25 de Novembro de 2018, Domingo: A vós graça e paz da parte de Jesus Cristo, a testemunha fiel, o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, o soberano dos reis da terra (v. 5a).

1ª Leitura: Dn 7,13-14

A primeira leitura apresenta parte da cena central no livro de Daniel. O cap. 7 é o nexo entre as duas partes do livro. Os caps. 1 a 6 são histórias edificantes sobre a penetração de um judeu sábio na corte de reis pagãos (cf. José no Egito; Ester), um gênero literário que na Bíblia hebraica se encontra nos livros sapiências. Na Bíblia grega, Daniel está entre os livros proféticos. Mas em Daniel, caps. 7-12, pela primeira vez, a profecia transforma-se em apocalipse (caps. 13-14 e 3,24-90 são acréscimos gregos).

O termo grego “apocalipse” significa “revelação”, tirar o véu das coisas ocultas no tocante do sentido da história e do plano de Deus no futuro.

Diferente dos profetas antigos que anunciavam um dia de Javé para fazer justiça aos fiéis de Israel (Am 5,18s), o gênero apocalíptico é mais universal e escatológico: O reino de Deus se estenderá sobre todos os povos e será sem fim. Dn 12,2 fala sobre a ressurreição dos mortos “uns para a vida eterna, outros para o opróbrio eterno” (cf. 1ª leitura do domingo passado). A expectativa do fim do mundo está presente no livro todo (Dn 2,44; 3,33; 4,31; 7,14). O objetivo do livro de Dn (e do gênero apocalíptico como também o Ap de João no NT) é sustentar a fé e a esperança dos fiéis perseguidos usando uma linguagem secreta, simbólica que o inimigo não consegue entender de imediato e pode confundir (por ex. com uma fábula de animais, bestas-feras etc.).

Alusões concretas (no cap. 11) à perseguição dos judeus pelo rei selêucida (greco-sírio) Antíoco IV Epífanes (167-164 a.C.) e o uso parcial da língua aramaica (substituindo o antigo hebraico) indicam a data do livro: no século II a.C.; portanto, o autor Daniel e sua vida no exílio babilônico são ficção literária. Na verdade, o livro foi escrito por judeus piedosos na resistência, aliados à revolta armada dos macabeus (1-2Mc).

A leitura de hoje apresenta o final de uma sequência visionária (vv. 2-8): Quatro bestas-feras sobem do mar (caos), segundo a explicação em seguida (vv. 15-27) representam os reinos pagãos (babilônios, medos, persas e gregos), que se sucederam na história (não exatamente em número de quatro; quatro é número simbólico da terra). Em Ap 13, a besta-fera representa o imperador romano que perseguiu os cristãos; uns protestantes veem na última besta a Igreja Católica Romana, ou seja, o papa (uma polêmica da época de Lutero, séc. 16).

Depois é realizado o tribunal de um Ancião (Deus) no trono, assistido por milhões de anjos, e a última besta com seu chifre blasfemo (rei Antíoco) é destruído (vv. 9-12).

Continuei insistindo na visão noturna, e eis que, entre as nuvens do céu, vinha um como filho de homem, aproximando-se do Ancião de muitos dias, e foi conduzido à sua presença. Foram-lhe dados poder, glória e realeza, e todos os povos, nações e línguas o serviam: seu poder é um poder eterno que não lhe será tirado, e seu reino, um reino que não se dissolverá (vv. 13-14).

A Bíblia do Peregrino (p.2148) comenta: As quatro feras se sucedem na história, mas não humanizam os homens nem melhoram a existência humana… O baixo cifrado das feras pede uma voz humana em contraponto. O homem é de outra categoria, é imagem de Deus, chamado a dominar os animais. Deus aparece em figura humana. O domínio humano sobre os animais se estende em sentido próprio e figurado: Gn 4,7; Sl 80; 91,13. O autor inspirou-se diretamente no Salmo 8, traduzindo para o aramaico a expressão hebraica “bem ‘adam”. Ora, o homem é grande e é pequeno (Is 51,12; Jó 25,6): como poderá dominar essas feras? – Se Deus lhe confere ou restitui o poder. O que faz na natureza, com mais razão tem de fazer na história, para que a vida dos homens seja vida humana, não inhumana e feroz.

Aparece nas nuvens um “filho de homem”, que receberá um reino eterno sobre todos os povos que jamais passará (cf. Lc 1,32-33). Obviamente significa um reino mais humano, não mais violento como os anteriores das bestas-feras. Mas é apresentado em forma de comparação: “como um filho de homem”. A Bíblia do Peregrino (p. 2148) comenta: Substituir a expressão aramaica por “filho de homem” é calcar, não traduzir… É uma figura humana, contraposta às quatro feras… Não desce, sobe; mas do ponto de vista do vidente, ela “vem”… recebe o poder antes concedido a Nabucodonosor (4,33; 5,18), só que eterno (como a pedra de 2,44).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: O “como” indica que ele é percebido numa visão, não distintamente, mas de modo pouco claro. Pode ou não ser um ser humano. Como, no livro, “homem” muitas vezes se refere a anjos ou seres celestes (cf. Dn 8,15; 9,21; 10,5; 12,5-7), o “filho de homem” poderia representar um ser celestial. Isso é confirmado pelo fato de vir “nas/com as nuvens do céu”, ou seja, ter origem celeste; ele é transcendente. No Novo Testamento, particularmente nos evangelhos, a expressão “Filho de homem” referir-se-á quase exclusivamente a Jesus Cristo, o que bem expressará, além de outras características, sua origem divina.

Na continuação, em 7,17s um anjo explica o significado: o Filho do Homem representa os “santos”, que não desistem da sua fé judaica (interpretação coletiva: povo santo, cf. Ex 19,6; Nm 16,3; Sl 34,10; Is 4,3; 1Pd 2,9), mas poderá significar também o cabeça e representante deste povo, o rei-messias. Esta interpretação individual já se encontra antes do NT, no Apocalipse de Henoc, um livro apócrifo do judaísmo, no qual o juízo final é entregue a este Filho do homem.

Também no NT, o juízo do mundo será entregue a um Filho do homem (cf. Mt 25,31-46 etc.). Jesus usa muito desse termo para falar de si (Mt 8,20; Mc 2,27; 13,24 p; etc.) porque pode significar simplesmente “ser humano” (lit. filho de Adão, cf. Sl 8,5; 144,3; Jó 16,21; Jr 49,18.33; Ez 2,1 etc.) como designar também este novo Adão, rei universal, juiz e salvador do mundo inteiro. De certo modo, este conceito supera o de um messias nacionalista (a expectativa do povo judeu era fazer guerra contra os grego e romanos como Davi fez contra os filisteus). Jesus não quer ser confundido com um messias guerreiro e nacionalista (por isso, impõe o segredo do messias em Mc 1,34; 8,29-31; etc.; cf. Jo 18,36s, evangelho de hoje). Jesus relaciona os conceitos de Messias e Filho do Homem ao do “Servo de Javé” que dará a sua vida em resgate de muitos (Is 53; cf. Mc 8,29-31p; 10,45p). Em vez de fazer guerra e derramar o sangue dos outros, Jesus derrama seu próprio sangue dando sua vida na cruz.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta:

O “filho de homem” se apresenta diante do Ancião, figura de Deus que vive para sempre. Dele recebe o império, um domínio universal, permanente e indestrutível. Tomará, portanto, o lugar dos reinos que dominaram a história, que não são nem universais, nem permanentes, nem indestrutíveis.

Há evidente contraste entre as feras que sobem do mar (v. 3) e o filho de homem, que vem nas nuvens do céu. Seu reinado não será fruto das vicissitudes de uma história que tantas vezes se apresenta dominada pelos poderes do caos (o mar), daquilo que é o oposto de Deus. Não são os poderes deste mundo que determinam a história, mas o verdadeiro senhor da história, Deus, é que, afinal, fará triunfar seu Reino. E o fará por meio de alguém que vem de seu mundo divino. A comunidade pode então confiar que a última palavra pertence a Deus. E adquirir, assim, a chave para interpretar a história, para enfrentar perseguições, sem se deixar subjugar pelo aparente poder mundano, mas mantendo-se firme na fé no poder de Deus.

 

2ª Leitura: Ap 1,5-8

A 2ª leitura é tirada da introdução do último livro do NT. O “apocalipse” (v. 1) de João faz parte de um gênero literário frequente em tempos tardios do judaísmo e presente no AT no livro de Daniel (por volta de 165 a.C.; cf. as bestas-feras em Dn 7 e Ap 13). Como Dn, também Ap foi escrito durante uma violenta perseguição, portanto este gênero utiliza uma linguagem cheia de símbolos, difícil de decifrar por pessoas de fora, com a finalidade de consolar os fiéis: Apesar das tribulações do tempo presente, Deus é o Senhor da história: através de uma colossal perturbação cósmica ou histórica, abre passagem para um definitivo futuro feliz.

Desde Justino (165 d.C.), a tradição considera o apóstolo João, filho de Zebedeu, como autor do Ap e também do Evangelho e das cartas de Jo. O quarto evangelho e as cartas têm o mesmo estilo e, portanto, o mesmo autor que permaneceu anônimo (o “discípulo amado”, cujos seguidores escreveram a versão final, cf. Jo 21,21-24). Mas desde cedo (Dionísio de Alexandria, 265 d.C.), o estilo tal diferente do Ap evocou dúvidas a respeito da mesma autoria. Sem dúvida, o autor do Ap se chama “João” (1,1.4.9; 22,8), mas não é apóstolo nem autor do quarto Evangelho e das cartas de Jo. O João do Ap é um profeta judeu-cristão itinerante que conhece bem as comunidades na Ásia menor (atual Turquia) às quais se dirige (caps. 2-3) durante uma perseguição que o exilava na ilha de Patmos (atualmente entre Grécia e Turquia, cf. 1,9). O autor quer consolar e fortalecer a fé dos cristãos durante o imperador Domiciano (94-95 d.C., a besta-fera de Ap 13) que estendeu a perseguição a todo império (cf. 3,10; César Nero só perseguiu os cristãos na cidade de Roma, 64-67 d.C.).

O texto de hoje, que praticamente abre o livro do Apocalipse, apresenta a glória e o poder de Jesus Cristo e as consequências de sua obra para nós. Ele é “rei”, com poder e glória plenos (v. 5a.6b) a partir da sua ressurreição (cf. Rm 1,4). Ele “vem”, aliás “em meio a nuvens” (v. 7), como o “filho de homem” de Daniel (1ª leitura), numa clara indicação de seu caráter transcendente e de seu domínio universal. Ele “nos ama, nos libertou de nossos pecados”, transformou a vida dos que o aceitam, fazendo deles um povo sacerdotal e libertando-os das amarras que os prendiam a uma sociedade excludente. Esta ação qualifica Jesus para vir como juiz no final da história.

A vós graça e paz da parte de Jesus Cristo, a testemunha fiel, o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, o soberano dos reis da terra (v. 5a).

A saudação de João (v. 4; nossa liturgia a abreviou: “a vós graça e paz”) não vem dele, mas parte do Senhor de todos os tempos da história: passado, presente e futuro (vv. 4.8), do Espírito de Deus (v. 4) e “da parte de Jesus Cristo”, aqui apresentado a partir de sua morte e ressurreição (v. 5a).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2426) comenta: Como Deus (v. 4) Jesus Cristo é aqui designado segundo uma fórmula tripartida, na qual encontramos a alusão à paixão, à ressurreição e à exaltação no seu Senhorio. Este anunciado, em parte estereotipado, revela a influência de uma primeira fixação literária das convicções essenciais da fé.

Jesus é a “testemunha fiel” (cf. v.2). Em Is 55,4, a palavra “testemunha” designa o Messias; no Sl 89,36-38, o Messias é comparado a uma “testemunha fiel nas nuvens”. A Bíblia de Jerusalém (p.2301) comenta: Jesus Cristo é a “testemunha”, em sua pessoa e em sua obra, da promessa feita outrora a Davi (2Sm 7,1-17; Sl 89; Is 55,3-4; Zc 12,8) e que se realizou nele. Ele é a Palavra eficaz, o “Sim” de Deus (v. 2; 3,14; 19,11.13; 2Cor 1,20). Herdeiro de Davi (Ap 5,5; 22,16), por sua ressurreição ele foi constituído “primeiro” (lit. primogênito; Cl 1,18; cf. Rm 1,4), e, depois da destruição dos seus inimigos, será receberá a dominação universal (Dn 7,14; 1Cor 15,28; Ap 19,16).

A Jesus, que nos ama, que por seu sangue nos libertou dos nossos pecados e que fez de nós um reino, sacerdotes para seu Deus e Pai, a ele a glória e o poder, em eternidade. Amém (vv. 5b-6).

A Bíblia do Peregrino (p. 2944) comenta: A redenção tem início com um ato de amor (cf. Jr 31,3), consuma-se pelo sacrifício expiatório (cf. Lv 16) e desemboca na formação do novo povo escolhido (Ex 19,6, citado em 1Pd 2,9).

“Por seu sangue nos libertou dos nosso pecados”, lit. “nos soltou, livrou” (lysanti). Acrescentado apenas uma letra (lousanti), alguns manuscritos leem: “nos lavou”. A versão da nossa liturgia (libertou) é mais bem atestada. Parece, aliás, que certos temas do Êxodo (cf. 15,3s) estejam subjacentes nos vv. 5b-6; libertação pelo sangue do Cordeiro (Ex 12) e constituição de um reino de sacerdotes (cf. Ex 19,6; também referido em 1Pd 2,5.9).

“Nos ama… nos libertou”; na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta a libertação por Cristo: Sua obra de redenção, realizada na cruz (ele nos “libertou”, no passado), é fruto de seu amor, que não é um ato (só) passado, mas presente (ele nos ama). Daí surgem as consequências para nós: pelo poder de seu amor, somos libertados do pecado (v. 5) e, com isso, adquirimos dignidade régia e sacerdotal. O que era promessa para o povo judeu, após a libertação do Egito, se guardasse a aliança (cf. Ex 19,6), agora se tornou realidade, por sua cruz e ressurreição. Aquilo que Jesus é, ele o participa a seus fiéis.

“Fez de nós um reino (lit. realeza), sacerdotes…” A Bíblia de Jerusalém (p. 2301) comenta: Os fieis de Cristo, uma vez convertidos e lavados de seus pecados (vv. 5 e 7), formarão “uma Realeza e Sacerdotes” (Ex 19,6); como reis, reinarão sobre todos os povos (Dn 7,22.27; Is 45,11-17; Zc 12,1-3; cf. Ap 2,26-27; 5,10; 20,6; 22,5); como sacerdotes, unidos ao Cristo sacerdote (Hb), oferecerão a Deus o universo inteiro, como sacrifício de louvor.

Se é assim, a comunidade eclesial tem só uma coisa a dizer: “A ele a glória e o poder, em eternidade. Amém” (v. 6). A Bíblia de Jerusalém (p. 2301) comenta esta doxologia (fórmula de louvor):  As doxologias (Rm 16,27) são frequentes no Ap. Nos seus acentos de triunfo perceberam-se ecos de antigas liturgias. Elas contêm preciosos dados cristológicos, nos quais o Cordeiro (5,6 etc.) é de vários modos associado a Deus Pai. Elas implicam também um protesto contra o culto imperial.

Olhai! Ele vem com as nuvens, e todos os olhos o verão – também aqueles que o traspassaram. Todas as tribos da terra baterão no peito por causa dele. Sim. Amém! (v. 7).

Depois de ouvirmos da morte e ressurreição de Jesus, somos convidados para olhar ao futuro, ou seja, a segunda “vinda” (parusia) de Jesus que será universal e pública, “todos os olhos o verão”, não apenas os apóstolos (cf. Jo 14,22s), também o inimigos “que o traspassaram” (Zc 12,10 citado por Jo 19,37; cf. Jo 19,34; Sl 22,17 Vulgata). Em vez de aplausos, “todas as tribos da terra baterão no peito”: provavelmente por arrependimento, conforme Zc 12,10.

“Ele vem com as nuvens” como o Filho do Homem de Dn 7,13 (1ª leitura). As nuvens tradicionalmente fazem parte do cenário das teofanias (cf. Ex 19,16; Is 6,4; Mc 9,7; At 1,9). Como em Mc 14,62p, percebe-se aqui uma influência mais imediata de Dn 7,13. A Bíblia do Peregrino (p. 2945) comenta: O texto original de Dn 7,13 mostra a “figura humana” subindo na nuvem para receber do Ancião a investidura suprema, universal e perpétua. A tradição deduziu que depois desceria na mesma nuvem (fato anunciado em At 1,9-11) e atribuído à parusia. 

”Eu sou o Alfa e o ômega”, diz o Senhor Deus, “aquele que é, que era e que vem, o Todo-poderoso” (v. 8).

Como em teofanias e revelações, precede uma auto-apresentação de Deus, também com três predicados:

“Alfa e ômega”: a primeira (alfa) e a última letra (ômega) do alfabeto grego (21,6; 22,13); a expressão transpõe para Cristo de uma qualidade de Deus, principio e fim de todas as coisas (Is 41,4; 44,6; cf. Ap 1,17; 2,8; 21,6; 22,13). Pelas duas letras extremas do alfabeto abrange-se a totalidade; como se disséssemos do A ao Z.

“Aquele que é, que era e que vem” (vv. 4.8. 4,8; 11,17 etc.): Trata-se de uma releitura de Ex 3,14, onde Deus se revela na sarça ardente no pé do monte Sinai e se apresenta a Moisés como Yhwh (pronúncia portuguesada; “Javé”). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2427) comenta: No judaísmo da época helenística e por influência do AT grego, o nome de YHWH foi interpretado como significando “o que é”. No Targum de Jerusalém (versão aramaica do AT), esta designação é ampliada em ritmo ternário: “o que é, que era e que será.”

O “Todo-poderoso”; a Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2427) comenta: O vocábulo grego traduzido por Todo-poderoso (pantokrátor) é habitualmente utilizado no AT para traduzir o hebraico “Sabaot” (Deus dos “exércitos”, Deus das potências; Gn 1,2; 1Sm 1). Também é empregado no helenismo como título imperial.

O Cristo Pantokrator converteu-se em termo da iconografia religiosa oriental que substituiu a imagem do imperador romano pela de Cristo com trajes imperiais (púrpura), sem coroa, sim aureola (a imagem de Cristo Rei com coroa de rei é mais recente e ocidental; como não temos mais monarquia, parece ultrapassada).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta:

A tradição judaica já havia explicado esse nome com a expressão: “aquele que é, que era e que será”. O Apocalipse, porém, muda essa fórmula, substituindo “o que será” pelo “o que vem”. Com isso, a expressão diz respeito a Deus Pai, que garante o que foi dito anteriormente (ele é o alfa e o ômega em Ap 21,6), mas, ao mesmo tempo, abre-se para indicar Jesus (ele é o alfa e o ômega em Ap 22,13). No Apocalipse, marca-se de modo muito forte a unidade (na diversidade das Pessoas) entre o Pai e o Filho.

Aquele que vem é o Filho de homem poderoso, mas que sofreu na cruz, que foi traspassado (v. 7, cf. Zc 12,10.14), que derramou seu sangue (v. 5). A união da figura do Filho de homem poderoso com a do traspassado de Zc 12, dois aspectos tão contraditórios, mostra a novidade do Novo Testamento quanto ao Salvador. Seu poder se manifesta não afastando a morte, mas assumindo-a e transformando-a. Por isso, seu poder alcança a todos (v. 7), mesmo os responsáveis por sua morte. Seu triunfo será universalmente reconhecido.

 

Evangelho: Jo 18,33-37

O evangelho de hoje é um trecho da Paixão de Cristo, lido na sexta-feira santa. Aliás, o manuscrito mais antigo do NT que se preservou, é P 52, um pedaço de papiro do ano 125 d.C., que contém Jo 18,31-33.

A cena é do processo contra Jesus. Depois de ser preso e interrogado pelos sumos sacerdotes, Jesus foi levado sem mais ao “palácio do governador Pilatos… de manhã cedo” (v. 28). Não queria julgar Jesus, mas os judeus não podiam condenar ninguém à morte. Isto era privilégio do governador romano. A crucificação era considerada a pena típica dos romanos. Herodes a evitava para não provocar os judeus, mas os romanos a aplicaram para escravos e subversivos. Se Jesus é condenado pelos romanos, então significa sua crucificação.

Pilatos chamou Jesus e perguntou-lhe: “Tu és o rei dos judeus?” Jesus respondeu: “Estás dizendo isto por ti mesmo, ou outros te disseram isto de mim?” Pilatos falou: “Por acaso, sou judeu? O teu povo e os sumos sacerdotes te entregaram a mim. Que fizeste?” (vv. 33b-35).

Segundo o historiador judaico, Flávio Josefo, Pilatos era uma pessoa corrupta e cruel que desprezava os judeus. Depois de Herodes Grande, rei imposto por Roma, não existia mais rei em Israel/Palestina; o poder era dividido entre os filhos de Herodes (Galileia, Transjordânia, etc.), mas a parte central (Judeia com a capital Jerusalém) estava sob o governo de um procurador romano.

Jo revela a farsa: os “judeus” (em Jo, são as autoridades judaicas hostis, cf. 9,22; 16,2), apresentaram uma acusação falsa de que Jesus, ao se declarar rei-messias, começaria um revolta armada contra os romanos (cf. Lc 23,5; At 5,36s). Eles negam cada vez mais sua própria identidade para conseguir seu objetivo de matar Jesus (cf. 5,18), até eles disserem: “Não temos outro rei senão César” (19,15; segundo a Escritura, Javé Deus é o rei de Israel (cf. 1Sm 8,7; Sl 93,95; 96-99), enquanto em 1,47, o “verdadeiro israelita” acredita em Jesus.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta:

Pilatos pergunta-lhe se ele é o “rei dos judeus” (Jo 18,33). Tal pergunta remete à acusação que o levou ao tribunal (cf. Jo 19,31), da qual Pilatos se distancia (“Acaso sou eu judeu?”, v. 35), negando implicitamente que tivesse nela qualquer responsabilidade. Na boca do juiz romano, porém, tal pergunta poderia denotar certo desprezo pelos judeus, pois ele apresenta aos acusadores Jesus, já flagelado e escarnecido, como “o vosso rei” (cf. 19,14-15) e o caracteriza, no letreiro colocado na cruz, como o “rei dos judeus” (19,19).

Jesus, porém, eleva o nível da pergunta de Pilatos. Responde com uma interrogação que lembra aquela que, nos sinóticos, fizera aos discípulos: “Quem dizem os homens que eu sou? E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mc 8,27.29). Pilatos não alcança, porém, a interrogação de Jesus e responde enfocando o essencial no processo: “Que fizeste?” (v. 35).

Jesus respondeu: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui” (v. 36).

Na sua teologia dualista, Jo quer distinguir dois níveis de reinados: o reino exterior “deste mundo” que se alimenta do poder político, econômico e militar, e o reino verdadeiro cuja fonte é a “verdade” divina, motivo pelo qual se deve obedecer e segui-lo (v. 37). O poder de Deus não se impõe através de violência, opressão e submissão, mas surge através da verdade, luz, vida e amor.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta:

É neste momento que Jesus responde se ele é ou não o rei dos judeus: “Eu sou rei… Meu reino não é daqui” (v. 36-37). Jesus define sua realeza. Ele não é “rei dos judeus”; é simplesmente “Rei”. Os judeus que a ele se opuseram não o aceitam como seu rei (cf. 19,15.21): o rei deles é César. Sua realeza, embora abarque Israel (cf. 12,15), ultrapassa as fronteiras israelitas. Seu poder é universal.

Jesus possui dignidade régia, pois recebeu de seu Pai todo o poder (cf. 3,35; 10,29; 13,3). Em sua cruz-ressurreição, em sua glorificação, ele inaugura sua realeza, ao desbancar o “príncipe deste mundo” (cf. 12,31-32).

A partir daqui, entende-se melhor o que significa que seu reino não seja deste mundo. João normalmente indica, por meio da menção da origem (de onde é algo), o que determinada coisa é. A realeza de Jesus não vem deste mundo (cf. 6,15, sua recusa a ser feito rei), embora se manifeste no mundo e para o mundo. Mas tem origem e natureza transcendente. Assim, Jesus explica a Pilatos que não é um agitador político que quer impor seu poder pela violência. Seu reino não se reduz a pretensões mundanas, mas, mesmo começando a instaurar-se aqui, visa a algo que ultrapassa esta história.

Pilatos disse a Jesus: “Então tu és rei?” Jesus respondeu: “Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (v. 37). 

Agora Jesus expressa positivamente sua realeza: ele tem origem divina, “veio” (do Pai) ao mundo. Ele é o revelador único da verdade salvífica (14,6) e convida a aceitá-la. Aquele que “ouve a sua voz” e a acolhe começa a ser “da verdade”, entra no âmbito de seu poder vitorioso (cf. 10,27s).

Talvez “rei” seja apenas uma metáfora, que representa o poder divino, porque Jesus nunca se declara rei diretamente. “Tu o dizes: eu sou rei” pode ser traduzido também: “Tu dizes que eu sou rei”. Mas é metáfora necessário para expressar que Jesus como Filho de Deus representa este poder verdadeiro, de onde tudo emana e a única que vale ao final, que permanece, mas tem outra qualidade, diferente daqueles poderes que os homens exercem no mundo. Este poder da verdade não se pode defender com violência, apenas com testemunho e argumentos (cf. v. 23).

Nos evangelhos sinóticos, Jesus se nega a falar com Pilatos (Mc 15,2-5p; cf. Is 53,7), mas em Jo há vários diálogos com o governador. Neles, Jesus se mostra superior, ele é verdadeiro juiz, o “rei” de “verdade”, testemunha da verdade que é de Deus (cf. 14,6). Com sua pergunta em seguida, “o que é a verdade?” (v. 38), Pilatos mostra não conhecer a verdade; agora tem medo (19,8) e, apesar de declarar três vezes a inocência de Jesus, deixa-se pressionar. Solta Barrabás, um “ladrão” (v. 40; em textos antigos, este termo pode designar também um terrorista que lutava contra os romanos, cf. Mc 15,7), e condena Jesus.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta a realeza de Jesus: Ele é Rei, mas exerce sua realeza exatamente aceitando a cruz. Assim, ele instaura um reinado que contradiz os poderes mundanos, pautados tantas vezes pela violência. Seu reinado já se iniciou. Por sua glorificação, os reinos deste mundo já foram relativizados, e já tem lugar o reinado do Filho do homem; mas tal realidade ainda não penetrou todas as realidades desta história, o que ocorrerá somente quando “aquele que vem” (Ap 1,8) completar sua obra redentora.

 

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