino à vida dos colossenses. Já os vv. 9s falaram da plenitude divina de Cristo que é cabeça de todo principado e de toda autoridade.

“Já que vocês aceitaram Jesus Cristo como Senhor, vivam como cristãos: enraizados nele, vocês se edificam sobre ele e se apoiam na fé que lhes foi ensinada, transbordando em ações de graças. Cuidado para que ninguém escravize vocês através de filosofias enganosas e vãs, de acordo com tradições humanas, que se baseiam nos elementos do mundo, e não em Cristo” (vv. 6-8).

Assim como a árvore depende da raiz e a casa depende do alicerce, os cristãos dependem da fé em Cristo, transmitida pelo anúncio do Evangelho. O cristão deve estar vigilante para não ser influenciado por ideais que não sirvam para conhecer e viver com mais profundidade a pessoa de Cristo: “Ninguém vos enrede com sua filosofia.” Uma vez libertos do império das trevas e libertados por Cristo (1,13s), renegar a Cristo para voltar aos erros antigos seria recair na escravidão (cf. Gl 4,8s; 5,1). Não conhecemos o conteúdo das referidas doutrinas, pois nossa única fonte de informação é a carta. O que expõe não coincide com alguma escola filosófica conhecida. O v. 8 só nos oferece dois qualificativos negativos e uma vaga referencia ao conceito de “elementos” (Gl 4,3). Talvez o autor pense em duas forças funestas combinadas: por um lado a especulação e tradição da mente humana; por outro lado, os poderes cósmicos incontroláveis (destino, astros…), ou talvez nos elementos terra, água, fogo e ar que lutam entre si; pelo regime de certos alimentos, por ex., podia-se escapar da influência deles e a alma ascender ao éter celeste.

“É em Cristo que habita, em forma corporal, toda a plenitude da divindade. Em Cristo vocês têm tudo de modo pleno. Ele é a cabeça de todo principado e de toda autoridade” (vv. 9-10).

Mas se Cristo é a “Plenitude” de Deus (1,19), nele já  se encontra tudo o que é preciso para nos relacionarmos com Deus. Cristo está acima de qualquer poder visível ou invisível. O sentido da palavra “plenitude” (1,19) é precisado aqui pelo advérbio “corporalmente” e pelo adjunto adnominal “da divindade”. No Cristo ressuscitado se reúne todo o mundo divino- ao qual ele pertence, pelo seu ser preexistente e glorificado – e todo o mundo criado – que ele assumiu diretamente (a humanidade) e indiretamente (o cosmo) pela sua encarnação e ressurreição, em suma, toda a plenitude do ser. O cristão participa da plenitude de Cristo, como membro do seu corpo (1,19; Ef 1,23; 3,19; 4,12-13). Associado assim aquele que a cabeça dos poderes celestes, eles lhes é superior, a partir de agora. Os versículos seguintes desenvolverão essas duas ideias: participação do cristão no triunfo (vv. 11-13), submissão dos poderes celestes a este triunfo (vv.14-15).

“Em Cristo vocês foram circuncidados com uma circuncisão não feita por mãos humanas, mas com a circuncisão de Cristo, a qual consiste em despojar-se do corpo carnal” (v. 11).

Cristo nos libertou da morte, perdoando nossos pecados e tornando desnecessária a circuncisão (cf. Gn 17), que era exigida como condição indispensável para participar no banquete da Páscoa libertadora (Ex 12,44.48s; Js 5). Insiste no batismo, que nos incorpora à morte e ressurreição de Jesus Cristo (Rm 6,1-11). O rito corporal da circuncisão (no órgão corporal da transmissão da vida) incorporava o judeu à descendência de Abraão e à vida generativa do povo (Rm 2,29). O batismo como selo da fé nos incorpora à vida do Ressuscitado: é a nova circuncisão (Rm 6,4).

(Irmãos) com Cristo fostes sepultados no batismo; com ele também fostes ressuscitados por meio da fé no poder de Deus, que ressuscitou a Cristo dentre os mortos (v. 12).

O autor insiste no batismo, que nos incorpora à morte e ressurreição de Jesus Cristo (Rm 6,1-11). O rito corporal da circuncisão (no órgão corporal da transmissão da vida) incorporava o judeu à descendência de Abraão e à vida generativa do povo (Rm 2,29). O batismo como selo da fé nos incorpora à vida do Ressuscitado: é a nova circuncisão (v. 11; Rm 6,4).

O batismo, que substituiu a circuncisão (cf. v. 11), leva o cristão a participar da morte e ressurreição de Cristo, isto é, a passar da morte para vida em Cristo. Em Rm 6, a participação na morte era formulada no passado (mortos com Cristo), a participação na ressurreição reportava-se a um futuro comum com Cristo (nós viveremos com eles; cf. Rm 6,5). Aqui um paralelismo mais estreito se estabelece: nós morremos e ressuscitamos com Cristo. Os dois verbos estão no passado: é uma antecipação que epístolas anteriores não tinham feito. O objetivo permanece igualmente concreto: afirmar aos cristãos sua libertação com relação a toda potência. A carta aos Efésios irá ainda mais longe (cf. Ef 2,5-6).

Ora, vós estáveis mortos por causa dos vossos pecados, e vossos corpos não tinham recebido a circuncisão, até que Deus vos trouxe para a vida, junto com Cristo, e a todos nós perdoou os pecados. Existia contra nós uma conta a ser paga, mas ele a cancelou, apesar das obrigações legais, e a eliminou, pregando-a na cruz (vv. 13-14).

Os vv. 13-15 retomam outro hino que celebra a vitória: através da morte de Cristo na cruz, Deus anulou o registro dos pecados e venceu todas as potências que poderiam escravizar os homens. Portanto, os cristãos agora são livres e não devem se submeter a nada ou a ninguém que não seja Cristo. As imagens se sobrepõem: sepultura, documento de dívidas cancelado e posto no pelourinho (levado ao lugar de execução), marcha triunfal do vencedor com seu cortejo de prisioneiros subjugados (v. 15 omitido; cf. 1Pd 2,24; 2Cor 2,14). Em resumo, ninguém pode competir com Cristo, nenhum complemento falta à sua ação.

 

Evangelho: Lc 11,1-4

No evangelho de hoje, ouvimos a oração do Pai-Nosso na versão de Lc (sobre a versão de Mt 6,9-13 que rezamos na missa, cf. o comentário da 3ª feira da 1ª semana da Quaresma ou da 5ª feira da 11ª semana comum).

Um dia, Jesus estava rezando num certo lugar. Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou a seus discípulos” (v. 1).

Lc apresenta Jesus orando em várias ocasiões (3,21; 5,16; 6,12; 9,18. 28s; 10,21; 11,1; 22,32.40-46; 23,34.46). Aqui na introdução, Lc retoma o fio narrativo: A oração a Deus e o amor ao próximo são práticas da fé (cf. 10,25-37). A oração responde à palavra escutada (por Maria no episódio anterior, cf. 10,39). E agora as duas coisas se fundem, porque os discípulos pedem e “escutam” como se deve orar. Orar é a atividade integrante de toda a vida religiosa e pode ser mais importante que os sacrifícios: “todos os povos chamarão minha casa Casa de oração” (Is 56,7). Para orar, o AT nos oferece textos abundantes e varados: O saltério inteiro (livro dos 150 salmos) e muitas orações dispersas em textos narrativos, proféticos e sapiencias. Não basta? Jesus dá exemplo frequente de oração (3,21; 5,16; 6,12; 9,29); algo tem a ensinar, como João e outros mestres (cf. 5,33).

Jesus respondeu: “Quando rezardes, dizei: ‘Pai, santificado seja o teu nome. Venha o teu Reino (v. 2).

Jesus responde ao pedido, propondo uma oração muito breve, inclusive mais breve que a de Matheus, cinco pedidos ao invés de sete (Mt 6,9-13). Faltam o pedido “seja feita a tua vontade” (encontra-se na oração de Jesus no monte das oliveiras em 22,42p) e “livra-nos do mal”. Talvez a versão de Lc seja mais próxima do texto original que Jesus ensinou, porque é mais provável alguém (Mt) acrescentar palavras da oração de Jesus do que tirá-las (como se pode verificar no acréscimo antigo “pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre”, e no costume católico de anexar a oração da Ave-Maria).

A invocação “pai” orienta o resto. Substitui as do AT, JHVH (Javé) = “Senhor”, ou “meu Deus”. O indivíduo não chamava a Deus de Pai, exceto o rei (Sl 89,27) e um par de textos tardios (Eclo 23,1; 51,10). Jesus nos faz participar da sua relação filial excepcional (cf. 10,21s) ensinando como primeira palavra “Abbá”, palavra em aramaico que significa “painho”, a palavra com que as crianças se dirigem ao próprio pai. Esta palavra ficou cara aos primeiros cristãos (cf. Mc 1414,36; Rm 8,15; Gl 4,6) de modo que entrasse na linguagem sem ser traduzida (como “Amém”, “Hosana”).

“Seja santificado”, ou seja, respeitada ou reconhecida a tua santidade, não seja profanado o teu nome (cf. três vezes “santo” de Is 6,3 e Sl 99). Também com a conduta pode-se profanar o nome santo, especialmente diante dos pagãos (Ez 36,20-23).

“Venha o teu reinado”: responde em forma de pedido ao anuncio da boa nova (Mc 1,5p); que Deus seja efetivamente quem rege a história dos homens (cf. Sl 82,8; 98). Pede-se porque é um processo: chegou em Jesus e está para chegar em nós.

Dá-nos a cada dia o pão de que precisamos (v. 3).

Depois dos pedidos referentes a Deus (“teu”), parte-se para a esfera humana (“nós”). O discípulo não deve buscar riquezas materiais como luxo, mas o necessário (cf. 12,13-34p; 16,13.19-31; 18,18-30; 19,1-10; At 2,44s; 4,32.34-37 etc.). É duvidoso o significado do adjetivo do pão: se é “cotidiano”, “cada dia”, refere-se a nossa vida aqui (cf. Sl 136,25); como  á vida, também o sustento é dom de Deus. Se é o “pão do amanhã”, refere-se ao escatológico, o que alimenta a vida eterna na casa do pai. É possível que o autor quisesse abranger tudo. Há uma variação de leitura (que talvez se origine da liturgia batismal): “vosso Espírito Santo venha sobre nós e nos purifique”.

E perdoa-nos os nossos pecados, pois nós também perdoamos a todos os nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação’” (v. 4).

Lc interpreta corretamente as “faltas, dívidas, ofensas, pecados” de Mt 6,12, conservando o aspecto jurídico de Mt na segunda parte do pedido (“nossos devedores”). Já no AT, recomenda-se o perdão: “Perdoa a ofensa a teu próximo, e te perdoarão os pecados quando pedires” (Eclo 28,2; cf. 1Sm 24; Lc 6,37). O perdão é dom excelso. No NT o perdão substitui a vingança (cf. 4,15.23s; Ex 21,23-25; Mt 18,21-35; Lc 6,27-37; 17,3s; 23,24; At 7,60 etc.).

Sobre a tentação (prova, provação), cf. Eclo 2,1; 33,1; Sb 3,5). Lc não traz o segundo membro do pedido de Mt (livra-nos do mal, ou seja, do maligno), mas também ele atribui a tentação a Satanás (4,2.13; 8,12-13; cf. 22,31).

No evangelho de Lc, Jesus está subindo para Jerusalém e aproveita para instruir os seus discípulos também sobre a oração. Depois do Pai Nosso, apresenta e em seguida uma parábola do amigo inoportuno e o ensinamento a respeito do pai que sabe dar boas coisas para os seus filhos. As duas imagens, do amigo e do pai, ilustram na oração o caráter de relação pessoal.

E Jesus acrescentou: “Se um de vós tiver um amigo e for procurá-lo à meia-noite e lhe disser: ‘Amigo, empresta-me três pães, porque um amigo meu chegou de viagem e nada tenho para lhe oferecer’ e se o outro responder lá de dentro: ‘Não me incomoda! Já tranquei a porta, e meus filhos e eu já estamos deitados; não me posso levantar para te dar os pães’; eu vos declaro: mesmo que o outro não se levante para dá-los porque é seu amigo, vai levantar-se ao menos por causa da impertinência dele e lhe dará quanto for necessário” (vv. 5-8).

“Se um de vós tiver um amigo”, lit. “Qual dentre vós terá uma amigo…”. Os inícios interrogativos são frequentes na parábola de Lc (14,28-31; 15,4,8; 17,7; cf. 11,11; 12,25-26; 14,5). Este método corresponde a pedagogia de Jesus (cf. 10,26; 24,17 etc.).

A Bíblia do Peregrino (p. 2494) comenta: A primeira parábola pode desconcertar o leitor: Um Deus que atende aos pedidos para que o deixe em paz? Jesus conhece o Pai (11,22) e pode permitir-se esse ato de condescendência, ou seja, pode humanizar ao máximo a situação. Por contraste, pode se recordar a caçoada que Elias faz dos profetas de Baal que importunaram um Deus surdo (1Rs 18,27). A parábola supõe uma situação de emergência e que o pedinte seja movido por obrigação de hospitalidade. Não é por capricho ou por puro interesse pessoal. Desenvolve-se em regime de amizade, nas condições culturais da época: o pão é assado em cada a cada dia, todos dormem num único cômodo, a porta está trancada com uma barra. Um breve salmo repete quatro vezes no pedido “até quando?” (Sl 13).

A parábola nos vv. 5-8 apresenta vários traços comuns com a de 18,2-5 (o juiz injusto e a viúva), a qual Lc dá um sentido análogo (18,1). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1999) comenta: É provável que na origem essas duas parábolas formassem um par (como 5,36-38; 13,18-21; 14,28-32; 15,4-10; cf. 13,1-5)… O amigo não cede por amizade, mas para ter paz, como o juiz sem justiça de 18,4-5. Ambos fazem sobressair a atitude maior de Deus, que concede porque é justo e Pai.

Portanto, eu vos digo: pedi e recebereis; procurai e encontrareis; batei e vos será aberto. Pois quem pede, recebe; quem procura, encontra; e, para quem bate, se abrirá (vv. 9-10).

“Portanto, eu vos digo”, esta fórmula de Lc (cf. 16,9) serve aqui para acrescentar as palavras seguintes com as quais faz a aplicação da parábola. “Recebereis”, lit. “ser-vos-á dado”, a forma passiva é um modo discreto de indicar a ação de Deus sem mencioná-lo (passivo divino); ela é empregada do mesmo modo no terceiro verbo da frase.

A Bíblia do Peregrino (p. 2494) comenta: Em forma de aforismo recolhe o ensinamento. Isto é o contrário de uma resignação fatalista aos acontecimentos, como se fossem a vontade de Deus. A iniciativa de Deus, em imperativos, quer provocar a iniciativa dos seres humanos: “estarão ainda falando e eu os terei escutado” (Is 55,6; 65,24). Quem pede, confessa-se necessitado; quem insiste, não procura outro remédio, bate à porta de quem sabe que irá responder.

Será que algum de vós que é pai, se o filho pedir um peixe, lhe dará uma cobra? Ou ainda, se pedir um ovo, lhe dará um escorpião? Ora, se vós que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo aos que o pedirem! (vv. 11-13).

A imagem do pai é mais expressiva. Jesus, o Filho “quer revelar o Pai” e nos revela também o Espírito Santo (10,22). Os homens, mesmo os pais, são “maus” (egoístas); contudo, o amor paterno se sobrepõe. Deus é o doador (Sl 136,25; 144,10; 146,7), seu dom máximo é o Espírito Santo (Jo 14,17; At 2,4.33; 5,32; Ef 1,17).

“Se vós que sois maus”; este adjetivo, “maus”, é exigido literariamente pela oposição entre as coisas boas que os pais da terra dão e a bondade do pai do Céu. Não é primordialmente um julgamento moral sobre a corrupção do homem.

Um grande número de testemunhos literários introduz aqui (seguindo Mt 7,9): “um pão, será que ele lhe apresentará uma pedra, ou…”. A antítese entre o ovo e o escorpião é própria de Lc e substitui, em Lc a de Mt 7,9, entre o pão e a pedra. É possível que o texto de Lc se inspire na menção das serpentes e escorpiões em 10,9. Isto dá a sua antítese uma força maior do que em Mt. O paralelo Mt 7,11 fala apenas das “coisas boas”; Lc introduz o “Espírito Santo”, que é para ele o “dom” por excelência (At 3,38 etc.), tantas vezes concedido na história relatada em seu segundo livro, os Atos dos Apóstolos.

Santo Agostinho faz o seguinte comentário ao trecho de hoje: Jesus “nos estimula ardentemente a pedir, buscar, chamar até conseguir o que pedimos… Deus está mais disposto a dar do que nós a receber. Ele ganha mais fazendo-nos misericórdia que nós de sermos livres. Se ele não nos liberta, nós ficaremos miseráveis; se nos exorta, o faz para nosso bem”.

O site da CNBB comenta (citando Tg 4,3): A oração é uma busca constante de viver na presença de Deus e procurar estar em diálogo com ele para que ele nos ajude em nossas necessidades, mas devemos nos lembrar das palavras de São Tiago: “Pedis sim, mas pedis mal, pois não sabeis o que pedir.” Muitas vezes pedimos, e pedimos muito, mas não pedimos o que deveríamos, nossos pedidos são mesquinhos, materialistas e visam simplesmente a satisfação de interesses pessoais e imediatos, não sabemos pedir os verdadeiros valores, que são eternos, não pedimos a salvação, o perdão dos pecados nossos e dos outros, não pedimos pela ação evangelizadora da Igreja, pela superação das injustiças que causam guerras e tantos sofrimentos, mas principalmente, não pedimos a ação do Espírito Santo em nossas vidas.

Voltar