25 de Outubro de 2018, Quinta-feira: Vós pensais que eu vim trazer a paz sobre a terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão (vv. 50)

Leitura: Ef 3,14-21

Na leitura de hoje encontramos novamente o esquema trinitário, sem usar o termo técnico Filho: o Pai (vv. 14.19), seu Espirito (v. 16), Cristo (vv. 17.19). Em tom de súplica, o autor da carta pede ao Pai (v. 14) que o amor de Cristo habite os corações (vv. 17.19), para serem fortalecidos pelo Espírito, na interioridade do ser humano (v. 16).

O Espírito é um novo dinamismo interior; a fé nos abre e transforma em morada estável de Cristo, o amor nos dá raiz e alicerce, de onde brota uma nova capacidade de conhecer e compreender o “mistério” (cf. leitura de ontem) e receber a “plenitude de Deus” (v. 19; cf. 1,23).

Eu dobro os joelhos diante do Pai, de quem toda e qualquer família recebe seu nome, no céu e sobre a terra (vv. 14-15).

Dobrar os joelhos é gesto humilde de súplica (At 20,36; cf. 1Rs 8,54; Esd 9,5).

De Deus Pai procede toda paternidade humana e seu equivalente celeste (que não se esclarece). Outra tradução possível: “de quem toda paternidade recebe o seu nome”. Jogo de palavras entre patriá (família) e patêr (pai). O Pai, revelado em Jesus Cristo, está na origem do todo o agrupamento humano ou angélico.

Em lugar de paternidade pode-se entender sobrenome, frequente em Nm e Cr, para apresentar genealogias. Agora todos têm um último Pai comum (Lc 3,38 faz a genealogia de Jesus ascender até Adão e Deus).

Que ele vos conceda, segundo a riqueza da sua glória, serdes robustecidos, por seu Espírito, quanto ao homem interior, que ele faça habitar, pela fé, Cristo em vossos corações, que estejais enraizados e fundados no amor (vv. 16-17).

Aqui continua a súplica, numa frase difícil e densa (vv. 16-19), pedindo: ”robustecer” (v. 16) e “habitar” (v. 17) para “compreender” (v. 18) e “entender” (v. 19). “Internamente”, ou no homem interior da antropologia grega; na intimidade onde reside o Espírito. Pode se comparar com expressões equivalentes dos salmos (Sl 39,4; 55,5; 94,19; 19; 109,22). “Robustecidos (fortalecidos) por seu Espírito” (cf. Sl 51,12 “espírito firme”). Pela fé, Cristo “habita” (Jo 14,23). “Enraizados e fundados (alicerçados)”: são as duas imagens clássicas da vida agrária e urbana (Jr 1,10; Sl 144,12; aplicadas à sabedoria em Eclo 1,15-20).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2270) comenta o termo “homem interior”: Esta expressão designa a parte racional do homem (cf. Rm 7,22…) por oposição a “o homem exterior” que é o seu corpo perecível (2Cor 4,16). Esse tema, tomado da filosofia grega popular, é distinto da oposição “homem velho – homem novo” que se inscreve numa perspectiva judaica. Acontece entretanto que o “homem interior” quase se confunde com o “homem novo”, como em 2Cor 4,16 e, aqui, em Ef 3,16. A expressão homem interior fica, todavia, mais marcada por sua origem antropológica: ela é muito semelhante ao termo “coração” no v. 17.

Tereis assim a capacidade de compreender, com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura, a profundidade, e de conhecer o amor de Cristo, que ultrapassa todo o conhecimento, a fim de que sejais cumulados até receber toda a plenitude de Deus (vv. 18-19).

A importância de ser nova criatura (pelo batismo) consiste em viver o amor segundo o modelo do próprio Cristo (Rm 8,39). Amor que vai muito além do conhecimento e tem dimensão universal. A totalidade desse amor está expressa nas quatro dimensões que designavam, no pensamento grego da filosófica estoica, a totalidade do universo.

“A largura, o comprimento, a altura, a profundidade”, enumeração à maneira da literatura sapiencial, para sublinhar o caráter inacessível da Sabedoria de Deus e dos seus caminhos (cf. 3,8); cf. Jó 11,5-8: “a sabedoria… é mais elevada do que os céus… mais profunda do que o Xeol (morada dos mortos), mais extensa do que a terra e mais ampla do que o mar.”

A Bíblia do Peregrino (p. 2809) comenta: Nós reconhecemos em nosso espaço três dimensões. Os hebreus concebiam quatro dimensões (Jó 11,5-8), porque não concebiam que a linha de profundidade, subterrânea continuasse para cima. A superfície da terra que o homem vivo pisava, era um corte total. Como se podia imaginar que do Xeol partisse uma linha contínua até o céu?

As quatros dimensões não são explicitamente determinadas; trata-se sem dúvida do desígnio misterioso de Deus (o mistério da salvação que une judeus e gentios, cf. 3,1-13, leitura de ontem) e antes de tudo do “amor de Cristo”. Como para a sabedoria, essas dimensões vão além de qualquer medida humana (cf. também as dimensões escatológicas do templo e da Terra prometida em Ez 40-45; Ap 21,9s).

Uma exegese muito antiga interpreta as quatros dimensões a partir da “cruz”, símbolo da extensão ecumênica (cf. 2,13-17) e cósmica (cf. Cl 1,20) da obra de Cristo, como o vértice do universo.

“O amor de Cristo que ultrapassa todo o conhecimento”; o simples conhecimento, a gnose, não podia plenificar o homem; só o “amor de Cristo” capacita o ser humano para “receber toda a plenitude de Deus”, porque seu amor revela o amor de Deus (Jo 1,15). O amor que Cristo nos testemunhou entregando-se (5,2.25; Gl 2,20), amor idêntico ao do Pai (2,4.7; 2Cor 5,14.18s; Rm 8,35.37.39).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2200) comenta: Muito mais que “compreender” (v. 18, termo grego de origem filosófica), trata-se de “conhecer” com um conhecimento religioso, místico, penetrado de amor (cf. 1,17s; 3,3s; ver Os 2,22; Jo 10,14), que vai mais longe que qualquer conhecimento intelectual (cf. 1Cor 13). Mais ainda: trata-se menos de conhecer do que de ser amado e sabê-lo (cf. Gl 4,9), ainda que seja impossível penetrar na profundeza desse amor.

A ideia é a de Cl 2,9s (cf. Ef 1,23): os cristãos participam na “plenitude” que Cristo recebe de Deus e comunica ao seu Corpo que é a Igreja. Pode-se também compreender: cumulados para entrar em toda a plenitude de Deus. Pela plenitude de vida divina que o cristão recebe de Cristo, em quem ele habita (Cl 2,9s), ele entra por sua vez na plenitude do Cristo total: a Igreja e ulteriormente o novo Universo, para cuja construção ele contribui (1,23; 2,22, 4,12-13; Cl 2,10). É um grande paradoxo: encher-se do que tudo enche, abrange transborda; cf. a oração de Salomão na inauguração do templo: “É verdade que Deus poderia habitar sobre a terra? Os próprios céus e o céu dos céus não te podem conter! Quanto menos esta Casa que construí” (1 Rs 8,27).

Aquele que tudo pode realizar superabundantemente, e muito mais do que nós pedimos ou concebemos, e cujo poder atua em nós, a ele a glória, na Igreja e em Jesus Cristo, por todas as gerações, para sempre. Amém (vv. 20-21).

“A ele a glória, na Igreja e em Jesus Cristo”; a Igreja manifesta a “glória” de Deus, do mesmo modo que personificava a sua “sabedoria” eterna em v. 10. Aqui conclui a oração que foi iniciada em v. 1, interrompida em v. 2, e continuada em v. 14 (retomando a de 1,16-23).  Encerra com uma doxologia (fórmula de louvor, v. 21) a primeira parte da carta.

 

Evangelho: Lc 12,49-53

No evangelho de hoje, Jesus continua falando a seus discípulos, agora mudando de foco: antes falou sobre a vigilância necessária quanto à parusia (sua volta no fim do mundo; cf. vv. 35-48), agora sobre sua própria crise no sofrimento (v. 50) e a confusão e a divisão apocalípticas que se fazem sentir no tempo presente (vv. 51-53).

Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso! Devo receber um batismo, e como estou ansioso até que isto se cumpra! (v. 49-50).

Só Lc transmite esta frase sobre o fogo e este batismo, diferente daquele que João Batista administrava (cf. Mc 10,38; Lc 3,16p). O fogo que se fala aqui deve ser para Jesus aquele que acompanha o julgamento de Deus em cenas escatológicas (Is 66,15s; Ez 38,22; 39,6; Ml 3,19; Dn 7,9-11; Jt 16,17). Lc deve pensar no batismo no Espirito e no fogo em Pentecostes (3,16; At 2,3.19).

Em Mc 10,38, o batismo é posto em paralelo com a taça do sofrimento para evocar o martírio (cf. Mc 14,36). Aqui, o batismo está em paralelo com o fogo, num contexto que evoca o julgamento (cf. 3,16-17p). A associação de água e fogo como instrumentos do julgamento é reencontrada em 17,26-29 (Noé, Ló; cf. 2Pd 2,5s; 3,6s).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1955) comenta: Esse fogo, evidentemente simbólico, pode assumir significados diferentes, conforme os contextos: O Espírito Santo ou ainda o fogo que purificará e abrasará os corações e que deve ser aceso na paixão, na cruz. O v. 50 favoreceria essa última interpretação, mas os vv. 51-53 sugerem antes um estado de guerra espiritual que o aparecimento de Jesus suscita.

A Bíblia do Peregrino (p. 2501) comenta: Fogo e água podem resumir qualquer tipo de perigo (Is 43,2). Será que as duas imagens se referem aqui ao mesmo fato, a paixão próxima? Em 3,16p, João Batista falou de outro batismo “com Espírito Santo e fogo”, fogo de julgamento e purificação [cf. 1Pd 1,7; Ap 3,18]; Is 4,4 fala de uma purificação com “vento” (pneuma) de julgamento: aniquila ou purifica e limpa. A pregação de Jesus já acendeu esse fogo (cf. Is 1,25; 9,17; Zc 13,9). Cabe referir os versículos à paixão como julgamento que vai separar. O batismo aqui é a grande prova, que alude à paixão (cf. Sl 42,8; 69,2; 124,40) [cf. Mc 10,38-39p; Is 43,2; Ct 8,7]. Outros distinguem: o batismo é a paixão, o fogo é Pentecostes; Jesus anseia que chegue o Espírito purificador, mas se aflige diante da proximidade da paixão [cf. a aflição de Jeremias em Jr 20,9]. E o cristão tem de seguir a mesma trajetória.

Vós pensais que eu vim trazer a paz sobre a terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão (vv. 50).

Estes versículos, que tem um paralelo em Mt 24,34-36, apoiam a interpretação do fogo como julgamento, “divisão”; a palavra grega krinein (daí a palavra “crise”) significa discernir, dividir, julgar, separar (o bem do mal). Mt 10,34 diz mais concretamente: “trazer a espada” (símbolo da justiça que divide) que deve ser primitivo.

Para Lc, a “paz” é o dom messiânico por excelência e ele insiste nisso (1,79; 2,14.29; 7,50; 8,48; 10,5s; 11,21; 12,51; 14,32; 19,38.42; 24,36; cf. Ef 2,14).  Mas a paz de Jesus não é uma paz carnal e fácil como os falsos profetas sonhavam (6,22-23.26; cf. Jo 14,27; Jr 6,14; 8,11; Ez 13,10.16).

Pois, daqui em diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas e duas contra três; ficarão divididos: o pai contra o filho e o filho contra o pai; a mãe contra a filha e a filha contra a mãe; a sogra contra a nora e a nora contra a sogra (vv. 50-53).

A Bíblia do Peregrino (p. 2502) comenta: Diante de Jesus as pessoas terão de tomar partido, como Simeão anunciou (2,34-35), passando por cima dos laços familiares. Recorda-se, na tremenda cena de Ex 32, o grito de Moisés: “A mim os do Senhor!” e a matança dos culpados, sem perdoar nem “irmão, parente ou vizinho”. A divisão que Jesus provocará atravessará grupos humanos naturais… A expectativa da paz messiânica (Is 2,2-5; 11,1-10; Zc 9,10) não pode ignorá-lo.

Na tradição profética, a “divisão” das famílias é uma característica da tribulação do fim dos tempos (Mq 7,6; Ag 2,22; Ml 3,24). Jesus voltará a isso no discurso sobre o fim do mundo em 21,16 (Mc 13,12p). Para Lc e sua comunidade era um consolo que as divisões nas famílias por causa da fé fazem parte da vida cristã e do plano divino; o próprio Jesus as experimentou (cf. 4,16-30; 8,19-21p; Mc 3,21; Jo 7,5).

O site da CNBB comenta: A vinda de Jesus cria um divisor de águas na história dos homens. De um lado encontramos os que são dele e, de outro, os que são do mundo. A partir dessa divisão se estabelece o conflito, que é caracterizado principalmente pela diferença de valores, e exige de todos os que abraçam a fé a consciência de suas consequências, entre elas a de ser odiado pelo mundo. Como cristãos, devemos enfrentar o conflito com o mundo, mas não com as mesmas armas do mundo, uma vez que estas levam à morte, o grande valor do mundo. Devemos enfrentar o mundo com a fé, a espiritualidade, a entrega, a partilha, a doação, a fraternidade, o testemunho, o profetismo, que são valores do Reino e levam à vida.

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