24 de maio de 2016 – 8ª semana 3ª feira

Leitura: 1Pd 1,10-16

A menção das três pessoas divinas logo no início da carta (v. 2) mostra que a comunidade cristã tem a sua origem na Trindade (cf. 2Cor 13,13). Na leitura de ontem ouvimos do Pai (vv. 3-5) e do Filho (vv. 6-9). Hoje se fala do Espírito (vv. 10-12) que “falou pelos profetas” (cf. Credo niceno –constantinopolitano) a respeito da “salvação” (cf. vv. 5-9).

Esta salvação tem sido objeto das investigações e meditações dos profetas. Eles profetizaram a respeito da graça que vos estava destinada. Procuraram saber a que época e a que circunstâncias se referia o Espírito de Cristo, que estava neles, ao anunciar com antecedência os sofrimentos de Cristo e a glória consequente (vv. 10-11).

A Bíblia do Peregrino (p. 2906) questiona: O problema desses vv. consiste em identificar esses profetas: são os da AT, os do NT, todos? Se são os do NT, distinguem-se dois tempos, eles/nós, e fica óbvio o título “Espírito de Cristo”; mas não se explica o “predizer” e soa mais tradicional o “profetizar”, como também a indignação sobre o tempo e as circunstâncias; com isso se afirma a continuidade AT-NT na linha de profecia e cumprimento. Nessa segunda interpretação se entende que o Espírito de Cristo se adiantou para anunciar sua vida e cultivar a esperança. Parece-me mais provável a segunda identificação, que está em harmonia com as palavras de Jesus. “Eu vos asseguro que muitos profetas e justos ansiaram ver o que vós vedes, e não viram…” (Mt 13,17 par).

O papel dos “profetas” era anunciar o mistério de Cristo (v. 10; cf. Lc 18,31; 2Pd 1,19) e a sua inspiração é atribuída ao “Espírito de Cristo” (cf. 1Cor 10,1-11; Lc 24,27.44), assim como a pregação dos apóstolos (v. 12). Dessa maneira, se deixa clara a unidade das duas alianças, do Antigo e do Novo Testamento, que nem sempre é aceita, por ex.: uma das primeiras heresias que surgiram na Igreja era o cânone de Marcião (séc. II) que reconheceu apenas o Evangelho de Lc e as cartas de Paulo como Escritura Sagrada deixando fora todo AT e o resto do NT.

Neste ponto, é necessário salientar a originalidade do texto de hoje: O “Espírito” que inspirava os profetas do AT já era o “de Cristo”. Pode-se, porém, entender também a expressão no sentido de Espírito que revela Cristo.

Os profetas fizeram ”investigações”, especialmente em textos apocalípticos: “Eu, Daniel, lia atentamente no livro das profecias de Jeremias o número de anos que Jerusalém havia de ficar em ruínas” (Dn 8,15; 9,2). Mas entendendo ao pé da letra estes números (como outros do gênero apocalíptico; cf. Ap 20,1-7) surgiram outras heresias ao longo da história (milenarismo, Testemunhas de Jeová etc.).

No quarto cântico do servo de Javé (Is 53), um dos textos chaves para a pregação dos primeiros cristãos (cf. 1 Pd 2,21-25; At 8,32-35; Mt 8,17; 26,28.63; 27,38p.60; Jo 1,29; Rm 3,36; 4,25; 2 Cor 5,21; Gl 3,13 etc.), já foram anunciadas, de maneira profética, a paixão de Cristo e sua ressurreição, “os sofrimentos de Cristo e a glória consequente”.  O Sl 22 os canta referindo-os a um inocente perseguido e libertado (cf. Mc 15,34p; Lc 24,26s.44-46).

Foi-lhes revelado que, não para si mesmos, mas para vós, estavam ministrando estas coisas, que agora são anunciadas a vós por aqueles que vos pregam o evangelho em virtude do Espírito Santo, enviado do céu; revelações essas, que até os anjos desejam contemplar! (v. 12).

A “revelação” antecipada do AT corresponde à proclamação apostólica, também “inspirada” pelo “Espírito Santo, enviado do céu”, em Pentecostes e repetidas vezes (cf. At 1,8; 2; 1Cor 2,4; 1Ts 1,5); No céu despontam os anjos para contemplar o progresso da evangelização. No judaísmo tardio, os anjos eram mediadores na revelação; mas aqui é a Igreja que revela a obra da salvação (cf. Ef 3,10).

Aquilo que estava ainda escondido aos profetas e anjos foi revelado aos cristãos: Deus realizou seu plano salvador através de Jesus Cristo, que culminou seu testemunho na morte e ressurreição. Este é o mistério anunciado por aqueles que pregam o Evangelho, impulsionados pelo mesmo Espírito. Este Espírito provoca o discernimento que nos leva a compreender o projeto de Deus realizado em Jesus.

Por isso, aprontai a vossa mente; sede sóbrios e colocai toda a vossa esperança na graça que vos será oferecida na revelação de Jesus Cristo (v. 13).

Começa aqui uma série que se articula em conselho e motivação ou princípio e consequência usando o recurso explicativo ou ponderativo da formula “não isto/mas aquilo”. Contrapõe a situação passada (paganismo) à presente (ser cristão batizado) ou vice-versa (vv. 13-25). A primeira sentença brota como consequência do que procede. Exorta a esperança que se justifica pelo cumprimento futuro (Ef 3,10).

“Aprontai a vossa mente”, lit. “tendo cingido os rins de vosso espírito”; cingir é o gesto de quem empreende uma viagem ou tarefa, como os israelitas na celebração da Páscoa quando se prepararam para sair do Egito (Ex 12,11), ou a disposição do servo fiel esperando a volta de Cristo (Lc 12,35s). A “sobriedade” é condição para ser consciente e não tropeçar no caminho ou no serviço (cf. Lc 12,45s). O cristão é alguém que se coloca a caminho (cf. Jo 14,6; Mc 1,16-20 etc.) e se dispõe ao serviço (cf. Mc 9,35; 10,43-45; Jo 13).

Como filhos obedientes, não modeleis a vossa vida de acordo com as paixões de antigamente, do tempo da vossa ignorância. Antes, como é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos, também vós, em todo o vosso proceder. Pois está na Escritura: “Sede santos, porque eu sou santo” (vv. 14-16).

O segundo conselho é mais complexo. Tem uma motivação por analogia humana: a conduta própria de um filho obediente (cf. Is 63,8; Eclo 3,1-16). O tema da obediência retorna mais vezes nesta carta (vv. 2.22; cf. 2,13.18; 3,1.5; 5,5). Outra motivação é de cima, que é o chamado a assemelhar-se a Deus, segundo o mandato de Lv 11,44s; 19,2 e do “Código da santidade” (Lv 17-19). Juntando as duas motivações temos: É preciso obedecer como filhos a um Pai (Is 63,8) que é santo e chama à santidade.

Os leitores são pagãos convertidos ao cristianismo não devem recair na escravidão das “paixões de antigamente, do tempo da vossa ignorância”. Eles passaram da “ignorância” para o conhecimento de Deus (Sl 78,6; Jr 10,25; 1Ts 4,5 etc.) e com isso o seu comportamento se transformou inteiramente (1,18; Ef 4,17-19). Pela conversão e batismo, o cristão começa uma vida nova que exige constante empenho de santificação: imitação da santidade de Deus que o chamou à fé (v. 16) ; perspectiva do julgamento conforme as obras de cada um (v. 17); o caro resgate realizado pelo precioso sangue de Cristo” (v. 18s).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2271) observa: O homem deve imitar a santidade de Deus (Lv 19,2). Ora é amando os outros (cf. Lv 19,18), como esclarece Jesus, que o cristão imita a Deus, se distingue dos pagãos e se torna filho de Deus (Mt 5,43-48p). Mas de onde tira a força necessária para isso? A tradição apostólica, invertendo os dados do problema, entende que é por sermos filhos de Deus (1Pd 1,23) que somos capazes de imitar a Deus (1Pd 1,14-16; 1Jo 3,2-10; Ef 5,1s), porque o Deus-amor (1Jo 4,8) se torna o princípio do nosso agir. Paulo vê nesta imitação de Deus a restauração da obra criadora (Cl 3,10-13; Ef 4,24).

A Bíblia Sagrada Edição Pastoral (p. 1496) comenta os vv. 13-21: O texto apresenta o código cristão da santidade… O clima da vida cristã é apresentado aqui como permanente conversão: de escravos do mundo e das paixões, os cristãos foram libertos por Cristo para serem filhos de Deus, que se reúnem formando nova família. Para os que vivem num ambiente onde são discriminados, humilhados e até perseguidos, essa é a base fundamental para que eles se sintam em casa e possam enfrentar o clima hostil.

 

Evangelho: Mc 10,28-31

Ontem ouvimos do fracasso do rico que não atendeu o chamado de Jesus (vv. 17-27). Ele almejava “herdar a vida eterna” (v. 17), mas para os ricos é difícil, quase impossível “entrar no reino de Deus” (vv. 24-25), só “para Deus tudo é possível” (v. 27). Assustados, os discípulos se perguntaram: “Quem então pode ser salvo?” (v. 26); será que eles, que seguiram Jesus, vão conseguir?

Começou Pedro a dizer a Jesus: “Eis que nós deixamos tudo e te seguimos” (v. 28).

Pedro como representante dos discípulos afirma com certa autoestima: “Eis que nós deixamos tudo e te seguimos”; em Mt 19,27 ele ainda pergunta: “O que vamos receber?”.

Respondeu Jesus: “Em verdade vos digo, quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, campos, por causa de mim e do Evangelho, receberá cem vezes mais agora, durante esta vida – casa, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições – e, no mundo futuro, a vida eterna (vv. 29-30).

Jesus responde com uma promessa solene: “Em verdade, eu vos digo…” (v. 29a). Renunciar das coisas do mundo traz recompensa grande no céu. Esta ideia já era reconhecida no judaísmo: Quem sofrer tribulações e perseguições por causa da Lei receberá sete vezes a glória do céu (cf. Mt 5,10). Os discípulos, porém, renunciam e sofrem por outro motivo: o seguimento e a fidelidade a Jesus, “por causa de mim e do evangelho” (v. 29).

Deixar os bens, casa e campos, já estava na vocação do homem rico. “Casa” na Bíblia, porém, significa também família, portanto incluem-se na lista “irmãos e irmãs, mãe, pai, filhos”. Aqui em Mc, Jesus não fala em deixar a mulher (talvez por causa da mulher de Pedro e de outros apóstolos, cf. 1 Cor 9,5), nem no paralelo Mt 19,20 (em Mt 19,12 acrescentou-se a opção do celibato), mas em Lc 18,29 sim.

A separação dos parentes (já em 1,20) pode ter várias razões, pode-se pensar em falta de compreensão (cf. os parentes de Jesus em 3,21.31-35; 6,4) ou perseguição por causa da fé e adesão a Jesus (cf. 13,12). “Receberá cem vezes mais” (v. 30; cf. 2 Sm 24,3; 1 Cor 21,3). Distingue-se um salário aqui e “agora, durante esta vida” e outro, “no mundo futuro”. Nesta vida receberá tudo cem vezes mais, casa, campos e parentes, mas não se fala mais de “pai” (talvez porque para o discípulo, Deus seja o Pai nosso e único; cf. Mt 23,9; Lc 11,27; Mc 3,31-35; At 2,44; 4,32-37: Rm 8,15; Gl 4,6).

Muitos que agora são os primeiros serão os últimos. E muitos que agora são os últimos serão os primeiros” (v. 31).

A sentença final é uma surpresa e anuncia a inversão de valores no juízo final. Podemos relacionar os primeiros e os últimos com os ricos e os pobres, reis e escravos, poderosos e excluídos, opressores e oprimidos, etc. A palavra “muitos” não inclui automaticamente “todos”. Há uns que são primeiros ou últimos e assim permanecerão, mas é uma advertência aos primeiros na comunidade para não se considerarem superiores querendo impor-se aos outros.

O site da CNBB comenta: Eu posso contribuir para a minha salvação na medida em que eu faço de Deus o centro da minha vida e a causa da minha felicidade, submetendo-me totalmente a ele. Se eu vivo apegado às coisas do mundo, eu vivo em função delas e coloco nelas a minha felicidade, fechando o meu coração à ação divina e a minha vida ao projeto do reino dos céus. Para conseguir o desapego das coisas do mundo, é necessário que a gente procure assumir uma nova hierarquia de valores que faz com que sejamos capazes de desprezar os bens materiais, mas rejeitar os valores do mundo significa sofrer perseguições nesta vida. É preciso renunciar aos valores do mundo para ter a vida em Cristo.

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