26 de Abril de 2020, 3º Domingo da Páscoa: Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía. Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles.

3º Domingo  do Tempo Pascal 

 

1ª Leitura: At 2,14.22-33

No tempo pascal, a primeira leitura é tirada dos Atos dos Apóstolos. O autor é o mesmo do terceiro evangelho, comumente identificado com “Lucas, querido médico” (Cl 4,14; Fm 24; 2Tm 4,11). As duas obras, Evangelho e Atos, são dedicados ao mesmo “Teófilo” (Lc 1,3; At 1,1), -nome que significa “amigo de Deus”; pode designar uma pessoa concreta (talvez o patrocinador) ou simplesmente o leitor. Os Atos relatam os caminhos dos primeiros cristãos, principalmente dos apóstolos Pedro e Paulo.

Lucas escreveu os Atos entre 80 e 90 d.C., para a terceira geração cristã aprender da vida das primeiras comunidades, preservar a tradição apostólica da fé e criar coragem para seu próprio tempo. Por isso, Lucas conta como a palavra de Deus se dilata apesar de várias dificuldades por fora e por dentro.  O verdadeiro protagonista é o Espírito Santo que dá força, incentiva e guia a expansão da Igreja primitiva. Por isso, os Atos foram apelidados, o “Evangelho segundo o Espírito Santo”.

Jesus tinha prometido aos apóstolos a “promessa do Pai”, “força do alto” do céu (Lc 24,49; At 1,4-5.8). No “dia de Pentecostes” (2,1; i.é “50 dias” após sua ressurreição na Páscoa, cf. 2,1), o Espírito Santo desceu. Os sinais (vento forte, fogo) lembram o conteúdo da festa judaica de Pentecostes, a entrega da lei a Moisés. No monte Sinai-Horeb, Javé desceu no fogo e na tempestade (Ex 19,18s). Aqui, em Jerusalém, o Espírito desce com “vento forte” e “línguas de fogo” (vv. 2-4). Estas línguas inspiradas fazem os apóstolos falarem em línguas estrangeiras que os romeiros judeus vindo de países distantes entendem e se admiram (vv. 3-13; cf. o contrário da torre de Babel em Gn 11,1-9).

(No dia de Pentecostes) Pedro de pé, junto com os onze apóstolos, levantou a voz e falou à multidão: (v. 14).

Segundo Jo 20,19, os apóstolos estavam trancados por medo dos judeus (autoridades judaicas), mas o Espírito Santo dá agora coragem a Pedro, o líder “junto com os onze apóstolos” (Judas foi substituído por Matias, 1,15-26). Na paixão de Jesus, negou que era discípulo de Jesus, dizendo que não o conhecia, que não fazia parte do grupo. Hoje a primeira leitura mostra Pedro renovado, pregando para as multidões completamente destemido, anunciando a ressurreição de Jesus.

Nossa leitura pulou a parte primeira da pregação na qual Pedro esclarece o barulho e movimento do Espírito Santo, que os presentes estranharam (cf. vv. 11-15.33), e cita a profecia de Joel (vv. 16-21; Jl 3,1-5) que termina: “Todo aquele que invoca o nome do Senhor será salvo.”

“Homens de Israel, escutai estas palavras: Jesus de Nazaré foi um homem aprovado por Deus, junto de vós, pelos milagres, prodígios e sinais que Deus realizou, por meio dele, entre vós. Tudo isto vós bem o sabeis. Deus, em seu desígnio e previsão, determinou que Jesus fosse entregue pelas mãos dos ímpios, e vós o matastes, pregando-o numa cruz. Mas Deus ressuscitou a Jesus, libertando-o das angústias da morte, porque não era possível que ela o dominasse (vv. 22-24).

Depois Pedro anuncia Jesus Cristo, mas não o chama logo de “Cristo” (Messias), somente no final do discurso (vv. 31.36). Pedro começa pelo que os judeus conhecem. Para eles, não é o Cristo-messias, é só Jesus de Nazaré que fazia curas: “Homem aprovado por Deus… pelos milagres, prodígios e sinais…Tudo isso vós bem sabeis” (v.22). Incrível que à aprovação de Deus corresponda à desaprovação dos homens. “Vós o matastes, pregando-o numa cruz. Mas Deus ressuscitou Jesus” (vv. 23-24).

Esta frase dupla é o centro do kerygma (primeira pregação apostólica): o testemunho da morte e ressurreição de Jesus; é a primeira profissão de fé cristã, que se desenvolverá no Credo apostólico e no Credo niceno-constantinopolitano que professamos na missa. Na pregação dos apóstolos, ao redor desta afirmação central, acrescentam-se detalhes como os milagres (v. 22; 10,38), João Batista (10,37; 13,24), aparições do ressuscitado e a efusão do Espírito (v. 33; 5,32). É o esquema seguido pelos evangelistas que desenvolvem a pregação apostólica.

Enfim, em perspectivas mais largas, apresentam-se referências ao Antigo Testamento (AT), aqui Pedro, de maneira geral em v. 23: “Deus, em seu desígnio e previsão, determinou que Jesus fosse entregue pelas mãos dos ímpios” (cf. Is 53; Sl 22; Sb 2).

Pois Davi dele diz: ‘Eu via sempre o Senhor diante de mim, pois está à minha direita para eu não vacilar. Alegrou-se por isso meu coração e exultou minha língua e até minha carne repousará na esperança. Porque não deixarás minha alma na região dos mortos nem permitirás que teu Santo experimente corrupção. Deste-me a conhecer os caminhos da vida e a tua presença me encherá de alegria’ (vv. 25-28).

Pedro cita ainda o Salmo 16 (15),8-11 na versão grega; o texto hebraico só exprimia o desejo de “não ver a fossa” (túmulo), foi traduzido em grego na certeza de o santo fiel “não experimentar a corrupção”. Jerusalém é cidade de Davi, rei e autor da maioria dos salmos, e “seu sepulcro está entre nós até hoje” (perto do cenáculo no monte Sião).

Irmãos, seja-me permitido dizer com franqueza que o patriarca Davi morreu e foi sepultado e seu sepulcro está entre nós até hoje. Mas, sendo profeta, sabia que Deus lhe jurara solenemente que um de seus descendentes ocuparia o trono. É, portanto, a ressurreição de Cristo que previu e anunciou com as palavras: Ele não foi abandonado na região dos mortos e sua carne não conheceu a corrupção. Com efeito, Deus ressuscitou este mesmo Jesus e disto todos nós somos testemunhas. E agora, exaltado pela direita de Deus, Jesus recebeu o Espírito Santo que fora prometido pelo Pai, e o derramou, como estais vendo e ouvindo” (vv. 29-33).

Pedro chama Davi “patriarca” e “profeta” (vv. 29.30), porque “sabia que Deus o jurou solenemente que um dos seus descendentes ocuparia o trono (v. 30; cf. Gn 22,16; 2Sm 7,12; Sl 110,4; Hb 6,13). Portanto, Pedro diz que este salmo 16 (15) não se refere a Davi, mas foi “a ressurreição de Cristo que previu” (v. 31). O túmulo de Davi não está vazia, mas o de Jesus está; e os apóstolos são “testemunhas”: “Deus ressuscitou este mesmo Jesus” (v. 32), portanto ele é o Cristo-messias profetizado por Davi no Sl 16,10 (cf. v. 36; cf. Rm 1,3s). O Espírito vem do céu para onde Jesus foi “exaltado pela direita de Deus” (cf. Sl 110,1; Lc 22,69p; At 7,55). Jesus já tinha recebido o Espírito Santo no batismo (Lc 3,22p), mas agora no céu para derramá-lo à Igreja (cf. Rm 1,4). O que os ouvintes estão “vendo e ouvindo” é a ação do Espírito, não mais o próprio Jesus. Eles (e nós) têm que confiar no testemunho dos apóstolos, que são as testemunhas oculares de Jesus e sua ressurreição (cf. Lc 1,2; At 1,3.8.21; 3,15; 4,20; 5,32; 10,40s; 1Jo 1,1-3).

2ª Leitura­: 1Pd 1,17-21

Durante o tempo pascal, a 2ª leitura nos domingos do ano A é tirada da primeira carta de Pedro. Foi escrita em grego de tal qualidade que parece difícil atribuí-la ao próprio Pedro, pescador simples da Galileia onde se falava aramaica. Mas Pedro estava em companhia de Silvano (= Silas) e João Marcos (5,12s). Ambos foram também companheiros de Paulo (At 15,40-18,5; 12,5; 13,5-13).

Esta carta circular (“católica” no sentido de “geral, para todos”) se diz ser escrita “por meio de Silvano” (5,12). Se o autor é Pedro, então a data deve ser escrito antes da perseguição de César Nero na qual Pedro e Paulo sofreram o martírio (64-67 d.C.). Entretanto, o estudo da situação histórica e do desenvolvimento do cristianismo faz pensar, que a carta poderia ser escrita depois do martírio de Pedro, talvez cerca de 70-80 ou durante a perseguição de Domiciano (95 d.C.), ou até em duas etapas. Um discípulo de Pedro residente em Roma teria redigido esta mensagem de encorajamento para manter viva a tradição do primeiro apóstolo e alentar as comunidades “dispersas” na Ásia Menor (cf. v. 1).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1488) comenta o contexto da nossa leitura: Começam as exortações, que vão até o fim da carta. Nesse primeiro momento, é a santidade de Deus que convoca à santificação. Um novo estilo de vida deve ser a marca de quem sabe que foi resgatado por Jesus Cristo. A condição de gente marginalizada fora da própria terra não é empecilho para viver de acordo com os desígnios divinos. O autor acentua a diferença entre a condição de vida que sua gente levava antes de se integrar às comunidades e a condição após. Nisso vai insistir diversas vezes. Por outro lado, a nova prática que as comunidades assumem vai coloca-las sob suspeita e desconfiança diante das pessoas de fora.

(Caríssimos:) Se invocais como Pai aquele que sem discriminação julga a cada um de acordo com as suas obras, vivei então respeitando a Deus durante o tempo de vossa migração neste mundo (v. 17).

Esta frase lembra o encontro de Pedro com o centurião romano Cornélio. Pedro justificou sua entrada na casa pagã que o tornaria impuro segundo os critérios farisaicos (cf. At 11,11,2; Jo 18,18) dizendo: “Deus não olha a pessoa, mas aceita em qualquer povo quem o teme e faz o que é justo” (At 10,34s). Já em Dt 10,17s, Deus julga de maneira imparcial e ama os estrangeiros. Agora Deus é invocado “como Pai” (cf. Sl 89,27; Jr 3,19) pelos cristãos (na oração do Pai-Nosso, Mt 6,9; cf. Rm 8,15) de todos os povos.

Pelo que o autor diz sobre o passado dos destinatários da carta, podemos pensar em cristãos que vêm, na sua maioria, do paganismo (1,14.18; 2,9; 4,3), se converteram para o cristianismo, então devem viver “respeitando a Deus” (lit. “no temor a Deus”, cf. 2Cor 5,11; 7,1; Fl 2,12).

Desde Abraão, o pai dos crentes (mesmo dos incircuncisos, cf. Rm 4,11s), a vida dos fiéis é “migração”, (lit. paróquias), porque a vida na terra é passageira (2Cor 5,1-10; Fl 3,20; Hb 11,13-16; cf. Sl 39,13; 119,19). O local onde a carta foi escrita é chamada “Babilônia” (5,13; significa Roma; cf. Ap 18,2.10.21), e seus leitores são como “estrangeiros na dispersão” (v. 1), “estrangeiros e hóspedes neste mundo” (2,9). Muitas grandes figuras da Bíblia viveram uma vida de migrantes (Abraão, Moisés, a Sagrada Família, Paulo,…).

Sabeis que fostes resgatados da vida fútil herdada de vossos pais, não por meio de coisas perecíveis, como a prata ou o ouro, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem mancha nem defeito (vv. 18-19).

“Sabeis”, lit. sabendo. A Bíblia do Peregrino (p. 2906s) comenta: Começa unido por um particípio ao que precede, como se fosse outra motivação. Mas o conteúdo ultrapassa o esquema e toma a forma de confissão ou profissão … Resgatar é o ato pelo qual se recupera uma propriedade familiar alienada ou se devolve a liberdade ao escravo indevidamente retido. Costuma incluir um pagamento ou compensação pecuniária: Lv 25,23-28.47-48; Jr 32; Rt 3-4. Com seu sangue (ou sua vida) Cristo paga a liberdade do escravo. Seu sangue é sacrifical, do “cordeiro” (cf. Is 53), e por isso o resgate é também expiação.

O tema de resgate, redenção, libertação, expiação é caro na Bíblia: Javé havia resgatado Israel quando o libertou da escravidão do Egito e o fez o seu povo como propriedade particular (Ex 19,4-6; 20,1-5; Dt 7,6). Os profetas não só anunciaram a libertação do exilio, mas também uma remissão dos pecados (Is 41,14; 44,22; cf. Sl 130,8; 49,8s). Esta redenção messiânica se cumpriu no messias Jesus (1Cor 1,30; cf. Lc 1,68; 2,38). Assim o novo povo de Deus foi libertado na escravidão da lei judaica e do pecado (Gl 3,13; 4,5; Rm 4,24s; Cl 1,14; Ef 1,7; Hb 9,15) de modo que o adquiriu (Tt 2,14), o comprou (Gl 3,13; 4,5; 1Cor 6,20; 7,3; 2Pd 2,1). O preço deste resgate foi o sangue de Cristo (At 20,28; Ef 1,7; Hb 9,12; Ap 1,5; 5,9).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2271) comenta: O resgate (Rm 3,25), pelo sangue de Cristo (Mt 26,28; Ap 1,5; 5,9), bem como a sua ressurreição resultam do desígnio eterno do Pai (v. 20), que consagrava assim o seu novo povo de “fiéis” (cf. 1Ts 1,7; 2,10.13; etc.). Nesta seção (vv. 13-21), podem-se notar os ecos de uma catequese ou mesmo de uma liturgia batismal.

“Vida fútil herdada de vossos pais” ou seja, a vida pagã que afinal não conduz a nada, em contraposição ao dom da vida eterna (v. 4; cf. vv. 23-25). Para os judeus e depois para os cristãos, os deuses pagãos são fúteis, ídolos vãos, e assim a vida pagã à qual se deve renunciar (cf. Tt 3,3-6).

“Um cordeiro sem mancha nem defeito”, é qualidade exigidas do cordeiro pascal (Ex 12,5).

Antes da criação do mundo, ele foi destinado para isso, e neste final dos tempos, ele apareceu, por amor de vós. Por ele é que alcançastes a fé em Deus. Deus o ressuscitou dos mortos e lhe deu a glória, e assim, a vossa fé e esperança estão em Deus (vv. 20-21).

Do resgate-redenção passa ao resgatador-redentor. A confissão sobre Jesus Cristo sintetiza-se em três etapas: ele foi pre-“destinado” desde sempre (expressão que marca a continuidade do plano de Deus; cf. Jo 17,24; Ef 1,4; 1Tm 2,6), manifestado (“apareceu”) nesta última etapa, morto e “ressuscitado” (antes, nos vv. 7.13, falou do apocalipse, a revelação final na segunda vinda de Cristo). Por ele se manifestou a graça e o amor de Deus (Tt 2,11-14). “Por ele alcançastes a fé em Deus … e assim, a vossa fé e esperança estão em Deus” (cf. Cl 1,3s), como a “meta da fé é a vossa salvação” (v. 9).

Evangelho: Lc 24,13-35

Como nos relatos da paixão, os evangelistas também diferenciam-se nos detalhes de textos pascais, mas mantém a afirmação fundamental: “Jesus ressuscitou. Ele está vivo” (vv. 5-6.23). Em Mc e Mt, o lugar de sua aparição é Galileia (cf. Jo 21), enquanto Lc concentra as aparições de Jesus em Jerusalém (vv. 13-52; At 1,3-9). Seus leitores greco-romanos não conhecem a geografia de Israel, talvez apenas a capital. Em Lc, a narrativa do evangelho começa e termina em Jerusalém (no templo: 1,9; 24.53), e nos Atos, a evangelização tem seu ponto de partida através dos apóstolos, inspirados pelo Espírito Santo, em Jerusalém (e termina depois em Roma). O caminho é um dos principais motivos em Lc e At: Jesus (já nascido no caminho em Belém) caminha com seus discípulos da Galileia a Jerusalém; os apóstolos levem o evangelho para fora de Israel, de Jerusalém a Roma.

Naquele mesmo dia, o primeiro da semana, dois dos discípulos de Jesus iam para um povoado, chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém (v. 13).

Lc não narrou uma aparição do ressuscitado diante das mulheres (cf. Mt 28,9-10; Jo 20,11-18), mas sabia de aparições diante de “outros discípulos”, além dos onze apóstolos e de uma aparição ao Simão Pedro (v. 34; cf. Mc 16,7; 1Cor 15,4-7). Pedro é considerado a primeira testemunha, não na cronologia, mas em importância e referência, porque as mulheres não eram reconhecidas como testemunhas na época (cf. v. 11). Dois discípulos que não fazem parte dos Onze (vv. 13.33), um deles se chama “Cléofas” (v. 18; cf. Jo 19,25), iam a um povoado chamado “Emaús”, cerca de 11 km da capital.

Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido. Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles. Os discípulos, porém, estavam como que cegos, e não o reconheceram (vv. 14-16).

Antes da Páscoa, Jesus caminhava com seus discípulos da Galileia a Jerusalém (9,51-19,28). Como ressuscitado, caminha novamente com seus discípulos (e através do seu Espírito os acompanhará até os confins do mundo, cf. At 1,8). A religião dos primeiros cristãos foi chamada “Caminho” (At 9,2; 18,25-26; 19,9.23; 22,4; 24,14.22; cf. Sl 119,1; Mt 7,13-14; 22,16 Jo 14,6; 1Cor 4,17; 12,31; Hb 9,8; 10,19-22; 2Pd 2,2).

Estão deixando a cidade de Jerusalém, pressionados pelos fatos duros da paixão e vão para um povoado. “Enquanto conversavam, … o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles”, atento ao que estavam discutindo. Os dois estavam “como que cegos e não o reconheceram” (v. 16). “O aspecto do seu rosto estava alterado” (9,26). A ressurreição é uma nova criação (cf. 2Cor 5,17), uma nova realidade que precisa se revelar ainda aos olhos cegos por causa de lagrimas (Madalena no jardim: Jo 20,15) ou de descrença (Saulo-Paulo no caminho: At 9,1-19).

Então Jesus perguntou: “O que ides conversando pelo caminho?” Eles pararam, com o rosto triste, e um deles, chamado Cléofas, lhe disse: “Tu és o único peregrino em Jerusalém que não sabe o que lá aconteceu nestes últimos dias?” Ele perguntou: “O que foi?” (vv. 17-19a).

Três perguntas em seguida demonstram a preferência de Lc para perguntas como meio didático. Aqui têm também função narrativa para iluminar em seguida a situação psicológica “triste” dos discípulos e seus pensamentos. Jesus se disfarça ignorante de tudo perguntando: “O que foi?”. Eles confundem Jesus com um dos muitos peregrinos que foram a Jerusalém para a festa da Páscoa e agora estão a caminho de volta (cf. 2,41-51).

Em Jo 19,25, em baixo da cruz de Jesus, estavam a “sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria a (mãe ou mulher) de Cléofas e Maria Madalena”. Não fica claro, se a tia de Jesus e a Maria de Cléofas são duas mulheres distintas ou a mesma pessoa. Se fossem a mesma pessoa, Cléofas devia ser um parente de Jesus, e Lc contaria aqui uma tradição pascal da família de Jesus. Lc já deixou transparecer que sua narrativa tem uma fonte na família de Jesus, ou seja, de Maria (cf. 2,19.51). Quem é a outra pessoa a caminho de Emaús? Em 10,1, Jesus enviou outros discípulos, além dos doze (cf. 9,1-6), “dois a dois à sua frente”. Este outro discípulo poderia ser uma mulher?

Os discípulos responderam: “O que aconteceu com Jesus, o Nazareno, que foi um profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e diante de todo o povo. Nossos sumos sacerdotes e nossos chefes o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram. Nós esperávamos que ele fosse libertar Israel, mas, apesar de tudo isso, já faz três dias que todas essas coisas aconteceram! É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos deram um susto. Elas foram de madrugada ao túmulo e não encontraram o corpo dele. Então voltaram, dizendo que tinham visto anjos e que estes afirmaram que Jesus está vivo. Alguns dos nossos foram ao túmulo e encontraram as coisas como as mulheres tinham dito. A ele, porém, ninguém o viu” (vv. 19b-24).

Os dois discípulos conversam sobre os tristes acontecimentos da paixão. Chamam Jesus não de “Cristo” (messias, cf. 9,20), mas apenas “Jesus de Nazaré”. Reconhecem que foi um “profeta poderoso em obras e palavras” (v. 19). Mas as autoridades deles, “nossos sumos sacerdotes e nossos chefes” o “entregaram” a Pilatos “para ser condenado á morte” e o crucificaram (quem o crucificou foram os soldados romanos, mas os chefes judaicos exigiram de Pilatos esta morte).

“Nós esperávamos que ele fosse o libertador de Israel” (v. 21). Expressam o conceito nacionalista do messias que devia libertar Israel da opressão dos romanos. Mas já se passaram “três dias” (incluindo sexta, sábado e domingo, cf. v. 13) e nada! Quer dizer, “algumas mulheres do nosso grupo nos deram um susto. Elas foram ao túmulo e não encontraram o corpo de Jesus… A ele, porém, ninguém viu” (vv. 22-25; cf. vv 1-12). Mas, neste momento, Jesus está à frente dos olhos deles! Estão completamente cegos, porque estão tomados pelo peso dos acontecimentos e pela interpretação superficial que circulava. Só verá o ressuscitado quem tiver fé.

Então Jesus lhes disse: “Como sois sem inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas falaram! Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória?” E, começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito dele (vv. 25-27).

Depois de escutá-los com calma, Jesus intervém, trazendo para eles uma iluminação da Escritura. Dá uma aula durante cerca de duas horas de caminhada, “começando por Moisés” (isto é, da lei; Dt 18,15.18; cf. At 3,22) “e passando pelos profetas” (Is 49,4.7; 50,4-9; 53 citado em At 8,32-33; o sofrimento de Jeremias; Zc 12,10; 13,7; etc.) de que o messias (Cristo) “devia” sofrer (vv. 26.44; 9,22; 17,25); significa que seu sofrimento era desígnio do Pai, mas devia ser também glorificado (Is 52,11-53,12; Sl 22,30; 73,17.24s).

Quando chegaram perto do povoado para onde iam, Jesus fez de conta que ia mais adiante. Eles, porém, insistiram com Jesus, dizendo: “Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!” Jesus entrou para ficar com eles (vv. 28-29).

A catequese de Jesus era para despertar a fé, devolver a esperança e estimular a caridade. Mais uma vez, Jesus disfarça, “fez de conta que ia mais adiante”. Mas os discípulos respondem com caridade, convidando o estranho num gesto de hospitalidade (cf. Gn 18,1-15; 19,1-3 etc.). “Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!” Quem ajudará a quem? Sem Jesus, não a luz e esperança. Depois da ascensão de Jesus (cf. v. 51; At 1,1-11), como ele ficará presente na comunidade? “Jesus entrou para ficar com eles” (cf. Mt 28,20; Jo 14,23; Ap 3,20).

Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía. Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles. Então um disse ao outro: “Não estava ardendo o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?” (vv. 30-32).

Enquanto Jesus falava, os corações dos dois arderam, mas seus olhos se abriram e o reconheceram somente quando ele “tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía” (v. 30 cf. 8,16; em 22,19 continua: “Isto é meu corpo dado por vós”). Mas ao mesmo tempo, “desapareceu da frente deles” (cf. At 1,9; sua presença não é mais visível, mas sacramental; cf. At 8,26-39). O medo e a tristeza deram lugar à grande alegria no coração (cf. vv. 41.52; 2,10; etc.). Seu “coração” já sentia antes a presença de Jesus na Palavra anunciada (e explicada!) do que seus sentidos. A fé vem pelo ouvido, ou seja, pela pregação (cf. Dt 6,4; Rm 10,17).

Naquela mesma hora, eles se levantaram e voltaram para Jerusalém onde encontraram os Onze reunidos com os outros. E estes confirmaram: “Realmente, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!” Então os dois contaram o que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão (vv. 33-35).

Estavam saindo da cidade e agora resolveram voltar para Jerusalém, à cidade violenta que matou o inocente, para contar aos “onze apóstolos reunidos com os outros” (v. 33). Estes afirmaram que “o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão” (cf. 1Cor 15,4s: “Cefas” é Pedro em hebraico). É uma frase que designa uma antiga profissão de fé: o resumo do fato e o nome da testemunha principal.

Não sabemos nada mais dessa aparição diante de Pedro. Na narrativa de Lc, aconteceu simultaneamente à de Emaús; sinal de que o ressuscitado não está mais preso aos limites do tempo e do espaço, se faz presente em todos os lugares e tempos onde houver fé (cf. 9,30; Jo 20,19.26).

Lc mostra nesta narração, como Jesus ressuscitado continua presente: no caminho, numa outra pessoa humana, no diálogo, na Escritura e na partilha (caridade, hospitalidade), na “fração do pão” (primeiro nome para a eucaristia; cf. At 2,42.46; 20,7.11; 27,35; 1Cor 10,16; 11,24; Lc 22,19). Significa que sem a Escritura, nós somos como cegos e não compreenderemos o que está acontecendo. É tempo de reler a palavra de Deus e de não abandonar a mesa da Eucaristia (da comunidade). As celebrações da Semana Santa foram muito participadas. As pessoas se ligam aos fatos dolorosos, agora é preciso que continuem. Se não retornam, podemos buscá-las para que possam compreender melhor a Escritura e possam repartir o pão com Jesus.

O site da CNBB comenta: Este trecho nos mostra todas as etapas do trabalho evangelizador. Inicialmente, as pessoas estão caminhando em comunidade. Ninguém caminha verdadeiramente quando está sozinho. Jesus é o verdadeiro evangelizador, que entra na caminhada das pessoas, caminha com elas. Durante a caminhada, faz seus corações arderem, porque desperta neles o amor, permanece com eles, formando uma nova comunidade, e se dá verdadeiramente a conhecer quando as pessoas dão respostas concretas aos apelos do amor, fazendo com que elas sejam novas testemunhas da ressurreição.

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